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  • Carlos Artur Gallo

MEMÓRIA, VERDADE, JUSTIÇA... E PANDEMIA: UMA PREVISÃO SOBRE A AGENDA DAS POLÍTICAS DE MEMÓRIA NA ARG

Em abril de 2020, dois fatos relacionados às lutas por memória, verdade e justiça no Cone Sul e, mais especificamente, na Argentina e no Brasil, completaram suas "datas redondas". No dia 22 de abril, a Argentina relembrou a passagem dos 35 anos desde o início do "Juicio a las Juntas", ou seja, do julgamento das Juntas Militares que governaram o país entre 1976 e 1983, quando a ditadura civil-militar foi encerrada. No Brasil, por sua vez, entre os dias 28 e 29 do mesmo mês, fez 10 anos do julgamento da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 (ADPF nº 153) pelo Supremo Tribunal Federal (STF).


O "Juicio a las Juntas", realizado na Argentina durante o ano de 1985, cuja sentença foi anunciada em dezembro daquele ano, terminou com o reconhecimento dos crimes cometidos pela ditadura e com a condenação de praticamente todos os integrantes das Juntas Militares que governaram o país durante o regime autoritário. Nos anos seguintes, outras cadeias de comando seriam julgadas e condenadas, até que, cedendo às pressões das Forças Armadas[1], houve um retrocesso que deu início à "fase de impunidade". Tal período, denunciado reiteradamente por movimentos de direitos humanos, se estenderia até o início dos anos 2000. De lá para cá, o Judiciário argentino ratificou normas internacionais de direitos humanos, revisou decisões, e, após decisão histórica da Corte Suprema de Justicia de la Nación (CSJN), desde junho de 2005 foi possível retomar o julgamento de criminosos da ditadura e recolocar centenas de violadores de direitos humanos atrás das grades[2].


Créditos: Ricardo Siri Liniers


O julgamento da ADPF nº 153 conduzido pelo STF brasileiro em 2010 ocorreu numa conjuntura bastante diferente. Ao contrário do sucedido na Argentina, cuja Junta Militar foi julgada pouco tempo após ter deixado o governo, no Brasil, havia passado mais de vinte e cinco anos desde que os militares tinham saído do poder. Outra diferença, ademais, se concretizou em relação ao que foi julgado. A ADPF não envolvia a análise de um caso concreto, com os réus e os crimes identificados. Nada disso. A decisão emitida pelo STF tratava da interpretação dada à Lei da Anistia (Lei nº 6.683/1979) pelo Judiciário brasileiro. Devido à tal interpretação, dada à anistia desde a sua edição, durante a transição à democracia no país, ninguém fora, até então, julgado e condenado penalmente pelos crimes da ditadura. Agentes da repressão foram anistiados, equiparados aos militantes políticos presos e exilados pelo regime militar. Pela maioria dos votos, e, numa decisão marcada por interpretações históricas contraditórias e polêmicas, os ministros do Supremo decidiram que não era possível, via Poder Judiciário, acertar as contas com o passado[3]. Ninguém fora julgado pelos crimes da ditadura até 2010, ninguém seria julgado nos anos seguintes.


O saldo dos julgamentos é paradigmático e, ao mesmo tempo, sintomático, tendo pautado os principais movimentos realizados em ambos os países para lidar, na vigência da nova democracia, com os crimes e os criminosos das ditaduras de Segurança Nacional. Em meio à pandemia que se estende para todas as regiões do mundo desde o início do ano e, desde fevereiro, se intensifica dramaticamente nos países ocidentais, é natural que as efemérides mencionadas tenham ficado relegadas a um segundo plano do debate e fora do foco das atenções. Pensar o passado, em um cenário cujo futuro imediato é bastante incerto pode parecer uma tarefa que, com alguma razão, é menos urgente.


A questão que fica pendente, diante do exposto, se refere à continuidade das políticas de memória num cenário político pós-pandemia. Sim, menciona-se aqui o recurso analítico (um pouco futurológico, sem dúvidas) de prever como algo será enfrentado posteriormente. Não é preciso ser muito otimista para crer que a pandemia vai passar. Isto é um fato, respaldado, inclusive, nos dados disponibilizados pelos estudos que vêm sendo bravamente realizados por pesquisadoras e pesquisadores de diversas regiões do mundo, e, especialmente, no contexto brasileiro, marcado pelo desprezo do atual governo para com a comunidade acadêmica e científica. Ou seja, ainda que não se saiba quando exatamente, é certo que em algum momento, mais ou menos breve, a pandemia perderá sua força e, pouco a pouco, uma nova “normalidade” política, social e econômica, será estabelecida e construída.


Qual o lugar das lutas por memória, verdade e justiça numa conjuntura pós-pandêmica? A resposta é incerta sob diversos aspectos. Retomar o modo como se enfrentou o passado antes da Covid-19 , no entanto, é algo essencial para tentar compreender quais as possibilidades de ação, em curto e médio prazo, no âmbito das políticas de memória.


Entre avanços e recuos, a Argentina construiu uma agenda de políticas de memória cujas origens remetem ao contexto da transição à democracia. Esta trajetória foi iniciada em dezembro de 1983, quando foi encerrada a ditadura e o presidente Raúl Alfonsín editou normas que permitiram o julgamento das Juntas Militares e criaram, para subsidiá-lo, a Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas (CONADEP), responsável por ampla investigação que resultou na publicação do relatório “Nunca Más”. Nos anos que se seguiram, apesar dos recuos no tocante à realização dos julgamentos dos agentes da repressão, avanços foram conquistados no que se refere à reparação simbólica e pecuniária de vítimas da ditadura. Nos anos 2000, com a retomada dos julgamentos, durante os Governos Kirchner (2003-2015), mais avanços foram implementados[4].


No Brasil, as demandas de vítimas da ditadura foram represadas no contexto da transição negociada. O entendimento de que a anistia foi recíproca pautou as decisões de todos os Governos democráticos da Nova República (1985-2016) no tocante à realização da justiça para os crimes cometidos durante o regime militar. A reparação às vítimas começou a avançar a partir de 1995, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso publicou a Lei nº 9.140 e foi criada a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos (CEMDP); e, principalmente, em 2002, com o início dos trabalhos da Comissão da Anistia. Até a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), cujos trabalhos seriam iniciados em maio de 2012, um longo e tortuoso caminho ainda seria percorrido. As recomendações do Relatório Final da CNV, entregue à presidenta Dilma Rousseff em dezembro de 2014, por sinal, foram inviabilizadas pela crise política iniciada em 2015 (com as manifestações de rua pedindo o “Fora Dilma”), agravada em 2016 (com o Golpe parlamentar travestido de impeachment que depôs a presidenta) e aprofundada em 2018 (com a prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e a eleição de Jair Bolsonaro).


Num cenário como o argentino, no qual a agenda de lutas políticas e sociais em torno do tema, entre avanços e recuos, nunca saiu da cena política do país desde a década de 1980, o prognóstico sugere que, após a pandemia, serão potencialmente retomadas as disputas por memória, verdade e justiça. É promissor neste sentido o crescimento da adesão das novas gerações às causas encabeçadas por madres e abuelas desde o final da década de 1970. Basta observar, além da criação de grupos como a associação de filhos e netos de desaparecidos políticos na Argentina, a presença constante de jovens nas manifestações multitudinárias que foram realizadas nos últimos anos.


Outro aspecto que parece promissor, no contexto argentino, é a mudança de governo ocorrida em dezembro de 2019. Ao contrário do Governo Macri (2015-2019), o novo governo federal, presidido por Alberto Fernández, tem se mostrado sensível às demandas por memória, verdade e justiça, e buscado, ainda que parte de suas ações tenham sido interrompidas pela crise, uma reaproximação com organizações de direitos humanos afastadas pela gestão anterior.


Em contrapartida, no Brasil, a previsão é bastante negativa. Além da crise sanitária, há uma crise política que, sob alguns aspectos, chega a ser pior que a própria pandemia. A adesão da população à causa dos familiares de mortos e desaparecidos da ditadura, mesmo tendo sido ampliada em alguns momentos recentes, nunca conseguiu muita força. Entre os brasileiros, diga-se de passagem, persistem opiniões conflitivas entre um apoio relativo à democracia e a defesa da ideia segundo a qual direitos humanos são “direitos de bandidos". Como esperar, portanto, que as políticas de memória sejam preservadas, reativadas e fortalecidas pós-pandemia, se, na prática, as mesmas nunca foram prioridade de nenhum dos Governos democráticos da Nova República?


O acerto de contas com o passado brasileiro, diferentemente do que foi realizado no país vizinho, provavelmente será novamente relegado pelos governantes. O que será diferente é a desculpa instrumentalizada. Antes, o esquecimento foi induzido pela lógica da transição negociada. Agora, é provável que seja sacramentado sob a lógica das contingências que absorverão as reservas de um país em que o tecido político vem sendo desconstituído pelas sucessivas crises e cujas desigualdades sociais serão por elas aprofundadas. Parece evidente, além disso, que um governo comprometido com o negacionismo histórico e liderado por um notável defensor de torturadores provavelmente caminhará no sentido contrário ao incremento das políticas de memória no país.


NOTAS


[1] Faço referência, aqui, aos desdobramentos da crise política gerada com o movimento dos “caras pintadas”, que abriu caminho para a contenção dos julgamentos na Argentina. Ocorridas entre abril de 1987 e 1990, as manifestações dos caras pintadas foram organizadas por setores das Forças Armadas argentinas insatisfeitos com a punição (ou, pelo menos, com a possibilidade de punição) dos crimes cometidos pela ditadura, entre outras questões relacionadas à defesa nacional. Para mais informações, ver: CELS, 2010.


[2] Sobre o julgamento da CSJN, ver: GALLO, 2018.


[3] Uma análise detalhada do julgamento da ADPF nº 153 pelo STF pode ser encontrada em: GALLO, 2017.


[4] Sobre as políticas de memória implementadas na Argentina, e, especificamente, sobre os avanços obtidos a partir da chegada de Néstor Kirchner à Presidência, ver: CALADO, 2014.



REFERÊNCIAS


CALADO, Rui. (2014), “Políticas de memória na Argentina (1983-2010)”. Transição política, justiça e democracia. História – Revista da FLUP, Porto, v. IV, n. 4, p.51-64.


CELS – Centro de Estudios Legales y Sociales. (2019), Derechos humanos en Argentina: informe 2010. Buenos Aires: Siglo XXI.


GALLO, Carlos Artur. (2017), "O Brasil entre a memória, o esquecimento e a (in)justiça: uma análise do julgamento da ADPF nº 153 pelo Supremo Tribunal Federal". Revista Brasileira de Ciência Política, n.24, p.81-114.


_____. (2018), Um acerto de contas com o passado: crimes da ditadura, “leis de impunidade” e decisões das Supremas Cortes no Brasil e na Argentina. Curitiba: Appris.




Carlos Artur Gallo é Professor do Departamento de Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Contato: galloadv@gmail.com

Como citar esse texto: GALLO, Carlos Artur. (2020), "Memória, Verdade, Justiça...e Pandemia: Uma previsão sobre a agenda das Políticas de Memória na Argentina e no Brasil". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/05/19/MEMORIA-VERDADE-JUSTICA-E-PANDEMIA-UMA-PREVISAO-SOBRE-A-AGENDA-DAS-POLITICAS-DE-MEMORIA-NA-ARGENTINA-E-NO-BRASIL

Editoras Responsáveis: Simone Gomes e Marcia Rangel Candido












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