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  • Amanda Bezerra

UM SISTEMA SOB SUSPEITA


Foto: Etienne Laurrent / EPA / Ouest France




O que é natural é o micróbio. O resto – a saúde, a integridade, a pureza, se quiser – é um efeito da vontade, de uma vontade que não deve jamais se deter. O homem direito, aquele que não infecta quase ninguém, é aquele que tem o menor número de distrações possível. E como é preciso ter vontade e tensão para nunca se ficar distraído!

Albert Camus




28 de fevereiro de 2020, Paris. Neste dia, eu recebi notícias alarmantes sobre o Coronavírus. Assim mesmo. Um vírus conhecido, mas de roupa nova. Eu, dentro de toda a minha ignorância sobre assuntos de infectologia, senti a minha vida mudar completamente naquele momento. Naquele impacto.


Atualmente, moro na região dos alpes franceses, onde faço um mestrado em Sociologia na Université Grenoble Alpes, e estava de férias em Paris. Passei por diversos pontos turísticos, completamente cheios, lotados de gente de todo o mundo. Antes das informações sobre o COVID-19, a minha maior preocupação era respeitar as regras francesas de conduta nos espaços públicos, neste país de sociabilidade tão distinta da brasileira, ter a tão falada politesse. Depois, minha maior preocupação passaria a ser aquelas milhares de pessoas, cada vida ali presente, passando um dia ordinário ou extraordinário -esse era o meu caso-, sonhando em Paris.


Percebi que representaríamos perigo umas às outras. A proximidade desencadeada pelo desejo de conhecer e visitar lugares poderia ser o começo do fim. De repente, os meus momentos banais se tornaram tensos. Talvez eu presenciasse os últimos momentos tranquilos de alguém ou até mesmo os meus, durante um longo tempo. Sinto que vivemos um longo tempo. Tempo esse que parece ter sido transferido para um outro lugar, ao misterioso mundo da internet. A vida fora dela tornou-se arrastada, longa, espaçada e incerta. Nela, os únicos momentos lentos que vivi foram causados por um congestionamento de rede. Estamos todos lá, a todo momento. Lendo, jogando, assistindo lives, fazendo lives, em português, inglês, francês, espanhol, escovando os dentes, dormindo, acordando, bebendo, ando, endo, indo... O mundo parece querer se distrair o tempo inteiro. Eu, particularmente, continuo a viver a dura realidade de ser uma mulher mestiça, nordestina, brasileira e latino-americana na França.


No dia 16 de março de 2020, Monsieur Macron, presidente da França, anunciou que o país estava em guerra. Através de um discurso intitulado Adresse aux Français [1], Emmanuel Macron comunicou à população francesa a existência de um inimigo comum. Assim, ele de fato falou aos franceses: na proteção deles, na ajuda aos compatriotas e lhes chamou à responsabilidade vigilante e coletiva.


Naquele mesmo dia, à tarde, antes mesmo do seu pronunciamento, recebi um convite de saída da residência universitária. Como uma indicação, nós precisaríamos deixar a nossa casa em um dia. Sem nenhuma mensagem de apoio ou de espaços comunicativos, apenas diretrizes para que a instituição passasse bem. Devíamos nos deixar instruir. Eu vi pais de alguns estudantes pararem os seus carros diante dos prédios para que os filhos se abrigassem junto à família. Mas também vi grupos de estrangeiros desesperados, com colchões na cabeça e diversas malas em mãos, correndo para lá e para cá. Essas foram duas de algumas imagens de jovens e adultos responsabilizados por uma situação sistêmica. Eu? Permaneci à minha janela, enquanto pensava “o que eu posso fazer?”. Duplamente abandonada, no entre-lugar político. Nem cidadã aqui, nem acolhida do lado de lá.


Enquanto as instituições francesas se preparavam para seguir as medidas de segurança sanitária e as regras de confinamento anunciadas pelo Monsieur Macron que, vale lembrar, falou especificamente aos franceses, eu vi a minha vida ficar de pernas para o ar. Sozinha. Completamente perdida. Busquei informações dentro de grupos de brasileiros, que normalizaram a situação: “é difícil até mesmo para os franceses”. Fronteiras fechadas, o direito de ir e vir interno cerceado, sem informações, longe das pessoas amadas, praticamente na rua (aparentemente, o lugar mais perigoso do mundo) e nenhum espaço de apoio. Nem mesmo do nosso consulado. Fechado. Calado. Com um presidente nos levando à beira do abismo total. O Brasil nos abandonou. A França, no mínimo, nos negligenciou. Nós somos imigrantes. A França sempre esteve em guerra.


De agora em diante, nunca mais esquecerei o meu entre-lugar [2]. Essa luta nunca foi pela vida, nem mesmo nos discursos dos grandes líderes mundiais. Ela aparece como um processo de aniquilação de um inimigo comum, o qual não vemos, tocamos ou escutamos [3]. E, assim, a partir de uma retórica sangrenta, de destruição e belicismo, falamos em solidariedade. Isso não soa bizarro? De repente, a sensação de prisão, o incômodo de não ter mais liberdade, a revolta por não termos sido lembrados na attestation de déplacement [4] - eu desejava chegar ao aeroporto e voltar para o Brasil -, tudo isso se tornou pequeno aos olhos dos outros. Vigilantes. “Existe algo muito maior!” Nós nos tornamos apenas reclamões e insensatos diante deles. “Tudo é tão óbvio!”. Devemos esperar o caos passar. Obedientes. O caos alguma vez passou?


Assim, comecei a pensar na minha insana vontade de voltar àquele mundo que não existe mais. Mas me dei conta que ele nunca existiu. Temos tratado do COVID-19 como um problema natural ou de certos grupos étnicos. “A culpa é deles!”. Esse vírus, na verdade, faz parte do sistema que determina, inclusive, a vida e a morte.


Além do discurso de guerra não ajudar no funcionamento do sistema de saúde, ele reforça interesses sociais e políticos de controle dos corpos. Até mesmo os franceses parecem esquecer as análises de Michel Foucault. Em Vigiar e Punir, o autor demonstra como intervenções por enclausuramento ou trabalho obrigatório tem por objetivo privar os indivíduos de sua liberdade e docilizar seus corpos. Assim, os carrascos passaram a ser substituídos por psicólogos, médicos, policiais e até mesmo educadores. A autoridade punitiva dada aos especialistas. Dessa forma, as instituições começam a ser consideradas espaços disciplinadores e construtores de corpos dóceis: a família, as empresas, as universidades, os hospitais, etc., ocupam esse espaço da proibição da expressão do pensamento, do olhar de reprovação, do controle das sensações e da exigência da boa conduta [5].


Assim, temos aceitado e reproduzido os discursos impostos em nome da salvação dos nossos. Além de vibrarmos com a retórica da guerra, copiamos os slogans de uma campanha bélica. Não como uma escolha pessoal, mas como uma forma de constranger os outros: “eu salvo vidas, eu fico em casa” - Je sauve des vies, je reste chez moi [6].


No capítulo III de Vigiar e Punir, Foucault nos apresenta seu argumento por meio da análise de uma cidade infestada pela Peste e do registro médico-político. Ele demonstra como o poder disciplinar se encontra no local dos acontecimentos registrados, do ininterrupto trabalho de escrita e controle de localização dos vivos, mortos e doentes. Aqui o biopoder se faz presente: na regulamentação da população, no deixar viver, no controle dos corpos, enfim, na gestão da vida (Foucault, 1990).


Já para Deleuze, o conceito de disciplina não dá mais conta da realidade. A disciplina é uma forma de desempenhar o poder, sendo esse uma relação de forças que reprime em última instância. A vigilância autorizava que a disciplina atuasse com um custo moderado, o que disseminou os meios disciplinares socialmente. A constituição da Sociedade Disciplinar se dava nesse processo de produção de individualidade, onde somos vigias uns dos outros. O autor nos alerta para uma mudança específica: na Sociedade Disciplinar, o seu funcionamento se dava pelo encarceramento, ou seja, por meio do confinamento massivo. A disciplina acontecia dentro do espaço fechado. Porém, para Deleuze, a universalização social da disciplina necessita de alguma abertura, de fluxos de disciplina pelos espaços. Dessa forma, a disciplina pode transformar-se em controle (Lauro, 2018).


Assim, passamos da Sociedade Disciplinar à Sociedade do Controle. É a combinação entre biopolítica e disciplina.


“O controle não é uma disciplina. Com uma estrada não se enclausuram pessoas, mas ao fazer estradas, multiplicam-se os meios de controle. Não digo que esse seja o único objetivo das estradas, mas as pessoas podem trafegar até o infinito e ‘livremente’, sem a mínima clausura, e serem perfeitamente controladas. Esse é o nosso futuro” (Deleuze, 1999: s.p.).


Enquanto aceitamos as diretrizes e imposições institucionais, num processo de servidão voluntária, as instituições negam os cuidados necessários, nos confinam e ditam, inclusive, as nossas sensações individuais e coletivas. Um dos sintomas disso é que nós continuamos a reproduzir a ideia de que o mundo já não é o mesmo, sem percebermos a importância dessa reprodução na estabilidade do mundo. Afinal, assim se controla melhor. Obedecer deixou de ser um ato da força disciplinar para se tornar um hábito. Por isso, nesse ínterim de espera e obediência, criamos a problemática esperança de uma futura vacina sem nem ao menos questioná-la.


Segundo Valérie Bugault [7], acontecerá uma fase de vacinação obrigatória que será decisiva à garantia do controle direto de banqueiros, grandes farmácias e similares sobre as populações. E cada pessoa terá de obedecer sob pena de perda do acesso a todos os seus meios de subsistência. Além disso, não estamos questionamento os processos de fabricação das próprias vacinas, a sua fase de testes [8], o acesso aos materiais entre países, as disputas por produtos e aparelhos, o negligenciamento dos cuidados de saúde física e mental etc. Essas são problemáticas políticas que precisam ser colocadas no processo de soluções à atual crise sanitária, escondidas atrás dos números de mortos e do medo desenfreado.


Não pretendo aqui fazer afirmações conclusivas, muito menos generalizações futurísticas. Acredito nas Ciências Sociais e na Filosofia como caminhos de estranhamento. E a natureza, neste momento, nos conduz ao percurso do questionar. Nunca fomos os mesmos, as cidades continuam mudando, os modos de controle se sofisticando, mas o sistema permanece com as suas estruturas intactas. Tenho medo de encontrar um policial no trajeto ao supermercado, medo de ficar doente e não receber atendimento, medo de entrar em disputa por algum item de necessidade básica, porque eu faço parte do grupo do Outro. Já existem campanhas anti-racistas devido às ações ou omissões em relação aos estrangeiros e refugiados na França durante o confinamento [9]. Por isso, a atual crise sanitária nos alerta sobre esse sistema em que estamos inseridos, o sistema capitalista. Precisamos ter isso em mente. O debate tem girado em torno de investimentos na economia ou no sistema de saúde, na compra de materiais para o tratamento das pessoas ou no fim do confinamento, quando são vidas que estão em disputa.


Dentre todos esses questionamentos, o pior quadro tem se formado: as pessoas não estão sendo testadas, na contra-mão das ações tomadas pelos governos da China, Coreia do Sul e Alemanha, os quais investem massivamente na realização de testes para o COVID-19 e têm obtido melhores resultados no combate à pandemia. Quando se fala em doença, o diagnóstico é a primeira medida para o controle do vírus, não a repressão à população. Enquanto o poder investe em medidas de força coercitiva e até mesmo de monitoramento, por meio dos celulares, o vírus continua um enigma. E, pior, invisível. Nós não conseguimos saber se estamos doentes; quando apresentamos alguns dos sintomas, não temos a certeza de estarmos infectados ou não. A solução então é a suspeita, que na região Sudeste do Brasil chegou a superar o número oficial de mortos [9]. Nem mesmo após a morte existe de fato um diagnóstico e milhares de pessoas têm sofrido dessa forma. O sistema que deixa as pessoas morrerem com a suspeita de um vírus não é capaz de transformar a vida. A luta, sim.



NOTAS


[1] https://www.youtube.com/watch?v=MEV6BHQaTnw


[2] O conceito de entre-lugar é entendido aqui no sentido sugerido por Silviano Santiago: “Adaptado aos trópicos, esse conceito passa a significar um movimento de resistência do colonizado à imposição dos valores do colonizador europeu. Latino-americanizado passa a ser também um locus de enunciação, espaço territorial, geográfico, espaço discursivo”. O entre-lugar e os estudos culturais. Marcos Aurélio dos Santos Souza. Travessias número 01. www.unioeste.br/travessias


[3] Augusto, Acácio. Guerra e pandemia: produção de um inimigo invisível contra a vida livre. Disponível em: https://www.tramadora.net/2020/03/26/guerra-e-pandemia-producao-de-um-inimigo-invisivel-contra-a-vida-livre/ Acesso: 8 de abril de 2020.


[4] Enquanto durar o confinamento, é necessário um certificado de saída para as deslocações autorizadas em decreto. Por exemplo, para comprar itens de necessidade básica, praticar atividades físicas individuais ou passear com o cachorro, num raio de um quilômetro de distância de casa, com duração máxima de uma hora.


[5] Ver: CARVALHO, Alexandre Filordi de. Foucault e a Função-Educador. Ijuí: Unijuí, 2014.


[6] Roger, Orianne. Quand rester chez soi sauve des vies. Disponível em: https://www.lavoixdelahautemarne.fr/actualite-6401-quand-rester-chez-soi-sauve-des-vies Acesso: 8 de abril de 2020.


[7] Bulgault, Valérie. Géopolitique du coronavirus - entretien avec Valérie Bulgault. Disponível em: http://www.zejournal.mobi/index.php/news/show_detail/19700?fbclid=IwAR3pqY5yrWr2q9QEeGkCVnJX_wAEBtWhhZq17gXXgFc0YTWTUdsma_RgNyM Acesso 8 de abril de 2020.


[8] Durante um programa transmitido no dia 1 de abril de 2020 no canal francês LCI, um médico do Hospital Cochin, de Paris, dirigiu a seguinte pergunta ao diretor de pesquisas do Instituto Francês de Pesquisa Médica (Inserm): “Por que não realizar estudos na África, onde não tem máscara, não tem tratamento nem reanimação?”. Personalidades francesas e de países africanos, como o jogador Didier Drogba, da Costa Marfim, reagiram aos comentários racistas. Assim como o Partido Socialista francês, que pediu explicações ao LCI. No dia 6 de abril de 2020, o diretor-geral da OMS condenou os comentários, denunciando-os como um legado de mentalidade colonial.


[9] Hoje, dia 13 de abril de 2020 às 20h (horário da França), Emmanuel Macron se dirigiu mais uma vez aos franceses. Com um discurso nacionalista e de guerra, dividindo os trabalhadores “essenciais” em frontes, o presidente da França falou sobre as desigualdades sociais existentes no país. Após classificar profissionais dos serviços de saúde, militares e bombeiros como pertencentes ao front; agricultores, professores, jornalistas e profissionais liberais como na segunda linha; e os franceses como um todo pertencentes à terceira linha, “vigilantes”, ele anunciou ajuda financeira a estudantes estrangeiros e a grupos vulneráveis. Antes de pedir solidariedade aos “compatriotas”, com um sorriso franco no rosto, falou em ajudar os vizinhos da África na luta contra o vírus, inclusive economicamente. Além disso, anunciou que todas as pessoas, com prováveis sintomas do vírus, serão testadas sem distinção. Esse foi um comunicado importante politicamente, porque o presidente assumiu diversos problemas sociais presentes na política de combate ao COVID-19 e anunciou possíveis soluções. Veremos.


[10] Barreto Filho, Herculano. Mattos, Rodrigues. Mortes suspeitas na região Sudeste superam total oficial de vítimas no país. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/02/mortes-suspeitas-na-regiao-sudeste-superam-total-oficial-de-vitimas-no-pais.htm Acesso em: 8 de abril de 2020.




REFERÊNCIAS


CAMUS, Albert. A Peste. Editora Record. Rio de Janeiro, 2019.


CARVALHO, Alexandre Filordi de. Foucault e a Função-Educador. Ijuí: Unijuí, 2014


CHEVITARESE, Leandro & PEDRO,Rosa Maria Leite Ribeiro. Da sociedade disciplinar à sociedade de controle. Estudos de SociologIa. Rev do Prog de pós graduação em Sociologia da UFPE, v, 8, n. 1.2. p. 129-162, 2009.


DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.


DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Caderno Mais!, Folha de São Paulo, São Paulo, 29 jun. 1999.


FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1990.


FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2002.


JOURDAN, Camila. Para além da calamidade, 2020. Acesso: https://www.tramadora.net/2020/03/31/para-alem-da-calamidade/


LAURO, Rafael. Deleuze - Sociedade de controle, 2018. Acesso : https://razaoinadequada.com/2017/06/11/deleuze-sociedade-de-controle/





Como citar esse texto: BEZERRA, Amanda. (2020), "Um sistema sob suspeita". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/04/13/UM-SISTEMA-SOB-SUSPEITA




Amanda Bezerra é bacharela em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente faz mestrado em Sociologia de inovação e recomposição social na Université Grenoble Alpes (UGA) - França.


Editor Responsável: Leonardo Nóbrega











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