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  • Marcia Rangel Candido

NADA DE NOVO NO FRONT: AS RETÓRICAS DO MIRANTE DO CAIS


Foto retirada do Diário de Pernambuco - Hélder Tavares, 09 de abril de 2015

[Nota da edição: Este texto foi originalmente escrito em fevereiro de 2019. Recentemente foi encerrado o processo do estudo arqueológico na região do Cais José Estelita realizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e o embargo às obras caiu. Coincidentemente, ontem, 25 de Março, começou o processo de demolição dos galpões do Cais. O Movimento Ocupe Estelita segue ativo e atento às movimentações na área]

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Anunciado ao final do ano passado, o Mirante do Cais é a primeira etapa do Novo Recife, projeto fruto de uma parceria entre grandes empresas do mercado imobiliário: Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Ara Empreendimentos e GL Empreendimentos. Ao todo, o consórcio prevê a construção de um complexo de 13 torres, entre empresariais e residenciais, em uma área de 10 hectares no Cais José Estelita, região onde permanecem as estruturas remanescentes da antiga Rede Ferroviária Federal (RFFSA), no bairro de São José, região histórica da cidade. O projeto nega as resoluções dadas à área no Plano Diretor de 2008, que aponta o Cais enquanto zona de preservação ambiental, da paisagem e com ocupação reduzida.

Desde 2008, quando foi arrebatado em leilão a lance mínimo pelo Consórcio Novo Recife, o terreno é protagonista de uma longa disputa política e jurídica, sendo o Movimento Ocupe Estelita um importante ator neste processo, uma vez que não só articulou uma série de ações na área, como também trouxe à tona um importante debate sobre o uso e ocupação da cidade.

Lançado em novembro, o Mirante do Cais é composto por dois edifícios de 37 pavimentos, o Mirante Norte e Mirante Sul. De acordo com notícia veiculada no Diario de Pernambuco, o Consórcio Novo Recife espera somente o alvará de construção do empreendimento, que “deve sair ainda este ano [2018] pela Prefeitura”. [1] Anúncios já podem ser conferidos em sites de imobiliárias locais.

Com uma extensa lista de itens de lazer, plantas que vão de 226 a 268 m² e preços de sete dígitos, o empreendimento diz a quem veio. O imóvel tem dependência, vestiário e WC para empregados, 4 vagas na garagem, ostensivo sistema de vigilância e brinquedoteca. Em um recente vídeo publicitário, apresentado em imagens em 3D, uma voz em off anuncia “o Mirante conecta você a um encontro com o Recife […] você estará próximo do que torna o Recife histórico”.

Projeto imobiliário Mirante do Cais, Recife

Façamos uma breve digressão histórica: na década de 1970, período que o Recife experienciou um eminente processo de verticalização, imóveis eram vendidos enquanto o lócus da distinção. Com esquadrias de alumínio e chão de mármore, muitos apartamentos eram comumente associados a uma vida luxuosa. “Adquira seu lar na última reserva aristocrática da cidade” ou “Poucos terão o privilégio e bom gosto de morar no edifício Almanara”. Foi (também) por meio de táticas e estratégias discursivas como estas que o mercado imobiliário conseguiu consolidar a morada vertical enquanto uma morada eminentemente prestigiosa. No Recife de hoje, as maiores rendas se concentram nas quadras verticalizadas, ao passo que as menores se concentram em quadras de edificações horizontais de pequeno porte. [2]

No período, era cada vez mais numerosa a presença de anúncios imobiliários não só nos Classificados, mas também em cadernos como Política, Economia e Cultura. Com um léxico eminentemente excludente, as propagandas vendiam formas de vida e produziam gostos. Contudo, assim como se transforma a cidade, se transformam também os discursos sobre ela empreendidos. Assim, tendo em vista que, enquanto campo discursivo, o campo publicitário não é unívoco, foram diversas as táticas discursivas e os engendramentos retóricos ao longo dos anos que seguiram.

Seguindo para a década de 1990, sob o argumento do medo do crime violento, muros e sofisticadas tecnologias de vigilância se incorporaram à gramática dos edifícios. Os enclaves fortificados (CALDEIRA, 2000), espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo e lazer se multiplicaram no tecido urbano. Sob uma lógica de abandono do espaço público, os enclaves enfatizam o que é privado, ao passo que desvalorizam o que é público. Neste momento, ficou evidente que as grandes cidades brasileiras dialogavam mais com a Paris de Haussman, com seus boulevares que incorporavam o anonimato e o individualismo, do que com valores universalistas e comunais.

Assim, valores associados à segurança e ao esquadrinhamento espacial foram rapidamente incorporadas pelo léxico publicitário. Anúncios vendiam apartamentos com guarita, câmeras de vigilância, cerca elétrica e variados itens de lazer. “Você nem precisa sair de casa”, era anunciado. Neste momento, os meios reais de separação eram complementados por uma elaborada rede simbólica que transformava enclausuramento e restrição em status. Assim, eram vendidos espaços que negam o presente e que se materializam via controle e ordenamento espacial – a utopia degenerada por excelência (HARVEY, 2000).

Finalmente, de volta ao Mirante do Cais. Sob o argumento da integração com o espaço público, a cidade volta à ordem do discurso. O projeto passou a incorporar algumas das reivindicações surgidas em audiências públicas realizadas pela prefeitura entre 2014 e 2015. Entre elas, a eliminação de muros, a redução do gabarito de alguns edifícios e a manutenção de elementos históricos preexistentes. Não é novidade pensar os deslocamentos das hegemonias e as cooptações do capitalismo de pautas mais à esquerda. Diante disso, percebemos algo que soa como mais uma inflexão discursiva. Como evocar desejo pela morada? Parece-nos que não mais convém defender gentrificação ou distinção via tons aristocráticos.

O Novo Recife tem área destinada ao comércio, pomar, tomada USB para carros elétricos e área verde. E, em sua retórica, fomenta valores associados à conservação do patrimônio, à narrativa ecológica e à cidade enquanto experiência pública. A aparente ambivalência rapidamente se evanesce quando compreendemos em que se constitui o Novo Recife: a instalação de um complexo privado em uma região cuja a renda média da população é inferior a meio salário-mínimo. [3]

Além disso, é importante ressaltar que, apesar da ausência de muros (que, em uma leitura atenta, compreendemos referir-se ao espaço entre-torres) ou da redução de gabarito, a experiência privada é, ainda, a experiência estruturante do Novo Recife. E, neste sentido, o fomento ao uso misto não se coloca enquanto conflitivo a um projeto de cidade que interdita e exclui – é importante ressaltar que a ativação do comércio, apesar de gerar encontros e movimento no espaço, é um dispositivo que tem por elemento estruturante o consumo. Assim, colocados estes pontos, gostaria de ressaltar um trecho do vídeo de lançamento do imóvel:

Quando o olhar para o novo e o respeito à história convivem lado a lado. Um projeto inovador, que vem revitalizar e trazer novas perspectivas à região. O Mirante do Cais traz uma nova forma de viver a cidade. [4]

Deste modo, o projeto anuncia que (1) olha para o novo, (2) respeita a história, (3) vai revitalizar e (4) vai trazer novas perspectivas à região. Olhar para o novo e fazer emergir vida nos remete a um processo de negação do presente e das vidas ali existentes; o patrimônio defendido é entendido em exercício de puro formalismo, deslocado (além de invisibilizado); E a nova perspectiva defendida nos aponta que o projeto Novo Recife não é só um empreendimento, mas um projeto de cidade que tem por fim a consolidação de zonas privadas e ordenadas ao longo do tecido urbano. É um projeto que reforça a gramática dos enclaves fortificados, mas cujas marcas de interdição são mais amplas e sofisticadas que os literais muros. Em vez da prisão, a cidade. Em vez do confinamento, a totalidade do território.

O Mirante do Cais reforça a lógica dos arquipélagos de segurança (FUENTES-RIONDA & BOTELLO, 2009), que acampam a fragmentação espacial enquanto gestão das diferenças. Muros e câmeras excluem, mas o controle dos usos também. É um projeto que, ao abraçar o espaço, nega a diversidade e transforma a fragmentação em economia de poder.

E o que isso tudo nos diz? Primeiro, que a forma mais potente de segregação não é o muro, mas a impossibilidade real de usufruto. Segundo, que esses novos engendramentos surgem enquanto âncora de um processo que não é novo: a distinção. Terceiro, nos lança um importante questionamento: onde reside a radicalidade de nossa crítica? Quais os limites e quais os espaços para a luta por uma cidade decididamente inclusiva?

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Início do processo de demolição do Cais Estelita, Recife, Pernambuco

25 de Março de 2019

NOTAS

[1] Disponível em:

[2] Em novembro de 2018, o Ministério Público Federal recorreu ao Supremo Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal para impedir o prosseguimento das obras. Entre os argumentos, a ausência de posicionamento do IPHAN, a alteração da relatoria do caso no TRF5 (que julgou o Novo Recife lícito) e por ser um projeto prejudicial aos bens tombados dos bairros de São José e Santo Antônio, uma vez que impede sua visibilidade, como indicam pareceres emitidos pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU).

[3] De acordo com dados do Censo Demográfico 2010.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALDEIRA, Teresa. Cidade de Muros: Crime, segregação e cidadania na cidade de São Paulo. São Paulo: Editora 34, 2000.

HARVEY, David. Espaços de Esperança. São Paulo: Loyola, 2000.

FUENTES-RIONDA, Roberto & BOTELLO, Nelson. Archipelagos of secutirization: a new logic of security and surveillance in latin american cities. Curitiba: Anais da LAVITS, 2009.

Marcela Lins é mestranda no programa de Pós-Graduação em Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco e atualmente estuda as inflexões da publicidade imobiliária de Recife.

Contato: marcela.lins@gmail.com

 

Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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