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  • Marcia Rangel Candido

“TODA MULHER É DA VIDA”: NOTAS SOBRE FEMINISMOS, PROSTITUIÇÃO E DINÂMICAS DE CRIMINALIZAÇÃO


“Se você é mais uma dessas que veio me tirar desse lugar, pode dar meia volta. Aqui é difícil, mas eu escolhi vir pra cá e não me arrependo, pelo contrário. Graças à pista eu tenho a minha casa, coisa que meus próprios pais negaram quando comecei a transição. Graças à pista eu não dependo de homem nenhum e me livrei do traste do meu ex-marido. Você pode achar estranho, mas aqui eu ganhei autoestima, aqui eu posso me virar (Diário de campo, setembro de 2013)".

Abrimos o texto com uma fala de Michele Obama, como é conhecida a travesti que trabalha há mais de dez anos nas pistas de prostituição de Belo Horizonte. Do alto de seu metro e oitenta, balançando as tranças enfeitadas com búzios, ela chamou nossa atenção para uma série de elementos caros para as discussões que articulam feminismos e prostituição. Enquanto pesquisadoras que realizaram etnografias, respectivamente, sobre o cotidiano da prostituição de rua e sobre o movimento organizado de trabalhadoras sexuais (Sander, 2015; Bonomi, 2019), narrativas como as de Michele nos compelem a exercitar um olhar afeito às complexidades do mercado do sexo e cultivar uma vontade política de deslocar as falsas antíteses que comumente pautam os debates sobre feminismos e trabalho sexual.

Adriana Piscitelli (2016) argumenta que, no Brasil, o cenário feminista é heterogêneo em relação aos posicionamentos sobre a prostituição. Contudo, levando em conta a história do debate sobre tráfico de pessoas no país e os espaços de atuação do movimento feminista e suas articulações com o Estado, algumas correntes se tornaram mais visíveis nesse debate. Conforme é relatado pela autora, as percepções negativas sobre a prostituição se intensificaram nos anos 2000, principalmente devido a determinados vínculos do movimento feminista brasileiro com agências multilaterais internacionais focadas no combate ao tráfico de pessoas. O tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, articulado no âmbito da violência contra a mulher, ofereceu uma linguagem para falar da prostituição de maneira negativa, inclusive para ativistas que mostravam ambivalência em suas abordagens sobre o sexo comercial, ou seja, aquelas que eram contra a prostituição, mas ao mesmo tempo reconheciam autonomia (um valor feminista) nos grupos de prostitutas organizadas.

Piscitelli sustenta que, nessa configuração particular, as vozes abolicionistas se tornaram posições de grande visibilidade. O abolicionismo é o nome dado a uma tendência feminista anti-prostituição, que identifica o trabalho sexual como violência sexista, integrada num continuum que se inicia na publicidade, inclui a pornografia e culmina na prostituição. As versões contemporâneas de caráter mais radical do abolicionismo consideram a distinção entre prostituição forçada e voluntária como um pressuposto defasado do liberalismo, que seria necessário superar. A prostituição, portanto, aparece equalizada à exploração sexual, na medida em que o prazer nas relações só seria obtido através do uso abusivo do corpo e da sexualidade do outro, anulando automaticamente sua autonomia e seus direitos (Maqueda Abreu, 2009).

Tal tendência demonstra grande afinidade e relação com as vertentes chamadas de “radicais” ou “anti-sexo” do movimento feminista estadunidense da década de 80, descritas por Wendy Chapkins (1997). Conforme relata a autora, para essas feministas, o sexo comercial pode ser tomado como responsável pela violência simbólica e literal contra a mulher. Com o intuito de proteger as mulheres e preservar a possibilidade de uma experiência sexual positiva, a prostituição e a pornografia deveriam não apenas ser abolidas, mas seus efeitos contaminadores em práticas e fantasias sexuais deveriam ser ativamente desafiados. Nessa perspectiva, a prostituição se torna um símbolo da opressão das mulheres, visto que sob as condições da dominação e objetificação masculinas, elas são simplesmente objetos em um mercado.

A fala de Michele, citada anteriormente, que identifica no primeiro contato com a pesquisadora uma possível intensão salvacionista de “tirá-la desse lugar”, para além de uma alusão ao tema clássico do cancioneiro brega de Odair José, revela as percepções que ela construiu frente a essas compreensões abolicionistas tão difundidas sobre o mercado do sexo, que equalizam toda e qualquer forma de trabalho sexual à exploração. Não por acaso, ela escolhe elementos fortes como estratégia de contraposição: escolha, autoestima, casa própria, autonomia. Tudo isso sem deixar de reconhecer as dificuldades da atividade profissional. Durante nossas investigações, ouvimos diversas narrativas que deslocavam a prostituição da imagem de um destino sinistro de sofrimento inerente e que tratavam a pista como um circuito ético, estético e erótico importante para suas vidas.

Ao contrário do que as perspectivas afeitas ao abolicionismo costumam supor, falar em escolhas ou autonomia na prostituição não significa necessariamente subscrever às ficções legais em torno do mercado e dos contratos enquanto modelos de relações livres. Se nos propomos ao diálogo e à escuta ativa dessas mulheres, seria injusto tratar suas narrativas como meras ilusões individualistas pautadas pelo neoliberalismo. Por isso, insistimos na necessidade de desmontar a antítese em que a prostituição é tratada ou como uma escolha voluntarista livre de qualquer coerção, dentro de um escopo de racionalidade liberal, ou como uma trajetória compulsória de exploração sem qualquer possibilidade de agência.

Para deslocar essa suposta antinomia entre autonomia e exploração no trabalho sexual, é importante lembrar dos escritos de Emma Goldman, anarquista e feminista, que em 1909 já alertava o movimento de mulheres e o movimento operário sobre os perigos de aderir às moralidades sexuais vigentes que empreendiam cruzadas morais contra a prostituição, colocando as trabalhadoras sexuais em um regime de clandestinidade. Segundo a autora

“É interessante que quando se quer afastar o interesse público de algum problema social importante, se inaugure uma cruzada contra a indecência, o jogo, os bares, etc. E o que resulta de tais cruzadas? O jogo está crescendo, os bares estão ampliando seu negócio por baixo do pano, a prostituição está em alta, e o sistema de gigolôs só está aumentando (Goldman, 2011: 247)".

Goldman evidencia preocupação sobre as tentativas de “moralizar” as classes mais baixas através da proibição da prostituição e da jogatina. E insiste que tais leis proibitivas não resultaram na eliminação desses males, mas em sua propagação dentro de um regime de ilegalidade e criminalização. A partir disso, ela argumenta que a prostituição não é uma condição decadente, fruto da amoralidade, e muito menos um caso de escravidão, situada em franco contraste com a “liberdade” do trabalho ou do casamento. A venda do sexo pode ser o resultado de um sistema econômico que não compensa a trabalhadora feminina com um salário capaz de competir com os ganhos do comércio sexual. Goldman situa a prostituição como fruto da exploração, mas de uma exploração que vai muito além do campo sexual e que abrange quase todas as formas de trabalho disponíveis nos horizontes de possibilidades das mulheres da classe trabalhadora de seu tempo (Blanchette, 2011).

Como relata Michele, várias outras travestis trabalhadoras sexuais contam experiências de exclusão em suas famílias de origem, bem como nas instituições educacionais e no mercado de trabalho formal, o que colabora para que a prostituição se consolide como um dos poucos caminhos viáveis. Mas, ainda que seja possível identificar um certo roteiro biográfico que circula nesse contexto, é interessante notar as singularidades que agenciam para falar sobre o envolvimento com o mercado do sexo. Nem sempre o engajamento e a permanência na prostituição nos foram narrados pela gramática da “necessidade” e da “exclusão”, mas do autodescobrimento, da independência financeira, do acolhimento, dos vínculos afetivos, do parentesco eletivo, da diversão, da transformação corporal, da curiosidade e do prazer. E, ainda assim, risco e violência também apareciam como elementos importantes de suas narrativas cotidianas.

O mercado do sexo está atravessado por instantes de fronteira que Maria Elvira Díaz-Benítez (2012) chama de fissuras: situações ambíguas que implicam prazer e perigo, negociações delicadas e práticas que podem ser interpretadas como empreendimentos de risco e também como possibilidades de transgressão. No entanto, como afirma a autora, no trabalho sexual, nem sempre acontecem fissuras, e as fissuras não são exclusivas do trabalho sexual. Elas também podem vir a acontecer em nosso leito, nos encontros sexuais dos mais corriqueiros e longe do mercado. O mercado do sexo não é culpável ou perigoso de antemão, tal como as sexualidades que evocam afetos e amor romântico nem sempre são exclusivamente prazerosas e livres de violência e exploração.

Nesse sentido, a proposição de Emma Goldman soa bastante atual, quando diz que “uma opinião pública educada, livre da perseguição legal e moral das prostitutas, é só o que pode ajudar a melhorar suas condições”. Ao localizar o trabalho sexual como parte das realidades econômicas da sobrevivência feminina sob condições do capitalismo, a autora defende que tentar reprimir e moralizar a prostituição, sem simultaneamente criar um sistema socioeconômico mais justo, há de ter o efeito de piorar as condições das trabalhadoras do sexo e, paradoxalmente, aumentar as injustiças que os legisladores proibicionistas dizem querer eliminar.

Pesquisadoras feministas mais contemporâneas descrevem em seus trabalhos algumas articulações perigosas entre retóricas feministas e discursos conservadores que têm como efeito a criação de pânicos morais (Rubin, 1984) e a criminalização de comunidades específicas. Por exemplo, Elizabeth Bernstein (2007) mostra como certos projetos norte-americanos do feminismo humanitário secular, articulados a grupos cristãos, emergiram com o intuito de reclassificar diversas formas de trabalho sexual enquanto “escravidão”, objetivando pressionar o Estado pelo recrudescimento das leis que punem os indivíduos responsáveis por essa suposta servidão e, em última instância, perseguir as trabalhadoras sexuais. A autora chama essa articulação de certas vertentes feministas com o marco argumentativo dos direitos humanos e com o ativismo religioso de “feminismos carcerários”. Tais feminismos colaboram com a disseminação das agendas punitivistas ao equalizar toda atividade de prostituição ao crime de tráfico humano, capturando retoricamente essas duas atividades sob a rubrica da escravidão moderna.

Podemos citar também María Soledad Cutuli (2017), que relata como a conceitualização da prostituição como “indigna”, pleiteada por determinados setores do feminismo bonarense, foi fundamental para delinear formas de intervenção estatal destinadas a travestis e transexuais prostitutas na Argentina. Segundo a autora, a negação da prostituição como um trabalho, entendida como uma situação gerada pela articulação perversa do capitalismo e do patriarcado, fez com que o Estado não reconhecesse as trajetórias laborais fragmentadas e informais de grande parte das travestis. Acionando a noção de “trabalho digno” como um forte ordenador moral, expulsaram travestis das áreas residenciais onde exerciam o trabalho sexual. Ao mobilizar um discurso salvacionista da exploração laboral, acabaram fazendo com que elas se tornassem alvos preferenciais dos aparatos repressivos da polícia.

Por fim, como propõe Bernstein, não se trata de negar que situações de coerção e exploração possam ocorrer no mercado do sexo, como ocorrem em qualquer outro trabalho informal e não regulamentado, mas de atentar-se para como esses cenários estão atravessados por desigualdades de raça, classe, gênero e nacionalidade, que dizem respeito a estruturas de poder muito amplas e não circunscritas apenas às pistas de prostituição.

Intitulamos esse texto com um mote do movimento de prostitutas, organizado no Brasil desde 1987. As principais demandas pautadas ao longo dos trinta anos seguintes de sua existência impulsionaram as ações que buscaram diminuir violências policiais e lutar pela efetivação dos direitos humanos, sexuais, sociais e trabalhistas voltados para o reconhecimento profissional e da cidadania das prostitutas. Ao discutirmos sobre feminismos e trabalho sexual, estamos falando sobre lutas por reconhecimento, dinâmicas de criminalização e encarceramento, e, ao mesmo tempo, sobre a necessidade de não tornar automaticamente culpáveis as expressões da sexualidade feminina que se dão fora dos espectros do casamento, da reprodução e do amor. Como nos ensina Gayle Rubin, em tempos de grande estresse social, como o que vivemos atualmente, é preciso estar especialmente atento aos domínios da vida erótica e à dimensão política da sexualidade. Por isso repetimos: “toda mulher é da vida”.

Conheça o trabalho das autoras:

[Dissertações de mestrado]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERNSTEIN, Elizabeth. (2007). "The Sexual Politics of the “New Abolitionism”". differences: A Journal of Feminist Cultural Studies, v.18, n.3, p.128-151.

BLANCHETTE, Thaddeus. (2011). "Emma Vermelha e o espectro do “Tráfico de Mulheres”". Cadernos Pagu, n.37, p. 272-286.

CHAPKINS, Wendy. (1997). Live Sex Acts: women performing erotic labor. Cassel, Routledge: London.

CUTULI, Maria Soledad. (2017). “La travesti permitida y la narcotravesti: imagenes morales em tensión”. Cadernos Pagu, n.50.

DÍAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira. O sexo é sempre culpável? Notas sobre prazeres, perigos e fissuras na sexualidade. A Folha do Gragoatá, Niterói, 2012. Disponível em: http://afolhadogragoata.blogspot.com/2014/06/o-sexo-sempre-e-culpavel-notas-sobre.html?m=1

GOLDMAN, Emma. (2011). "Tráfico de mulheres". Cadernos Pagu, n.37. Campinas, [1909], p. 247-262.

MAQUEDA ABREU, Maria Luisa. (2009). Prostitución, feminismos y derecho penal. Granada: Comares.

PISCITELLI, Adriana. (2016). “Conhecimento antropológico, arenas políticas, gênero e sexualidade”. Revista Mundaú, n.1, p. 73-90.

RUBIN, Gayle. (1984). "Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality". In: VANCE, Carole. (ed.) Pleasure and Danger: Exploring Female Sexuality. Boston, London, Routledge and Kegan Paul.

Vanessa Sander é mestra em Antropologia Social pela Universidade de Campinas (Unicamp). Atualmente, cursa doutorado em Ciências Sociais pela mesma instituição.

Carolina Bonomi é mestra em Ciência Política pela Universidade de Campinas (Unicamp). Atualmente, cursa o doutorado em Ciências Sociais pela mesma instituição.

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Editora responsável: Marcia Rangel Candido

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