AZULEJOS AMARELOS E O TÚMULO COR-DE-ROSA: BREVE PENSAMENTO SOBRE MORTE E CLASSE SOCIAL EM TEMPOS DE
Túmulos e lápides de mortos pelo vírus do Ebola Acervo Pessoal Denise Pimenta, Waterloo, Serra Leoa, 2017
Continuaria vivendo como sempre
e sem se queixar de nada neste morredouro de pobres
onde tinha sido feliz.
(...)
Subiram a colina dos pobres... e dali viram inteira a cidade histórica,
os telhados quebrados e os muros carcomidos das fortalezas
entre os matagais, a fileira de ilhas na baía,
os barracões da miséria ao redor dos pântanos...
- Gabriel García Márquez, 2008
Em mais uma tarde escaldante de 2017 eu seguia Mohamed - o coveiro responsável pelas Ebola’s Graves no King Tom Cemetery - por entre as seções de túmulos e covas do maior cemitério de Freetown, capital da Serra Leoa (África do Oeste). Fazíamos o caminho inverso, íamos do setor H em direção ao setor A, lugar onde haviam sido enterrados os primeiros corpos contaminados pelo vírus do Ebola. Conforme nos dirigíamos aos mortos do início do ano de 2014, menos padronizado o cemitério se tornava. Pulávamos galhos, buracos e subíamos nas extremidades de alguns túmulos para chegar ao nosso destino: era um mar de túmulos e covas, uma colina de mortos. Essas metáforas podem ser usadas sem receios, afinal, Freetown é uma cidade montanhosa, banhada pelo mar e está cheia de mortos.
Mohamed andava muito rápido, pulando os espinhos dos galhos retorcidos no chão. Caminhava apressado como quem tinha muita coisa a explicar e mostrar em uma paisagem aparentemente monótona de lápides, túmulos e covas. Custava dizer, apontando para os túmulos: “Esta é a história de como não se morrer!”. Relembrar esse cenário hoje, em meio ao turbilhão da pandemia do novo coronavírus, torna tudo ainda mais surpreendente e evidente.
Mohamed não previa qualquer catástrofe vindoura ou era um futurólogo. Eu sabia, porém, que ele fazia o papel do próprio narrador benjaminiano: alertando e aconselhando, tudo isso com a autoridade de quem sabe sobre a morte. Tendo vivido entre cemitérios e coveiros, descobri nestes profissionais sofisticados historiadores e analistas da vida cotidiana. Atualmente, vejo em meus grupos de discussão muitos africanos – e também alguns não africanos – apontando que o mundo teria muito a aprender com a epidemia do Ebola ocorrida na região do Mano River (Libéria, Serra Leoa e Guiné-Conacri). Sendo assim, Mohamed tinha razão, ali no King Tom Cemetery estava registrada uma experiência a ser aprendida para não ser repetida.
Porque havia muito a mostrar, andávamos rápido por entre os mortos. Retrocedendo aos túmulos mais antigo era notória a falta de padronização e a falta de nomes e sobrenomes nas lápides. Existiam apenas as datas das mortes grafadas e alguns números na parte de trás. Apesar das visitas de familiares serem raras, perguntei a Mohamed como era possível localizar um morto no meio de tantos outros. No meio do caminho de covas e lápides, paramos. Ele me mostrou que cada número era o registro de uma pessoa falecida, assim as famílias poderiam achar seus parentes mortos.
Guardado junto às pás e outros materiais destinados aos serviços do cemitério, estava um imenso fichário que atrelava cada número ao nome de uma pessoa morta. Isso, claro, apenas para aqueles que tinham o nome reconhecido. Enquanto Mohamed me explicava como funcionava o sistema de número-nomes-datas, eu não tirava os olhos de outro coveiro que fazia um serviço de melhorias em um túmulo ao lado. Assentava azulejos em um dos túmulos de uma das seções de Ebola’s Graves. Os azulejos nem eram bonitos, na verdade tinham a cor de um amarelo envelhecido. O trabalho não estava exatamente alinhado, pois desalinhado era o próprio túmulo de cimento e o rejunte preto deixava toda a combinação ainda mais estranha. Apesar de tudo isso, existia ali um trabalhador dedicado a cuidar de uma sepultura e existiam azulejos, peça que não é comum nem no interior das casas dos serra-leonenses. Aquele túmulo sendo coberto por azulejos amarelados dizia muito sobre a desigualdade de classe frente à morte e o pós-morte. Aquele jazigo apontava para a possibilidade financeira de cuidar e embelezar um túmulo, a última morada do corpo na terra. No meio de tantas lápides sem túmulos e túmulos sem cor (ou melhor, cinza, a cor do cimento), aquele se diferenciava, apontava a distinção social.
E dizia mais do que isso. Aquele corpo tinha uma família que sabia sua localização no cemitério e que provavelmente acompanhou o adoecer do moribundo, seja em hospital ou centro de tratamento. Para cuidar de um túmulo é preciso dinheiro e, muito além, é necessário saber onde o corpo de seu parente estava (qual hospital?) e para onde foi encaminhado (qual cemitério?). Durante um evento crítico como epidemias, pandemias, terremotos e tsunamis, saber o paradeiro de um familiar doente ou morto é um importante marcador de classe.
Na Serra Leoa, durante a epidemia do Ebola (2013-2016) morreram muito mais mulheres do que homens e também muito mais pobres do que pessoas das classes altas. Muitas destas últimas nem se encontravam no país durante o surto epidêmico. Durante uma pandemia, como a do Covid-19 que nos alcança agora no ano de 2020, inúmeros doentes são encaminhados sozinhos para diferentes centros de tratamentos e a maioria morre sozinha. Não é raro que muitas famílias não saibam o destino de seus parentes doentes ou mortos.
A despeito do que “correntes de solidariedade” e “textões” na mídia social tendem a fazer crer, tentando romantizar o fim da vida como a “união” das classes sociais no estado de pó (cinzas) ou ossos, a morte não nos equaliza na mesma classe social, pelo menos é o que me sugere o túmulo de azulejos amarelos e também aquele cor-de-rosa no cemitério em Waterloo (foto acima), cidade próxima a Freetown. Em um país em que as pessoas lidam com severas precariedades materiais, dispor de finanças, tempo e pessoas para cuidar dos túmulos de seus mortos diz bastante sobre as estruturas de desigualdade social de um país. O mesmo ocorre com o luto. O processo de elaboração do luto requer a materialidade do rito funerário e a existência de um corpo, mesmo que em forma de cinzas. Durante momentos críticos como as pandemias, em certos países do mundo (e aqui cabem em especial países da África, América Latina e Ásia), quem sabe onde estão seus doentes? E seus mortos? Quem, de fato, pode enlutar-se?
Que alguns ou muitos já morreram ou morrerão, é notório. Minha dúvida é: seremos uma geração de enlutados ou de pessoas privadas do direito ao luto? Não sei a resposta, mas sei que ela passa pela classe social, ou melhor, por sua estrutura desigual inclusive diante da morte, esta que não nos iguala, não sejamos ingênuos.
Como citar esse texto: PIMENTA, Denise. (2020), "Azulejos amarelos e o túmulo cor-de-rosa: Breve pensamento sobre morte e classe social em tempos de pandemia". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/04/09/AZULEJOS-AMARELOS
Denise Pimenta é doutora em Antropologia Social pela USP. Fez trabalho de campo na Serra Leoa (África do Oeste) e defendeu, em 2019, a tese intitulada “O cuidado perigoso: tramas de afeto e risco na Serra Leoa (A epidemia do ebola contada pelas mulheres, vivas e mortas)”. Pesquisa que contou com bolsa de estudo da CAPES e teve a orientação do prof. Dr. John Cowart Dawsey.
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