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  • Giovana Esther Zucatto

IMPLEMENTAÇÃO E DESAFIOS À AGENDA MULHERES, PAZ E SEGURANÇA NA AMÉRICA DO SUL



Introdução


Em 31 de outubro de 2000, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) adotou, por unanimidade, a Resolução 1325 (S/RES/1325). Na resolução, as partes reivindicam que os países-membros promovam maior representação feminina nas diferentes instâncias políticas e nos mais variados níveis de tomada de decisão, assim como o aumento da participação das mulheres na prevenção, na gestão dos conflitos e na construção da paz. Foi a primeira vez que o CSNU aprovou uma resolução específica e abrangente sobre a temática de gênero. A Resolução 1325 incluiu, de maneira permanente, a temática “Mulheres, Paz e Segurança” (MPS) na agenda da Organização das Nações Unidas (ONU), resultando no que se convencionou chamar de Agenda MPS. Nos seus 20 anos, analisaremos aqui seus desdobramentos na América do Sul.


A primeira parte deste artigo é voltada para o quadro histórico de conformação da Agenda MPS no escopo da ONU. Na segunda parte, abordaremos como as questões previstas pela Agenda MPS se desenvolveram nos países da América do Sul. Primeiro, sobre a questão de equilíbrio de gênero, trataremos da representatividade de mulheres nos parlamentos e gabinetes ministeriais dos países sul-americanos. Depois, nos debruçaremos brevemente sobre o Acordo de Paz na Colômbia e as tratativas de transversalização de gênero e inclusão de mulheres na mesa de negociação. Finalmente, traremos os casos dos quatro países que desenvolveram PNAs na região: Argentina, Brasil, Chile e Paraguai, com atenção especial para o caso brasileiro. O objetivo é que este artigo seja uma tratativa inicial de se pensar os impactos, avanços e desafios nos 20 anos da Agenda MPS na região a partir de alguns exemplos. É importante ressaltar, já de saída, que aqui foram selecionados apenas alguns casos, mas a abrangência da Agenda MPS é ampla e suas possibilidades de implementação são variadas.


A Agenda Mulheres, Paz e Segurança da ONU (2)


Em 1945, ao fim da Segunda Guerra Mundial, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU), fundamentalmente baseada em um ideário voltado para evitar que um conflito daquelas proporções voltasse a acontecer. A Carta de fundação da ONU apresenta em seu preâmbulo a igualdade entre homens e mulheres como um dos seus princípios - tal preceito foi incluído no documento por iniciativa de um grupo de diplomatas liderado pela brasileira Bertha Lutz. No entanto, preocupações mais específicas sobre o local da mulher na guerra e na construção da paz só foram aparecer na pauta da ONU a partir da década de 1990, impulsionadas, de um lado, pelas denúncias de abusos e tráfico sexual nas Missões de Paz da Organização, e, de maneira mais específica, na Conferência Mundial sobre a Mulher de Pequim em 1995, que teve como tema central “Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz”. Em ambos, há um papel fundamental de organizações da sociedade civil, principalmente aquelas de mulheres e de direitos humanos.


A Plataforma de Ação adotada em Pequim trouxe como um de seus 12 eixos temáticos “A mulher e o conflito armado”. Foi a primeira vez que o tema da guerra apareceu de maneira explícita na agenda de gênero da organização. De maneira mais específica, há a vinculação entre a paz e a igualdade de gênero como indissociáveis e o reconhecimento dos efeitos diferenciados do conflito armado sobre homens e mulheres. Daí derivam objetivos estratégicos traçados na Conferência, que incluem aumentar a participação de mulheres na tomada de decisão para soluções dos conflitos, proteger as mulheres em zonas de guerra e promover a contribuição da mulher para o desenvolvimento de uma cultura que favoreça a paz (ONU, 1995).


Em outubro de 2000, o Conselho de Segurança da ONU (CSNU) aprovou por unanimidade a Resolução 1325, que demarcou a institucionalização da ideia de transversalização de gênero (gender mainstreaming) dentro das preocupações de paz e segurança das Nações Unidas, e reconheceu as mulheres como agentes tanto na guerra quanto na paz. De maneira mais específica, prevê-se a inclusão da perspectiva de gênero no planejamento do desarmamento, desmobilização e reintegração de ex-combatentes (artigo 13) e a inclusão mandatória de mulheres nos componentes militares e civis das Missões de Paz (artigo 15) (S/RES/1325).


Desde então, os esforços levados a cabo no âmbito da instituição, no que diz respeito à gestão de conflitos e construção da paz, procuraram adotar estratégias de transversalização de gênero, ou seja, colocar as perspectivas e preocupações de gênero como parte central dessas iniciativas. Isso se traduziu em discursos fortemente normativos que associam uma maior igualdade de gênero - pelo menos em termos de representação - à possibilidade de garantir a paz de forma duradoura. Isso aparece na forma de concepções positivas de paz que priorizam a igualdade de gênero, considerações sobre as vítimas da violência - ou seja, a guerra em seu aspecto individual - e justiça social no pós-guerra (KARIM e BEARDSLEY, 2016). De certa forma, os ideais do liberalismo clássico e a concepção da paz democrática que permeiam o ideário da ONU desde sua criação são atualizados para incluir uma variável de gênero.


Desde a Res. 1325, o CSNU já teve oito novas resoluções relativas à esta temática: Res. 1820/2008; Res. 1888/2009; Res. 1889/2009; Res. 1960/2010; Res. 2106/2013; Resolução 2122/2013; Res. 2242/2015 e Res. 2467/2019. Sem entrar em pormenores, essas resoluções buscaram aprofundar a discussão sobre gênero e paz no interior da organização, assim como pautar ações mais específicas para o avanço da agenda. Ainda, a partir de 2014, um dos principais pontos de convergência dos processos de revisão da arquitetura de paz e segurança da ONU – o Painel de Alto Nível Independente sobre Operações de Paz, o Grupo Consultivo de Peritos sobre a Revisão da Arquitetura de Consolidação da Paz e o Estudo Global sobre a Implementação da Resolução 1325 (2000) do CSNU – é o apontamento da necessidade da “inserção da perspectiva de gênero em todos os aspectos relacionados à promoção e à manutenção da paz e da segurança internacionais” (BRASIL, 2017).


Cabe citar ainda a Res. 2282 de 2016 do CSNU e a Res. 70/262 do mesmo ano da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), que ainda que não estejam diretamente cobertas sob o guarda-chuva da Agenda, trazem uma importante inovação que é o conceito de “paz sustentável” (sustaining peace). O arcabouço provido pelas resoluções prevê, entre outras medidas, “a promoção do desenvolvimento sustentável; a erradicação da pobreza; a reconciliação nacional e o diálogo inclusivo; o acesso à justiça; a promoção da igualdade de gênero; e a mobilização de forma coordenada dos diversos órgãos e entidades do Sistema ONU” (BRASIL, [2016]) como forma de garantir uma sustentação da paz no longo prazo. Essas medidas seriam trabalhadas não só no pós-conflito, mas também teriam natureza preventiva. Em consonância, a ideia de “paz sustentável” reforça a associação normativa entre igualdade de gênero e construção da paz característica da Agenda Mulheres, Paz e Segurança.


O cenário Sul-Americano


Como exposto acima, a Agenda Mulheres, Paz e Segurança prevê a construção de uma paz sustentável para além de simplesmente um cenário de ausência de conflito. Significa, assim, que ela prevê uma série de áreas em que os governos – e também a sociedade civil – devem atuar. De forma geral, a estratégia da ONU para adotar uma aproximação de gênero é baseada nos conceitos de equilíbrio de gênero e transversalização de gênero (GIANINNI; VERMEIJ, 2014), que significa paridade entre homens e mulheres nas diferentes instâncias e que seus esforços securitários serão sempre atravessados por preocupações com questões de gênero. De forma geral, o principal mecanismo que a organização tem incentivado seus países-membros a adotarem é a elaboração de Planos Nacionais de Ação (PNA), com planejamentos para que a Agenda seja levada a cabo internamente.


Quanto à questão de equilíbrio de gênero, os esforços são voltados para uma representação mais balanceada de mulheres em diferentes esferas. Ainda que a atenção imediata seja por um maior número de mulheres em missões de paz e nas mesas de negociação, a Agenda MPS também tem como uma preocupação fundamental a maior participação política feminina. Em relação à participação de mulheres nos parlamentos e gabinetes ministeriais, o quadro é bastante diverso na região. Como mostra a Tabela abaixo (1), há países como a Bolívia, que possui uma das maiores taxas de ocupação feminina no legislativo no mundo, e países como o Brasil, que apresentam uma baixíssima representação de mulheres em suas câmaras parlamentais; o mesmo vale para os gabinetes ministeriais.





Por que é importante, no contexto da implementação da Agenda MPS, que mulheres ocupem cadeiras no legislativo e nos gabinetes ministeriais? Como dito anteriormente, uma das bases da Agenda está na ideia de balança de gênero e sua relação com a construção de uma paz duradoura. De um lado, isso está ancorado na ideia – que funciona quase que como uma norma – vigente no arcabouço dos documentos e missões da ONU, que a paz tende a ser mais sustentável quando construída com a participação de mulheres, como será abordado adiante no caso da Colômbia. Além disso, existe uma certa atualização da ideia de paz democrática kantiana, de que democracias com mais mulheres em seus quadros políticos tendem a ser mais pacíficos – o que acaba soando bastante essencialista.


Porém, a questão a ser ressaltada é que a Agenda MPS traz uma série de previsões do que os países devem implementar internamente, mesmo aqueles que não estejam em situação de conflito, para construir sociedades mais pacíficas, seguras e igualitárias. Entre elas, políticas de enfrentamento à violência de gênero – em suas diferentes formas, promoção da autonomia e independência econômica das mulheres, acesso à educação, entre outras. Uma maior presença de mulheres nesses dois espaços seria uma forma de garantir um interesse estatal em promover esse tipo de política. De fato, o que a experiência tem demonstrado é que mulheres tendem a se envolver mais diretamente em desenvolver políticas que versem sobre direitos femininos e de crianças. Promover a maior participação de mulheres seria, assim, uma forma de induzir a criação de políticas públicas eficientes e duradouras visando à igualdade de gênero.


É preciso ressaltar que os dados da Tabela 1 são dos mandatos correntes em 2019. Nesse intermeio, movimentos importantes aconteceram na região. No caso da Argentina, por exemplo, Alberto Fernández foi eleito presidente, e hoje o gabinete ministerial conta com maior presença de mulheres. Além disso, das 22 pastas ministeriais, 6 alcançaram a paridade (50% mulheres) ou a maioria (+ 50% mulheres), enquanto outras 5 ultrapassaram 40% mulheres em seus quadros ocupacionais. Os ministérios que estão acima dessa média são o da Mulher, Gêneros e Diversidade, com 100% de seu quadro composto por mulheres, seguido pela Segurança, com 61,54% e 53,33% dos cargos de chefia no Ministério da Educação. Turismo e Esporte, Cultura, Meio Ambiente, Desenvolvimento Territorial e Habitat, Justiça e Direitos Humanos e Desenvolvimento Social também se destacam nessa área . O governo argentino lançou, recentemente, uma Campanha Nacional de Prevenção contra as Violências por Motivos de Gênero, que pretende atuar de forma integral contra formas de violência direcionadas a mulheres e à população LGBTI+.


Por outro lado, podemos tomar os casos de Bolívia e Brasil como exemplos negativos. O golpe que empossou Jeanine Añez pode ter significado que uma mulher tenha chegado à presidência do país, mas isso não teve nenhuma influência positiva sobre a situação das mulheres no país; ao contrário, significou a chegada à institucionalidade plurinacional de um campo político que tem em seu cerne a oposição às políticas de paridade de gênero e de diversidade racial que o governo do Movimiento al Socialismo (MAS) tinha como pilar. No caso do Brasil, há um movimento mais longo de contestação aos direitos de grupos minoritários políticos, que já em 2015, ainda no governo da presidenta Dilma Rousseff, resultou na unificação das pastas dos Direitos Humanos com as secretarias de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e de Políticas para as Mulheres formando o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Este ministério passou a se chamar, no governo de Jair Bolsonaro, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, sob o comando, desde o ano passado, da pastora evangélica Damares Alves.


Um caso paradigmático, nesse sentido, é a virada de posição da diplomacia brasileira quanto aos debates sobre gênero e mulheres nos órgãos internacionais, principalmente na Organização das Nações Unidas (ONU). Se, tradicionalmente, o Brasil adotava uma postura bastante progressista e de avanço dessas agendas no âmbito internacional, no novo governo, as diretivas do Itamaraty são para que os diplomatas brasileiros defendam o entendimento de gênero como sexo biológico. Ainda, o Brasil tem adotado uma posição contrária a menções a temas como saúde sexual e reprodutiva, autonomia de escolha feminina e educação sexual. Em sua candidatura à reeleição ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, o governo brasileiro apresentou uma plataforma que excluiu menções a gênero, pobreza e tortura, e incluiu a defesa das estruturas familiares como aspecto central de sua atuação no órgão.


Esse avanço conservador também pode ser notado na Colômbia, especialmente a partir de 2012, e com maior força no período de debate dobre o acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARCEP). Em novembro de 2016, formalizou-se o histórico acordo de paz entre o governo colombiano e as FARC-EP. O diálogo entre o governo de Juan Manuel Santos e as FARCEP iniciou em 2012 e contou com a mediação de Cuba, Venezuela e Noruega e foi firmado inicialmente em setembro de 2016. Em outubro, o acordo foi submetido a plebiscito popular, que o rejeitou por 50,02% dos votos em processo político complexo e polarizado. A partir disto, o governo e as FARC voltaram à mesa de diálogo de Havana para incorporar demandas ao texto. Com a atualização, o texto foi submetido ao Congresso e oficialmente aprovado no dia 24 de novembro de 2016, com início implementação prevista para 1º de novembro do mesmo ano. Os acordos de paz tiveram principais eixos: reforma rural e agrária, modelo de participação políticainstitucional e partidária das FARC, o fim do conflito e a desmobilização da guerrilha, acordos sobre as vítimas e reparação e mecanismos de implementação, verificação e referendação dos termos estabelecidos.


É preciso chamar a atenção para o fato de que o processo de paz colombiano é um dos casos mais emblemáticos de integração da Agenda MPS nas negociações de paz e representa uma importante passagem do paradigma baseado na mulher como vítima do conflito para mulher enquanto participante do processo de paz. Quando as negociações começaram em 2012, nenhuma das equipes de negociação (guerrilha e governo) tinha mulheres. Em 2013, as partes assinaram um acordo com 15 pontos de representação política, um dos quais estabelecia que todo o conteúdo do acordo seria implementado com “uma perspectiva de gênero e garantindo a participação das mulheres”. No entanto, foi em 7 de setembro de 2014 quando as partes concordaram em criar um mecanismo inclusivo e inovador, como o Subcomitê de Gênero. De fato, graças ao Subcomitê de Gênero, as organizações de mulheres colombianas estiveram diretamente representadas e participaram ativamente tanto da mesa de paz em Havana quanto das consultas nacionais e regionais realizadas em todo o país. Embora não seja a primeira vez que se cria uma subcomissão de gênero em um processo de paz, no caso da Colômbia a Subcomissão de Gênero esteve muito presente em todo o processo. As mulheres constituíram até um terço dos participantes à mesa, aproximadamente metade dos participantes nas consultas e mais de 60 por cento das vítimas e especialistas que visitaram a mesa de negociações de paz. (CASANOVA, 2017, p. 15, tradução nossa)


Cabe ressaltar que, no plebiscito sobre o Acordo, as forças de direita e conservadoras aglutinaram-se em torno do “não”, movendo uma campanha pautada no medo de uma possível “venezualização” da Colômbia, assim como em um suposto plano das FARC de impor uma “ideologia de gênero” voltada a destruir a família e subverter os valores sociais tradicionais. Um dos lemas utilizados era “voto não ao plebiscito: defendo a família”. Estar contra o acordo de paz era, assim, estar contra a desintegração da família - especialmente pela questão do casamento homoafetivo -, contra o aborto e contra o “ateísmo comunista” das FARC. O Acordo de Paz colombiano traz, em seu texto, um compromisso com uma “abordagem abrangente e de gênero, baseada nos princípios de equidade e realização progressiva. As partes se comprometem a abordar a desigualdade histórica e vulnerabilidades de mulheres e meninas, a população lésbica, gay, bissexual, transgênero e intersex (LGTBI) e minorias religiosas". Outro ponto que chama a atenção é o fato de que o Acordo de Paz exclui qualquer possibilidade de anistia ou perdão por crimes de violência sexual, aspecto que é consequência direta da participação das mulheres nas negociações de paz por meio do Subcomitê de Gênero (CASANOVA, 2017).


Finalmente, em relação ao principal instrumento de promoção e implementação da Agenda MPS no âmbito local, quatro países sul-americanos possuem PNAs: Argentina, que adotou seu PNA em 2015, o qual teve validade até 2018, e acabou não sendo mais revisado ou renovado; Brasil, que lançou o seu PNA em 2017, e no ano passado estendeu o mandato do mesmo por mais dois anos; Chile, que foi pioneiro na matéria na região, adotando o primeiro PNA em 2009, durante o mandato de Michelle Bachelet, e fez um novo plano revisado em 2015, que esteve em vigor até 2018; e, finalmente, o Paraguai, que lançou seu PNA em 2015, que segue válido até hoje, mas nunca passou por nenhuma revisão.


No nosso caso, em 2017, o governo brasileiro lançou o Plano Nacional de Ação sobre Mulheres, Paz e Segurança, que vinha sendo construído desde 2015, quando a representação do Brasil na ONU anunciou a intenção de, à semelhança de outros países membros que já haviam feito o mesmo, construir um plano nacional que possibilitasse avanços na implementação da Agenda no país. Naquele momento, o Brasil se tornou o quarto país da América do Sul a dispor de um plano nacional, seguido os exemplos do Chile, em 2009, e Argentina e Paraguai, em 2015. O processo de sua elaboração se deu por meio de um grupo de trabalho interinstitucional liderado pelo Ministério das Relações Exteriores, que contou, ainda, com o Ministério da Defesa, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, e o Ministério dos Direitos Humanos, além da ONU Mulheres e do Instituto Igarapé, que atuou como representante da sociedade civil (DRUMOND; REBELO, 2018).


“Destaca-se o contexto político brasileiro que prejudicou o engajamento continuado de algumas dessas instituições. Durante o processo, a Secretaria de Política Especial para Mulheres deixou de existir. O órgão chegou a ser parte do Ministério de Justiça e Cidadania, e, ao fim do processo, estava no Ministério dos Direitos Humanos. O Ministério da Justiça teve ao menos três ministros distintos no mesmo período e a então presidente, Dilma Roussef, sofreu impeachment. Tal contexto político afetou o engajamento dos ministérios e órgãos relacionados com o alcance de resultados para efetivamente implementar o PNA brasileiro. Além disso, a participação da sociedade civil no GT, elemento considerado crucial na elaboração de planos nacionais de ação eficazes, ficou restrita à participação direta de uma única organização e sem a realização de consultas, comissionadas pelo GT, com organizações de mulheres locais”. (DRUMOND; REBELO, 2018, p. 8)


O Plano Nacional de Ação brasileiro está estruturado em quatro pilares: (1) Participação, (2) Prevenção e proteção, (3) Consolidação da Paz e Cooperação Humanitária e (4) Sensibilização, Engajamento e Aprofundamento.


“[A]s atividades propostas pelo plano são voltadas fundamentalmente para as áreas de defesa e política externa, realçando iniciativas voltadas às operações de paz, processos de mediação e resoluções de conflito, e contextos de reconstrução e emergência humanitária. Especificamente quanto aos objetivos gerais, o plano reconhece a sub-representação de mulheres em iniciativas de paz e segurança, e assume o compromisso de ampliar e qualificar a inclusão de brasileiras e locais em situações de conflito e pós-conflito. ainda é conferido destaque à necessidade de o país se engajar com medidas de proteção contra a violência baseada no gênero, assumindo que o empoderamento de mulheres e meninas é um passo na busca deste objetivo. Igualmente importante é a atenção do plano à disseminação de conhecimento sobre a agenda MPS na sociedade brasileira, dando ênfase às iniciativas de sensibilização e ao reconhecimento do papel da sociedade civil.” (DRUMOND; REBELO, 2018, p. 11)


Ainda, uma importante inovação no Plano Nacional de Ação brasileiro está na inclusão dos direitos de pessoas refugiadas e solicitantes de refúgio no Brasil sob um prisma de gênero, dentro do pilar 2, referente à prevenção e proteção (DRUMOND, REBELO, 2018). Inicialmente, o mandato do Plano estava previsto para o biênio 2017- 2018, com uma revisão ao fim desse período, mas, em março de 2019, o governo brasileiro anunciou a extensão do mandato do Plano para mais quatro anos.


O PNA brasileiro abarca a necessidade de se ampliar a presença de mulheres nas Missões de Paz, porém não apresenta diretivas mais tangíveis para impulsionar esse processo, da mesma forma que não traz reflexões sobre os obstáculos e gargalos à entrada e progressão feminina dentro de suas instituições. Isso é representativo não só de uma das principais dificuldades do Plano em si, mas do engajamento do Brasil na Agenda Mulheres, Paz e Segurança de maneira mais ampla, que é construir o entendimento de que os esforços de equilíbrio e tranversalização de gênero na prevenção de conflitos e na construção da paz não podem estar localizados apenas na arena internacional ou dentro do escopo de ação da ONU. Trata-se, na verdade, de um contínuo, que vai da esfera nacional, perpassando políticas de promoção da igualdade e do combate à violência de gênero internamente, até a atuação internacional, tanto diplomaticamente no avanço da agenda nos fóruns internacionais, na mediação de conflitos e na atuação em Missões de Paz. Nos dois casos, a atuação brasileira vem regredindo de maneira dramática.


Considerações Finais


Nos 20 anos da Resolução 1325, é possível perceber uma série de avanços no âmbito da Agenda MPS na América do Sul. No entanto, mais numerosos parecem ser os desafios à sua implementação – e de maneira geral, à construção de sociedades mais inclusivas e igualitárias. De um lado, a falta de planejamento, especialmente em relação à alocação de recursos, tem relegado as iniciativas referentes à Agenda MPS somente ao plano das ideias. Da mesma forma, percebesse um grande descompasso regional nas mais diferentes áreas, desde a representatividade política até a criação de PNAs. Chama a atenção, nesse sentido, que mesmo no ápice dos processos integracionistas, nunca houve alguma forma de articulação regional mais institucionalizada em matéria de mulheres, paz e segurança. Nos últimos anos, no entanto, o grande obstáculo à Agenda MPS na região tem sido o avanço dos regimes conservadores, por vias democráticas ou não, que também significaram um retrocesso na diplomacia das organizações internacionais.



NOTAS


(1) Elaborada a partir da base de dados da UN Women. Disponível em: https://data.unwomen.org/data-portal . Acesso em 14 out 2020


(2) Sessão elaborada a partir do artigo "Paz, substantivo feminino (?)". ZUCATTO, Giovana E. & MONTEIRO, Giovanna L. (2020), “Paz, substantivo feminino (?)”. Horizontes ao Sul. Disponível em: www.horizontesaosul.com/single-post/2020/10/01/PAZ-SUBSTANTIVO-FEMININO-


REFRÊNCIAS


BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. (2017) Plano Nacional de Ação sobre Mulheres, Paz e Segurança. Brasília: FUNAG.


CASANOVA, Millán Requena. (2017) La aplicación de la Agenda Mujeres, paz y seguridad en los procesos de paz: la participación de mujeres em la prevención y resolución de conflictos. Revista Electrónica de Estudios Internacionales. n. 34, p. 1-37. DOI: 10.17103/reei.34.04


CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU. Resolução 1325. Index: S/RES/1325. 31 de outubro de 2000. Disponível em: https://undocs.org DRUMOND, Paula; REBELO; Tamya. (2018) Implementando a agenda sobre “Mulheres, Paz e Segurança” no Brasil: uma revisão do Plano Nacional de Ação. Publicações Igarapé, artigo estratégico 31, mar, 36p.

GIANNINE, Renata; VERMEIJ, Lotte. (2014) Women, Peace and Security: Gender Challenges within UN Peacekeeping Missions. Policy Brief, v. 5. Norwegian Institute of International Affairs. P.1-5


KARIM, S.; BEARSDLEY, K. (2016). Explaining sexual exploitation and abuse in peacekeeping missions. Journal of Peace Research, 53(1), 100–115. doi:10.1177/0022343315615506


ONU. Organização das Nações Unidas. (1995) Declaração e plataforma de ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher. Pequim.



Como citar esse texto: ZUCATTO, Giovana Esther (2020), "Implementação e desafios à Agenda Mulheres, Paz e Segurança na América do Sul". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/implementa%C3%A7%C3%A3o-e-desafios-a-agenda-mulheres-paz-e-seguranca-na-america-do-sul


Giovana Esther Zucatto é doutoranda em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Coordenadora do Observatório Feminista de Relações Internacionais (OFRI). Pesquisadora associada do Observatório Político Sul-Americano (OPSA) e do Núcleo de Estudos em Teoria Social da América Latina (NETSAL).


Editor responsável: Rafael Rezende



Esta publicação é fruto de parceria de divulgação científica da Horizontes ao Sul (HaoS) e do Observatório Político Sul-Americano (OPSA). O OPSA é um grupo de pesquisa de referência nas Relações Internacionais e na Ciência Política destinado à análise, ao monitoramento e ao registro de eventos políticos na América do Sul. O núcleo, coordenado por Maria Regina Soares de Lima, Letícia Pinheiro e Marianna Restum Albuquerque (coordenadora adjunta), tem sede no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).




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