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  • Marcia Rangel Candido

ABDIAS NASCIMENTO E A INSERÇÃO INTERNACIONAL BRASILEIRA


Abdias Nascimento , 1997 . Foto: Luiz Paulo Lima.

A importância do intelectual militante não pode ser medida somente no que tange suas participações frente aos diversos movimentos sociais. Para além disso, esses intelectuais tendem a difundir nas universidades uma percepção diferenciada da realidade que está posta aos olhos de todos, pois transitam entre dois contextos frequentemente conflitivos: os ambientes de construção de discursos acadêmicos, onde a neutralidade é quase sempre estimada como definidora de qualidade, e os espaços de militância, nos quais o diferencial é justamente a tomada de posição.

Maior figura do movimento negro brasileiro do século XX, sendo para alguns o melhor sociólogo do país, reconhecido internacionalmente pela militância pan-africanista, Abdias do Nascimento (1914-2011) dificilmente é citado na literatura como acadêmico, mas sim como militante da causa do povo negro. A jornada dupla, como intelectual e militante, tem destaque em suas obras e atitudes. Segundo Nascimento, a “democracia racial” disseminada como imagem da nação, favorecia apenas os brancos, mantendo o status quo da sociedade inalterado. Abdias condenava a narrativa da “democracia racial” e buscava transferi-la para uma crítica à atuação internacional do Brasil, principalmente no que se refere à relação com os povos africanos, tentando evidenciar a arrogância da elite política nacional.

Ao denunciar as sistemáticas políticas de erradicação do negro na sociedade brasileira e como isso reflete na posição do país em relação ao resto do mundo, Abdias desenvolve uma contribuição intelectual ímpar para o estudo das Relações Internacionais no Brasil. Em suas principais obras, “O Quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista” e “O Genocídio do Negro Brasileiro: processo de um racismo mascarado”, o autor desmonta o mito da democracia racial e demonstra a forma como ele tradicionalmente pautou a política internacional brasileira.

Na Organização das Nações Unidas (ONU), em tempos passados, o Brasil submeteu seus interesses aos de Portugal, especialmente na temática de descolonização da África. Em extensa pesquisa documental, Abdias elucida que tal posicionamento é mais bem explicado por uma vinculação ideológica das elites políticas brasileiras conservadoras, do que por interesses estratégicos. As políticas migratórias levadas a cabo por diferentes governos federais ao longo do século XX foram desenhadas com centralidade no embranquecimento da população, não apenas por necessidades econômicas internas ou uma preocupação com crises humanitárias externas (tais como as guerras europeias). A ideia de “democracia racial”, sustentada na suposta existência de uma nação livre de preconceito de cor, foi o principal instrumento de soft power da diplomacia brasileira no período recente.

Abdias foi um líder nato, forjado fora do ambiente acadêmico, mas que se direcionou para dentro deste espaço para eternizar seu pensamento com uma espécie de cartilha militante de atuação. Sua ação política se preocupou em mostrar ao resto do mundo as resistências negras que historicamente ocorreram no Brasil, advogar pelo papel do país no movimento pan-africanista de forma mais ampla e construir uma ponte direta entre a militância, os movimentos sociais e a política - e aqui inclui-se a política externa. O intelectual postulava que escutar o movimento negro seria benéfico para uma relação diplomática mais saudável com as jovens repúblicas africanas.

A partir de uma reflexão breve, podemos notar diversas contribuições de Abdias Nascimento para pensar a inserção internacional brasileira, que é indissociável da questão racial. É preciso entender o papel do Brasil, bem como dos diversos movimentos de resistência que aqui ocorreram, na diáspora e na construção do pan-africanismo, com atenção à importância das pressões e da atuação dos movimentos sociais para a política externa do país. Revisitar o pensamento de Abdias permite perceber a atualidade das suas críticas. Nas últimas décadas, por exemplo, as participações do Movimento Negro Unificado (MNU) e da UNEGRO nos governos Lula e da Fundação Palmares durante os mandatos de FHC, foram determinantes em diversas diretrizes políticas nas relações com a África.

O pensamento crítico à atividade internacional do Brasil é ainda mais imprescindível no tempo presente. O governo de Jair Bolsonaro não só criminaliza os movimentos sociais e nega a relevância das universidades públicas e da produção intelectual, como também rompe com as práticas de gestões precedentes no que toca às relações internacionais. É nítido o realinhamento à dependência externa, que outrora foi submetida à Portugal, voltando-se para uma similaridade com o discurso liberal/intervencionista estadunidense, que novamente acontece muito mais pela orientação ideológica-conservadora do que por interesses estratégicos. Políticas migratórias com caráter marcadamente racista retornam à ordem do dia. E, acima de tudo, o mito da democracia racial é reanimado e ganha força mais uma vez como mote de governo. As ideias de Abdias Nascimento precisam circular mais que nunca.

REFERÊNCIAS:

NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do Negro Brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016.

NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo - documentos de uma militância pan-africanista. Rio de Janeiro: Vozes, 1980.

Thales Machado é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e militante dos direitos humanos.

Giovana Esther Zucatto é professora substituta do departamento de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutoranda em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Pesquisadora associada do Observatório Político Sul-Americano (OPSA) e do Núcleo de Estudos em Teoria Social da América Latina (NETSAL).

Editora responsável: Marcia Rangel Candido

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