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Simone Gomes

A CRISE, OS PLANOS DE SEGURANÇA E A POLISSÊMICA VIOLÊNCIA EM EL SALVADOR


Foto: Simone Gomes



Os que não tem pátria nem nação aqui

mas só uma quinta

limitada ao noroeste com Guatemala ao norte com Honduras

ao sudeste com o golfo de Fonseca e Nicarágua

e ao sul com o Oceano Pacífico

quinta na qual os americanos vieram

pra montar algumas fábricas

e onde pouco a pouco foram surgindo

cidades povos vilas e aldeias

cheias de brutos que trabalham

e de brutos armados até os dentes que não trabalham

mas mantêm em seus postos

os brutos que trabalham

Roque Dalton (1935-1975)

Poeta salvadorenho

Presa no trânsito em uma movimentada rua em San Salvador, em um carro manufaturado pelas cadeias globais de produção, penso no contraste entre o veículo de luxo e a pobreza ao redor [1]. O motorista, um jovem salvadorenho que terminava seu doutorado em Ciências Sociais no México à época, comenta como era relativamente fácil obter um carro desses no país. Eles vinham dos EUA, e na qualidade de seminovos, chegavam sensivelmente mais baratos. No caso, o carro em que eu pegava uma carona nas ruas da capital em que não se transita facilmente à noite por conta de uma imposições das pandillas locais [2], tinha sido um presente de seu irmão, imigrante vivendo há anos o American Dream. “A economia em El Salvador é simples”, ele comenta: “nosso maior produto de exportação somos nós mesmos”. Parte do retrato da El Salvador contemporânea é composto pela mão de obra em países estrangeiros, atravessando sucessivas fronteiras para escapar do crime organizado nas primeiras décadas do século XXI, responsável por importantes remessas destinadas aos familiares que ficaram [3].



Fevereiro de 2020


Junot Díaz, escritor dominicano-estadunidense, em seu premiado A fantástica vida breve de Oscar Wao [4], insere a República Dominicana no mapa, em uma história sobre um adolescente acima do peso, enquanto narra os dramáticos acontecimentos do último século no país. El Salvador, lar de 6,5 milhões de habitantes e espaço de 20.935 quilômetros quadrados na América Central, ainda nem entrou no mapa para uma maioria, mas essa semana ganhou as notícias com uma crise institucional surgida da fricção entre Executivo e Congresso Nacional.


A falta de conhecimento generalizada sobre países latino-americanos, entretanto, não é a única convergência que une realidades distintas desta região. Tais contextos nacionais também são marcados por frequentes intervenções militares desde o século XX. El Salvador é emblemático nesses quesitos. O início do presente ano, mais especificamente o mês de fevereiro, começou com a Assembleia Legislativa do país militarizada, ordenada pelo presidente Nayib Bukele, após convocar o Conselho de Ministros e Deputados a uma seção extraordinária no domingo, 9/02, com a finalidade de aprovar um empréstimo de 109 milhões de dólares (470 milhões de reais) para financiar ações de segurança no país, que possui a triste alcunha de mais violento do mundo.


Os contornos dos acontecimentos do início de fevereiro dão-se pelo estilo ligeiro de governar de Bukele, ex-membro do partido Frente de Libertação Nacional Farabundo Martí (FMLN), oriundo da guerrilha salvadorenha da década de 1980. Conhecido por seus frequentes tuítes, o jovem de 38 anos, eleito no início de 2019, vem demonstrando uma forma autoritária e populista de governar [5]. Do anúncio de investimentos vultuosos da China até a exposição de fotos de família, a governança do século XXI personificada por Bukele vem demonstrando um certo desapreço pela democracia.


Esse não é o primeiro plano de segurança do país, e tampouco o inaugurador da articulação da “delinquência” como mote para endurecer o combate à insegurança salvadorenha. Os anteriores Mano Dura, Super Mano Dura, El Salvador Seguro e Control Territorial serviram como introdutores da remilitarização da região. O plano atual versava originalmente sobre a modernização e fortalecimento da Polícia Nacional Civil (PNC) e do Ministério da Defesa. Até ai, tudo bem. O revés deu-se nos eventos posteriores a não aprovação da III fase do projeto, que incluiu o prazo de uma semana dado por Bukele aos congressistas “sem-vergonhas” para a chancela da proposta. A indicação vinha ainda acompanhada por uma ameaça de conclamar a insurreição popular.


Bukele usou um tuíte para chamar a população às ruas em caso de não aprovação do pacote. O interessante deste marco é a ideia de mobilização pautada verticalmente. A principal oposição – nas redes e fora delas – à proposta de Bukele, é feita por Mario Ponce, presidente do Congresso, que lamentou a perseguição aos congressistas que votaram contra, a incitação de protestos subsequente e a invasão das forças armadas ao Congresso, passados apenas trinta e oito anos dos acordos de paz, de 1982 [6].




O financiamento ao plano Control Territorial el Gobierno de El Salvador, pelo Banco Centroamericano de Integración Económica (BCIE) viria da compra de equipamentos da multinacional mexicana SeguriTech Integral Security, investigada pela venda de câmeras de vigilância que não funcionam e pelo superfaturamento de equipamentos [7]. Aqui podemos observar a faceta perversa do Capitalismo de Vigilância, segundo Zuboff [8], e constatar, para além da rapidez dos acontecimentos no país, uma justaposição entre a violência das pandillas e a legitimidade necessária para justificar medidas excepcionais. As tensões do crescimento econômico em El Salvador podem ser entendidas por contradições da expansão do capitalismo no século XX, que teriam desembocado em uma deslegitimação do poder político, em vista da validação de regimes militares [9]. Verdade no início da década de 1980, verdade atualmente.


Não é exagero utilizar o adjetivo violento para falar do contexto salvadorenho. Oscar Ramírez [10] menciona que em 2015 as taxas de homicídio começaram a despontar no país, chegando a um assassinato por hora e 4 mil por ano, fruto de uma desastrosa política repressiva que culminou na criação de grupos de extermínio formados nos Estados Unidos da América [11]. As pandillas Mara Salvatrucha, Barrio 18 e Mirada Lokotes 13, atuantes em El Salvador, têm sua gênese no sul da Califórnia, com a migração de criminosos fugindo de uma guerra civil patrocinada pelos estadunidenses. A autodefesa das pandillas, agrupadas por sua alteridade em forma de pertencimento étnico – latinos – nos presídios dos EUA, sofreu com uma deportação do país na década de 1990, em uma ideia encampada pelo Congresso e pelo então presidente, Clinton [12].


"Pobre Mexico, tan lejos de Dios y tan cerca de Estados Unidos", frase atribuída ao presidente mexicano Porfírio Diaz, vale, em alguma medida, aos países centroamericanos, dos quais El Salvador não escapa. Com a deportação dos criminosos organizados em solo estadunidense, o país iniciou um período de aumento da violência – agora organizada – e uma gradativa volta da intervenção dos militares, para resolver problemas relativos à segurança. Essa, foi ora impulsionada pelos partidos Aliança Republicana Nacionalista (Arena), FMLN, ora pelo inquilino da vez da Casa Branca, atualmente em uma contenda sobre seções extraordinárias nos domingos para aprovar fundos para mais um plano emergencial de segurança.


O resultado da crise iniciada nesse fevereiro ainda é incerto, mas a retirada da proteção policial dos deputados da oposição, o cerco do exército à sede legislativa e as declarações dos chefes militares dizendo que podem chegar às últimas consequências caso o presidente assim ordene, são críticas. As memórias do período conhecido como “Guerra Suja” contra o povo salvadorenho, notadamente sua juventude, a securitização da segurança pública e a aprovação de planos de soluções aparentemente simples para problemas complexos é preocupante. Igualmente alarmante são os dados de uma pesquisa da Universidad Centroamericana José Simeón Cañas (UCA), em que uma significativa proporção dos salvadorenhos estaria de acordo com a repressão e eliminação de ameaças da população civil.


Conquanto o futuro seja incerto, o roteiro autoritário parece seguir em conformidade com o passado da região. A sociedade civil salvadorenha e algumas organizações internacionais já manifestaram-se contra eventuais abusos de autoridade, e notadamente contra o pedido de “insurreição popular” caso o pacote não seja aprovado pelo Congresso, porém é preciso manter-se vigilante [13]. Um repúdio adicional veio do diretor da Humans Right Watch para as Américas, José Miguel Vivanco, do que chamou de “exibição de força bruta” [14]. A julgar pelos últimos acontecimentos, o perverso postulado antidemocrático do presidente conta com a tríade anuência, militarização e insurreição para que o Executivo tenha aprovadas todas as suas pautas.



Epílogo


Quando Humberto Gessinger entoava, na década de 1980, “Minha vida é tão confusa quanto a América Central”, ele não exagerava a respeito do istmo [15]. As incertezas econômicas do país após a independência em 1821 incluíram um capital internacional indisposto a investir no país, uma importação de manufaturas inglesas que praticamente arruinou as chances de uma indústria nacional, seguida por guerras com efeitos devastadores no século XX (Guerra del futebol, em 1969 [16] e Guerra Civil, de 1980-1992 [17]), e desembocaram em um estado com escassos recursos além de sua mão de obra. Não à toa os trabalhadores são seu principal produto e não à toa eles estão em fuga da violência organizada instalada nacionalmente, com a guarida estadunidense. A dependência econômica dos Estados Unidos é fundacional no istmo, em geral, e em El Salvador, especificamente, que transita hoje de um modelo agroexportador para exportações de produtos industriais de baixo valor agregado.


Os acordos de paz, firmados em 1992, apresentam um horizonte distante em um continente de problemas tão permeados por uma violência que já adquiriu as credenciais para ser considerada estrutural. A crise econômica global de 2008 deixou sequelas na região, especialmente na escassez do crédito, no fechamento das maquilas e no subsequente aumento do fluxo migratório para os EUA, bem como na deportação dos detidos. Esperamos que as cenas dos próximos capítulos – dentro e fora das redes – sejam apostas efetivas na solução dos problemas da violência e êxodo salvadorenho, e não mais promessas e intervenções frequentes.




Centroamerica vibra y sueña

Rubén Darío (1867-1916)

Poeta nicareguense



NOTAS


[1] A autora gostaria de agradecer à Yasmin Curzi, Marcia Rangel Candido e Rodrigo Cantu pela leitura atenciosa de sempre.


[2] Pandillas, gangues ou facções, em espanhol, no original.


[3] Trecho do diário de campo, Novembro 2016.


[4] Publicado no Brasil pela Editora Record, em 2015.


[5] Sobre esse assunto, ver o texto https://www.horizontesaosul.com/single-post/2019/06/18/AFINAL-O-QUE-%25C3%2589-POPULISMO


[6] Disponível em:: https://www.cejil.org/es/organizaciones-nacionales-e-internacionales-preocupadas-tension-politica-salvador


[7] Disponível em: https://www.sinembargo.mx/10-02-2020/3727871


[8] ZUBOFF, Shoshana. (2019). The age of surveillance capitalism: The fight for a human future at the new frontier of power. Profile Books.


[9] Para mais informações, ver PASTOR, Rodolfo. (1988). Historia de Centroamérica.


[10] Para mais informações, ver RAMIREZ, Oscar. A history of violence – Living and dying in Central America.


[11] Disponível em: https://edition.cnn.com/interactive/2018/05/world/el-salvador-police-intl/


[12] Disponível em: https://jacobinmag.com/2020/02/el-salvador-violence-hollywood-kid-ms13-hitman


[13] Disponível em: https://www.elsalvador.com/noticias/nacional/crisis-asamblea-legislativa-pronunciamiento-comunidad-internacional-bukele/685014/2020/


[14] Disponível em: https://www.jornada.com.mx/ultimas/mundo/2020/02/11/pone-freno-la-corte-de-el-salvador-a-los-arrebatos-de-bukele-5088.html


[15] Letra de Infinita Highway, Engenheiros do Hawai.


[16] Guerra entre Honduras e El Salvador, governadas então por ditaduras militares, em 1969, considerada a primeira guerra demográfica da América Latina. Sua alcunha deve-se ao momento em que se desenrolou.


[17] Para mais informações sobre a Guerra Civil, ver MATIJASCIC, Vanessa Braga. El Salvador: da guerra à paz”.


Simone Gomes é professora de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e uma das editoras da Horizontes ao Sul.


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