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  • Marcia Rangel Candido

DESLEMBRO OU ‘MEU PASSADO NÃO SEI QUEM O VIVEU’


Trecho de Deslembro

Joana (interpretada por Jeanne Boudier) é uma adolescente que mora em Paris e sua família decide retornar ao Brasil quando a lei de anistia é decretada no final de 1979. O retorno para o lugar de seu nascimento e início da infância, logo se mostra o mais importante das memórias que nunca obteve e as respostas de um passado que nunca foi silenciado. Na tentativa de “lembrar”, Joana persegue seu próprio caminho, ou melhor, desvenda seu passado em seu presente.

Sem deixar de ser um filme perspicaz, Deslembro é extremamente delicado. Essa é a sensação que me segue, após a exibição no Festival do Rio. A sessão foi no mais prestigiado (e sobrevivente) cinema de rua da cidade: o Odeon. Os longos minutos de aplausos não me permitem mentir: o público foi afetado.

A sala emendou salva de palmas, juntamente com gritos de "Viva a arte" e “Ele não”, enquanto os créditos finais subiam em tela. A reação emocionada tanto das falas e perguntas, quanto das colocações feitas à diretora e a uma pequena parte de sua equipe, no debate ocorrido ao final da sessão, não chegou a ser um espanto. Vale ressaltar o excepcional trabalho anterior da cineasta – Diário de uma Busca (2010) – no documentário em que a realizadora investiga a morte de seu pai, militante político e também vítima da ditadura. Se considerarmos tal fato, e lembrarmos (num evidente trocadilho) que Deslembro é um relato pessoal ficcionalizado da própria Flavia Castro, percebemos o quanto ela consegue lidar bem tanto com o gênero documental quanto com a ficção. Se é que essa linha ainda é muito precisa.

Dentro da historiografia do cinema brasileiro, Deslembro mira e acerta em cheio a experiência trágica dos familiares dos desaparecidos políticos e exilados. O fio condutor dessa narrativa é a ênfase na construção da subjetividade de Joana, que se sobrepõe à dimensão política, que marca sua presença, porém, em segundo plano. Porém, não menos importante.

A direção de fotografia, nas mãos da talentosa Heloísa Passos, constrói um caminho que ora se utiliza de uma câmera na mão e muito próxima da protagonista, ora uma câmera mais estável e distante da personagem. Essa fotografia cria a possibilidade de um espaço que vai se abrindo aos poucos, permitindo que Joana vá se encontrando consigo mesma.

Ao final do debate, ao conversar com a diretora, pude fazer perguntas e comentários que trago aqui. Verbalizei que geralmente os filmes que retratam a Ditadura Militar Brasileira colocam esse tema como a narrativa principal, na qual o foco é em contar a “História” (com H maiúsculo) ou no aprofundamento de seu lado mais terrível e verídico: as mortes e as torturas. Já Deslembro passa ao largo desses exemplos. Flavia acompanhou atentamente minha colocação, sorriu e respondeu:

Me importa menos contar os grandes fatos históricos de forma mais rigorosa. O que sempre me interessou foi contar essas histórias de uma forma mais subjetiva. Isso é o que me atrai. De certa forma, O Diário de uma Busca também foi assim. Claro, que ali o tom pessoal e subjetivo ficou bem mais marcado.

Em seguida, indaguei se ela poderia prever que seu filme seria lançado no Brasil justo nesse momento tão conturbado politicamente, em que os discursos sobre a memória da Ditadura Militar têm sofrido grandes ataques e tentativas de minimização de seus efeitos pelos cerca de 21 anos que perdurou no país. Em nossa conversa, eu trouxe à tona o caso de sua relação com o tema, que além de política é pessoal, tendo em vista que seu pai foi assassinado, em 1984. Já na ficção Deslembro, o pai de Joana é assassinado muito antes da anistia de 1979. No final, o que me interessava era, justamente, saber como ela enxergava o Brasil atual.

Flavia Castro responde depois de uma expressão de preocupação passar por seu rosto. A diretora afirma:

Eu jamais poderia acreditar que esse seria o contexto de lançamento do filme. Eu não imaginaria isso há seis meses, confesso. É assustador! Simplesmente apavorante. O que me preocupa são as investidas em um projeto de esquecimento do que foi a Ditadura Militar.

Antes de nossa conversa e já no debate que aconteceu após a exibição do filme, a questão do momento político apareceu, mais de uma vez, aliás. Dentro do cinema, Flavia afirmou para a platéia atenta:

Nunca foi nossa intenção. Eu comecei a escrever o roteiro em 2009. É inacreditável que esse filme esteja sendo visto num momento que nenhum de nós imaginava que estaríamos vivendo. Ao longo das filmagens em 2017, a gente até foi incorporando algumas coisas como falar ‘vai pra Cuba’. Mas não era nosso objetivo.

Um ótimo exemplo dessas incorporações no roteiro, num momento que arrancou gargalhada da plateia, se dá quando Joana xinga o vizinho e diz: “fascista de m*rda”. Mesmo com todas as tensões de um presente caótico, Flavia disse estar feliz com a recepção que o filme vem recebendo e todo o retorno afetivo, através de cada história que escuta dos espectadores.

Toda maestria da diretora e roteirista não acaba por aí, pelo contrário. Flávia Castro toma o título de seu novo filme, emprestado do poeta português Fernando Pessoa, que evoca em certas linhas: “Deslembro incertamente. Meu passado. Não sei quem o viveu. Se eu mesmo fui, está confusamente deslembrado”.

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DESLEMBRO

Direção: Flavia Castro

Ficção, 93 min, 2018, Brasil / França / Qatar. Elenco: Jeanne Boudier, Sara Antunes, Eliane Giardini, Hugo Abranches, Julián Marras.

Leonam Monteiro é licenciado em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), onde também realiza mestrado em História (PPHR/UFRRJ) e integra a linha de pesquisa Relações de Poder, Linguagens e História Intelectual e o Núcleo de Estudos da Política e História Social (NEPHS-UFRRJ). Foi membro do coletivo de produção cultural Seu Gusta ligado ao Departamento de Arte e Cultura (DAC) da Pró-Reitora de Extensão e é responsável pelo cineclube CineCasulo (2015-2016). Atualmente, desenvolve pesquisa de mestrado sobre o cinema cubano e sua relação com os processos de construção identitárias (1959-1968).

Contato: monteiro.leonam@gmail.com

 

Editora responsável: Samantha Brasil

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