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  • Marcia Rangel Candido

TERRAPLANISMO E COLONIALISMO


Há pouco mais de dois meses, um engenheiro autodidata construiu um foguete no seu quintal e se lançou a mais de 500 metros de altitude, com o firme propósito de provar que a Terra é plana. Por sorte o intrépido cosmonauta aterrissou inteiro, desbaratando as apostas em sua candidatura para o Darwin Awards desse ano. Sua coleta de evidências, no entanto, resultou frustrada. Mike Hughes diz não “acreditar na ciência” e se vê em um esforço colaborativo mundial para produzir uma verificação astronômica independente sobre o formato da terra. Na página da Sociedade Terra Plana dos Estados Unidos, reativada em 2004, o então presidente Charles Johnson afirma que “o que hoje chamamos de ‘Ciência’ e ‘cientistas’ consiste na mesma velha gangue de curandeiros, feiticeiros, contadores de histórias, os pregadores e entretenedores do povo comum”. O Brasil sedia a maior comunidade terraplanista fora dos EUA.

Como disse um de seus principais articulistas nacionais, essa subserviência intelectual e moral aos “sacerdotes astronômicos” começa “quando deixamos de acreditar nos nossos próprios olhos e experiência própria”. Reconciliar-se com nossa experiência vivida é um apelo convidativo, e afinal todos entendemos que a água dos oceanos escorreria se o planeta fosse uma esfera. Não conseguimos ver nem sentir qualquer curvatura na terra com nossos pés, binóculos ou níveis de carpinteiro. Ao contrário, argumenta Samuel Trovão na mesma entrevista, as evidências de que vivemos em um globo terrestre “nunca foram devidamente validadas dentro do método científico”. Não se trata simplesmente de satisfazer nossa percepção cotidiana sobre o mundo, mas oferecer explicações alternativas para os fenômenos observáveis em que o formato da terra interfere, como o movimento do sol, as estações do ano ou os fusos horários. E o que é mais fascinante: esse conhecimento já foi acessado pelas grandes civilizações da humanidade, coincidem Trovão e Johnson. Maias, assírios e sumérios, por exemplo, sempre souberam que a Terra era plana. Reparem por um instante a força de sedução epistemológica: sabedoria milenar, conhecimento verdadeiramente científico e senso comum reverberam em uníssono, amparam-se mutuamente em convicção.

Mas melhora. Ao defender o indefensável, o terraplanismo tece ao redor de si uma sociologia prática do conhecimento, em que o heliocentrismo e o globalismo encobrem interesses ocultos que vão da maçonaria (“Copérnico, Newton, Pitágoras, Galileu, Kepler e praticamente todos os astronautas”, diz Trovão, “são maçons”) aos grandes tubarões da economia mundial (“O motivo óbvio gira em torno de margens de lucro”, arremata). Há um jogo de poder sobre a verdade. Baseado na clarividência voluntarista de pessoas como Hughes, o terraplanismo se coloca contra uma conspiração de interesses estabelecidos, pelo que são vítimas de perseguição institucional, censura e ostracismo – e não poucas piadas. Seus livros não são aceitos nas escolas, suas candidaturas de emprego são descartadas, suas vidas são eventualmente ameaçadas. Há uma aura de heroísmo em contrariar o establishment, com seus sacerdotes, segredos e satélites.

O terraplanismo ganhou muita atenção em meio ao frisson sobre as notícias falsas na eleição de Trump e à deriva epistemológica da “pós-verdade”, escolhida pelo Dicionário de Oxford como palavra do ano de 2016. No lamaçal de manipulação da verdade e dos consensos, nada mais oportuno que desafiar logo o heliocentrismo, que reina majestoso pelos últimos 400 anos. O terraplanismo é algo mais que uma mentira, porque toda a teoria da conspiração tem um pouco de teoria: ao concatenar um enredo de interesses escusos, falsificações e contraevidências, evoca o poder de qualquer um desafiar verdades dominantes, mesmo que no sentido mais absurdo. Ao fazê-lo, oferecem um senso de propósito que havia sido solapado pelo globalismo ateísta: ao invés de vagar no vácuo de um universo aleatório, voltamos ao centro da ordem cósmica. O mais perturbador parece ser menos que certas pessoas levam o terraplanismo a sério, mas sobretudo que, por contraste, nos tornamos “heliocêntricos e globalistas” sem que nunca tenhamos nos preocupado em sê-lo.

No dia 19 de setembro de 2017, quinze renomados membros do Conselho Editorial da revista acadêmica Third World Quarterly renunciaram. A razão do protesto foi um artigo de opinião recém-publicado no periódico por um professor da Universidade de Portland (EUA) chamado Bruce Giley. Nele, Giley fez uma ultrajante defesa do colonialismo europeu como plataforma de desenvolvimento para todos os povos do mundo. Contra o que chama de “ideologia anticolonial” (sic), reivindica uma “historiografia não-enviesada” capaz de resgatar a “verdade histórica” (GILEY, 2017). Como a água que escorre da esfera, ele aponta que as nações que abraçaram seu legado colonial, como Singapura ou Botswana, tiveram melhores resultados econômicos do que aqueles que acreditaram no “mito paroquial da capacidade de autogoverno” dos próprios colonizados. Contra o que seria um establishment intelectual anticolonial, ele quer que voltemos a usar positivamente o termo, inclusive como um programa para recolonizar, “evitando eufemismos”, regiões que não conseguem governar-se. Contra qualquer suspiro de bom senso, Giley afirma que “os benefícios do império foram amplamente difundidos enquanto seus custos recaíram sobremaneira na potência colonizadora”. Por esse papel, acha que é hora de revisar o passado para resgatar a missão civilizadora do imperialismo.

Que os argumentos de Giley são uma sandice seria ocioso repetir. As réplicas foram muitas e em várias direções; de certa forma, uma crise de confiança no processo de “revisão por pares” foi desencadeada pelo lançamento do artigo. Vijay Prashad, ex-membro do Conselho Editorial da revista e autor de uma formidável história do Terceiro Mundo (“Darker Nations: a people’s history of the Third World”, Ed. New Press People’s History, 2007), foi um passo adiante: por que, interroga-se, alguns intelectuais ocidentais estão tentando higienizar a história do imperialismo, relativizar suas atrocidades? Em um momento de ascensão do supremacismo branco, irrigado por “notícias falsas”, é frequente a alegação de que a “história branca” foi manchada sistematicamente por detratores marxistas, pós-coloniais e congêneres. A ideia de que recolonizar as partes mais pobres ou mais turbulentas seja uma saída razoável paira no ar após o 11 de Setembro, ainda com os tais eufemismos. Francis Fukuyama, aquele mesmo que fora arauto do “fim da história” em 1989, conclamou à “construção de estados” em nome da paz mundial.

Giley construiu seu foguete para tentar provar que o colonialismo foi um trampolim histórico para as sociedades colonizadas, e conseguiu publicar sua opinião em um dos mais prestigiados periódicos acadêmicos da área. Tentou erguer ao seu redor uma aura de dissidente contra uma suposta ortodoxia anticolonial, pondo-se ao lado do desenvolvimento dos povos diante de preconceitos e ideologias. Por trás disso está o risco de um texto fraco e inconsequente levantar uma poeira de controvérsia sobre o que entendemos por colonialismo, nublando em polêmica o que fora arduamente conquistado em termos históricos e morais. Os terraplanistas descreditam a ciência com bravatas caricatas sobre um complô mundial que oculta de nós a verdade sobre o formato da terra, que, ao fim e ao cabo, não temos ferramentas cotidianas para verificar. Esse incipiente “pró-colonialismo” acadêmico diz que a crítica ao colonialismo, por ser política, “nunca pretendeu ser ‘verdadeira’ no sentido de uma afirmação científica justificada por padrões compartilhados de investigação, passíveis de falsificação” (GILEY, 2017). Assim como o terraplanismo nos tornou subitamente “heliocêntricos”, essas bravatas colonialistas de Giley querem que o anticolonialismo seja uma posição relativa, e não um parâmetro mínimo de humanidade.

Há pelo menos um século descartamos a expectativa de que os estudos em ciências humanas e sociais nos assegurem uma via científica de progresso social, o que fizemos por bem. Contudo, o ceticismo com que olhamos as palavras “ciência”, “verdade” e “realidade”, como púlpitos de autoridade e poder, não pode nos impedir de acreditar que um conhecimento confiável e responsável é possível, inclusive para explicar as raízes da desigualdade entre os povos. Na retaguarda, essa premissa assegura um dique de contenção, alguma proteção contra o revisionismo de ocasião que hoje flerta com o poder político. Esse dique não é feito de eufemismos diletantes, mas pela memória viva do que foi o colonialismo europeu na história moderna – ao fim e ao cabo, o maior dos genocídios que esse planeta, seja ele redondo ou plano, já testemunhou.

Pedro Borba é doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e pesquisador do Núcleo de Estudos em Teoria Social e América Latina (NETSAL).

 

Editora responsável: Luna Campos

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