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  • Marcia Rangel Candido

CESTOS A POSTOS: PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE O COMÉRCIO INFORMAL FEMININO EM LUANDA


Créditos da Imagem: Praça do Zango 4, Luanda, 2018 - acervo pessoal de Washington Santos Nascimento

Caminhar pelas ruas de Luanda, capital de Angola, e não ter o olhar guiado pelo comércio informal feminino é ter olhos e não querer ver. A presença de mulheres equilibristas perambulando pela cidade com bacias e cestos acomodados em uma rodilha de pano sobre a cabeça é uma das grandes marcas da atmosfera luandense. E impressiona não somente o equilíbrio, mas a quantidade de mulheres, o peso excessivo sobre suas cabeças e as tantas idas e vindas de um lado ao outro da cidade. Não há uma única calçada que não seja por elas atravessada. Além das ambulantes e equilibristas, o cenário urbano é composto também por mulheres comercializando em pontos fixos, sentadas aqui e acolá dentre as esquinas da cidade. O "negócio", isto é, os produtos a serem vendidos são variados: ananás, bananas, laranjas; vende-se mandioca, peixe fresco, peixo seco, bolas de berlim[1], magoga,[2] jinguba torrada[3] ou paracuca.[4] Mas também vendem-se tecidos, desodorantes, potes plásticos, itens de limpeza em geral e um sem número de produtos não necessariamente alimentícios.

Ao estar rodeada por mulheres comerciantes a cada passo dado, não foi difícil entender o interesse dos estudos africanos em lançar luz sobre o tema. Embora fosse um ponto a ser historicamente observado, essas mulheres não eram o centro do meu trabalho. Meu objetivo em Luanda foi ir ao Arquivo Nacional de Angola em busca de fontes históricas que me permitissem observar a produção, a distribuição, o preparo e o consumo de bens alimentares na Luanda de outrora. Passei longas horas entre caixas e códices empoeirados. Na saída do Arquivo, para "respirar" eu me sentava no banco do agitado largo Amílcar Cabral. E foi em um desses respiros que, de forma inusitada, conversei com Vanuza. Ela havia acabado de reacomodar uma enorme bacia de legumes sobre a cabeça quando a interpelei. Completamente sem um jeito antropológico de ser, eu tentei tirar dela tudo o que o arquivo ainda não havia me dado.

Foi uma situação muito desconcertante. Não é confortável conversar com um interlocutor que visivelmente sustenta um excessivo peso sobre a cabeça e que, na dança do equilíbrio, balanceia o pescoço de um lado a outro incessantemente. Ela estava ali trabalhando e, por mais que eu também estivesse, o meu ganho se fazia em cima do não ganho dela. Além disso, Vanuza desconfiava de mim. Perguntei seu nome. E ela me respondeu "mas nome pra quê?". Eu lhe dei muitas explicações e ela me deu muitas reticências antes e depois de me dizer "Vanuza", bem baixinho. Perguntei se ela era casada. Ela me olhou com graça, torceu os lábios e virou a cara de lado. Perguntei se ela tinha filhos. Ela me disse que tinha dois, grandes. E passou a mão na barriga. Só então eu vi a sua barriga. Até aquele momento, eu só havia visto uma bacia de legumes.

Depois disso, fiz algumas outras perguntas sobre as suas condições de trabalho, sobre tradição alimentar, mas eu já não estava mais ali: o meu cesto caiu da cabeça. Voltei para o apartamento aturdida. No dia seguinte, pensei em abordar a comerciante fixa que nos observava enquanto eu conversava com Vanuza, mas na ida ao Arquivo ela não estava mais lá. Na volta, tampouco. Muitas coisas saíram do lugar de um dia para o outro. Foi só no dia seguinte de ter descido do salto da Academia que eu comecei a colocar os pés no chão.

Já ciente que a desconfiança de Vanuza era parte de uma estratégia de sobrevivência mediante a intensa fiscalização sobre as zungueiras - as comerciantes informais que "zungam" de um lado a outro -, resolvi ir a um dos mercados que as abastecem, supondo que ali fosse mais fácil desenvolver as minhas perguntas. Fui ao Mercado do Catinton que se localiza a cerca de 2 horas do centro urbano. Fui com António, o angolano que me sugeriu o lugar e que resolveu me acompanhar pois ele sabia "como chegar".

O combinado foi que, por "saber chegar", o primeiro contato com as quitandeiras seria feito por ele. Pois bem. Nos aproximávamos da quitanda e António cordialmente saudava a "mãe", vocativo comumente empregado às mais velhas. Em seguida, ele lhe perguntava o preço de um dos produtos ofertados e, com uma nota de kwanza em mãos, dizia à mãe que sim, compraria o produto. Mas em troca de umas respostas à menina - no caso, eu. No mesmo instante e em todas as abordagens que assim sucederam, as mães viraram o rosto para lado, balançando a cabeça bem de levinho. Era muito claro, pelo menos para mim, que elas não queriam responder nada a ninguém e que, na mesma medida, elas precisam vender qualquer lote que fosse. Eu, logo na sequência, me abaixava e de alguma forma tentava tornar aquela violação a mais leve possível. Isso se repetiu inúmeras vezes. Mais uma vez, não importavam as minhas perguntas, muito menos aquelas respostas.

Depois desses encontros - ou desencontros - suponho ter entendido o silêncio do Arquivo quanto às quitandeiras angolanas do século XX, exceto em um ou outro caso de processo disciplinar. Muito menos eu ali encontraria informações sobre e a partir das zungueiras, a mais evidente representação da continuidade de uma prática cultural, de um legado histórico.

As mulheres em Angola, e grosso modo em muitos países africanos, são agentes de fundamental importância para o sistema alimentar, da produção à "tutela" para o preparo dos alimentos. São inúmeros os trabalhos sobre o percurso histórico das quitandeiras ao longo das transformações sociais de Luanda entre os séculos XVIII e XIX, afirmando a sua relevância enquanto agentes das relações comerciais não apenas em Luanda, mas também neste lado do Atlântico.[5]

Poderíamos, ludicamente, falar sobre uma tradição cultural secular. Aliás, era isso que me interessava: falar sobre a tradição alimentar. No entanto, a aproximação me fez perceber que há muitas outras coisas relacionadas ao comércio na qual aquelas mulheres estão envolvidas. Coisas que estão para além dos cestos, mas que ainda assim e historicamente estão sobre as suas cabeças.

Acervo da Fundação Uanhenga Xitu - Luanda, década de 1970

NOTAS

[1] No Brasil, o doce recebe o nome de "sonho". No entanto, por influência da colonização portuguesa em Angola, o doce é lá reconhecido pelo nome português.

[2] Magoga é uma espécie de sanduíche recheado com frango frito, salada de repolho, jindungo (pimenta malagueta) e maionese.

[3] Jinguba é equivalente a amendoim. Assim como jindungo, jinguba é um termo em kimbundu, a língua falada por um dos grupos étnico-linguísticos de Angola.

[4] Paracuca é amendoim caramelizado.

[5] A historiadora Selma Pantoja é uma das grandes referências para se compreender o percurso transatlântico das quitandeiras.

*Karina Helena Ramos é doutoranda em História Social da Cultura (PUC-Rio) e tem desenvolvido uma análise sobre o sistema alimentar em Luanda ao longo da segunda metade do século XX.

Contato: hr.karina@gmail.com

 

Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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