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  • Marcia Rangel Candido

A DESCRIMINALIZAÇÃO DA CANNABIS E O RASTAFÁRI NA JAMAICA


Créditos da Imagem: Acervo pessoal de Fernando Vieira de Freitas. Rastafáris Bobo Shanti em passeata pela comemoração do aniversário de nascimento de Haile Sellasie I. Kingston, Jamaica - 23 de Julho de 2018.

A Jamaica é, há muito tempo, vista pela imaginação ocidental como o paraíso da cannabis, imagem que resulta em grande parte da expansão global do reggae na década de 1970 e da representação frequentemente estereotipada das montagens hollywoodianas sobre a ilha e seus "nativos". No entanto a "ganja" (como é localmente denominada a cannabis pelos Rastafári), após décadas de perseguição, apenas recentemente foi envolvida em um processo amplo e objetivo de descriminalização dentro do parlamento jamaicano.

O "Drugs Amendment Act", aprovado em 2015 pelo legislativo, de fato oferece uma janela legal pela qual os usuários da planta e os Rastafári podem antever um cenário mais favorável para o consumo da cannabis. Atualmente, a nova legislação descriminaliza a posse de até duas onças (equivalente a 56 gramas) de cannabis por pessoa; fumar cannabis em locais públicos é proibido, mas membros do movimento Rastafári podem fazer uso em locais especialmente designados para isso; a posse de ganja também é permitida para uso religioso, medicinal ou científico, mediante permissão oficial; a cada núcleo doméstico é permitido cultivar até cinco plantas; o cultivo também é autorizado, em maior escala, para uso religioso por comunidades Rastafári, mediante autorização.

O processo de descriminalização se tornou atrativo apenas recentemente, quando as perspectivas de lucro com o mercado global da cannabis se tornaram evidentes nos contextos de legalização, principalmente nos EUA e com o início da discussão sobre a descriminalização no Canadá e no Parlamento Europeu. No caso jamaicano, a proposta de descriminalização obedece a diretrizes de diversos grupos, dentro e fora da ilha, interessados em capitalizar a produção local da ganja no mercado global da indústria da cannabis e do chamado "wellness tourism" (turismo de bem-estar). A regulamentação da proposta vem desde então sendo discutida em diversas instâncias deliberativas entre membros do governo, investidores nacionais e internacionais, agricultores de pequeno e grande porte, e representantes da comunidade Rastafári.

Vale notar que a medida é de especial importância para os Rastafári e para a população de negros, pobres e trabalhadores que lutaram por décadas pela legalização da cannabis. Tais grupos sofreram por igual período a marginalização e a perseguição violenta pelo uso recreativo, ritual e sacramental da ganja, bem como pelo seu cultivo e comercialização em pequena escala. Trazida pelos trabalhadores indianos que viriam substituir os escravos negros nos trabalhos nas lavouras após a abolição, a "ganja" foi rapidamente inserida na farmacopeia local. Fumada ou utilizada em chás, tônicos, emplastros de diversas outras maneiras, a cannabis se tornou uma planta de grande importância social e econômica na ilha após o século XIX. Sua popularidade entre as classes populares fez acender a luz vermelha às autoridades coloniais, que logo intensificaram seus mecanismos de vigilância em relação à ganja.

No bojo das políticas de controle da ordem colonial, é gestada, em 1913, a lei de proibição da cannabis pelo "Conselho de Igrejas Evangélicas da Jamaica" em conjunto com a fração conservadora da classe política e a elite jamaicana, interessadas em conter o uso crescente da planta entre a classe popular. Em 1924, toma forma a "Dangerous Drugs Law" (Lei de Drogas Perigosas), corpo de princípios legais que deu abertura para a perseguição brutal do uso e do cultivo da cannabis na ilha jamaicana. A ganja foi associada à violência e esta à grande massa rural que migraria para os grandes núcleos urbanos, especialmente Kingston, na década de 1930. O tripé "população negra", "cannabis" e "violência" tornou-se o eixo em torno do qual as políticas de controle e de polícia viriam a modular a atuação prática do estado em relação à planta e àqueles que dela faziam uso, em especial os membros do movimento Rastafári.

Embora o Rastafári tenha surgido de fato em 1930 - tendo como evento histórico de surgimento a coroação de Haile Selassie I como imperador da Etiópia - é a partir de 1940 que a ganja e o uso dos dreadlocks são utilizados de maneira mais assertiva e deliberada, enquanto bandeira política de um processo de resistência social à "Babilônia" que marca o movimento Rastafári e que viria a inspirar o Reggae na década de 1960.

A lei de proibição foi sucessivamente emendada pelo parlamento, trazendo medidas restritivas cada vez mais graves pelo envolvimento com a cannabis que eram implementadas de acordo com momentos de escalada da revolta popular. Foi no contexto do desenvolvimento do movimento Rastafári e da popularização do líder Rasta, Leonard Howell, que um recrudescimento das leis e algumas emendas mais restritivas foram realizadas. A comunidade Rastafári "Pinnacle", fundada por Howell em 1940 nas colinas de St. Catherine, se tornou rapidamente uma comunidade autônoma financiada majoritariamente pelo cultivo da cannabis. Emendas na legislação de proibição autorizaram as forças policiais a frequentemente prender e queimar plantações em Pinnacle.

Capa da sessão especial do jornal jamaicano "The Daily Gleaner" sobre Leonard Howell e a comunidade de Pinnacle, nov. 23, 1940.

Em 1954, mais de uma centena de policiais e delegados prenderam e sentenciaram vários membros da comunidade à prisão, destruíram acres de plantações de cannabis, confiscaram uma grande soma de dinheiro e queimaram mais de três toneladas de ganja. Isso viria, poucos anos depois, a decretar o fim da comunidade de Pinnacle. O fim de Pinnacle é apenas um dos resultados da prática corrente de perseguição ao movimento Rastafári e ao uso da ganja pela população negra jamaicana. Mais importante ainda, é que a comunidade de Pinnacle se situa também como um dos vários exemplos de resistência do movimento Rastafári à exatamente esses ditames de controle vindos da "Babilônia".

Esse cenário violento de controle, que se tornou a tônica da história das relações envolvendo a ganja, seus usuários e o poder estatal, foi convenientemente omitido nas propagandas que vendem a Jamaica como a "ilha da ganja e do Reggae". É nesse sentido que membros e organizações Rastafári atualmente demandam uma participação justa e efetiva no processo de consolidação da descriminalização da cannabis.

Algumas dessas demandas versam sobre: a distribuição de parte dos recursos gerados a partir da comercialização da cannabis, sob forma de reparação, entre as comunidades Rastafári; a formação de cooperativas de plantio administradas por Rastas; a importância de contar a história oficial da ganja na Jamaica, sem omitir o contexto de perseguição, o que poderia ser alcançado através da formação de museus e centros culturais Rastafáris construídos para esse propósito. Portanto, mais que abrir caminho para uma mercadoria ser colocada no mercado internacional de commodities, para os Rastafári a descriminalização em curso no parlamento se trata de uma nova instância de demanda por reparação histórica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARNETT, Michael. The Rastafari Movement: a North American and Caribbean Perspective. Routledge, 2018.

CHEVANNES, Barry. "Criminalizing Cultural Practice, the Case of Ganja in Jamaica". In: Klein, A., Day, M. et Harriott, A., Caribbean Drugs, From Criminalization to Harm Reduction. Kingston, Ian Randle Publishers, 2004.

FREITAS, Fernando V. "Uma perspectiva contemporânea sobre o movimento Rastafári". Religião e Sociedade, vol.38, n.2. Rio de Janeiro, 2018 (no prelo).

NIAAH, Jahlani AH. "Ganja Terrorism and the Healing of the Nation". In: Drug Policies and the Politics of Drugs in the Americas. Springer, Cham, 2016.

RUBIN, Vera; COMITAS, Lambros. Ganja in Jamaica. The Hague, Mouton. 1975

YAWNEY, Carole D. "Moving with the dawtas of Rastafari: from myth to reality". In: Arise ye mighty people! Gender, class and race in popular struggles, 1994.

SUGESTÃO DE FILME

Bad Friday: After Coral Gardens. Direção e Produção de Deborah Thomas e John L. Jackson. Oxumgirl Productions, Nova York, 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DkQyiBQbRMI>. Acesso em: 15 ago. 2018.

Fernando Vieira de Freitas é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012), mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ (2015) e doutorando em Antropologia Social no Museu Nacional/UFRJ (2016). Atualmente desenvolve pesquisa de tese com trabalho de campo entre comerciantes Rastafáris na Jamaica.

Contato: fernandosemba@gmail.com

 

Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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