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Pablo Contreras Gutiérrez

SUBJETIVAÇÃO POLÍTICA: O QUE O CINEMA BRASILEIRO TEM A DIZER




Pensando na América Latina, é possível observar que há um grande número de lugares onde o cinema (seu conteúdo, técnicas, produção, etc.) gera nada mais do que minúsculas discussões, que se limitam apenas a pequenos círculos de acadêmicos e críticos. Há outros lugares, entre os quais localizamos o Brasil, onde o cinema produz com certa frequência e profundidade, debates que vão além desses ambientes e são projetados para a sociedade como um todo. Embora esta diferença, explicada por razões de magnitude, história e inserção social do cinema como meio, não implique uma onipresença do cinema na cultura brasileira, ela faz do cinema brasileiro uma “janela” frutífera para conhecer a própria sociedade.


Uma dimensão ilustrativa desta projeção é a relação que o cinema brasileiro mantém com a política e o político. Nos últimos anos, debates como os gerados pelo Democracia em Vertigem (2019) e sua nomeação ao Oscar, o enfraquecimento da Lei Rouanet, ou a censura dos Tribunais do Rio à comédia A Primeira Tentação de Cristo (2019), finalmente suspensa pelo STF, são exemplos disso. Nesse sentido, podemos dizer que o cinema e os filmes, tanto por seu conteúdo quanto por seus processos de produção e recepção, são desafios constantes para a sociedade civil e para as instituições da sociedade brasileira. Sob esta premissa procurei, na minha dissertação de mestrado[1], analisar a forma como o chamado cinema pós-retomada (2004 em diante) estabeleceu esta relação com a política[2].


A verdade é que o Brasil esteve, nas duas primeiras décadas do século, marcado por processos sociais e políticos muito intensos. Grosso modo, podemos dizer que o boom inicial e a estabilidade deram lugar à crise e à polarização, o que resultou, entre outras coisas, em um grande número de pesquisadores sociais de todo o mundo voltando sua atenção para o que estava acontecendo no país. Essa atenção, no entanto, foi concentrada principalmente nas análises institucionais, eleitorais e do sistema político, subestimando a utilidade científica que outros elementos como a mídia ou outros vetores culturais poderiam ter. Esse relativo vazio científico e a relevância do cinema mencionada acima nos levou a investigar as pistas que o cinema poderia nos dar sobre cultura e política, complementando assim as análises já feitas.


Em termos simples, a pergunta orientadora foi: como os filmes participam da construção de uma subjetividade política no Brasil nos últimos anos? Para isto, entendemos o cinema como um meio de comunicação que transmite discursos e que estes discursos prescrevem como entender e agir no mundo, através de sistemas de representações (Hall, 1997). É importante ressaltar que, embora os processos de subjetivação política — em outras palavras, de criação de uma subjetividade inserida nas relações de poder — sejam importantes, estes são mediados pelas representações que temos do mundo. Assim, por exemplo, como Laura Mulvey explicou a partir da psicanálise em seu famoso Visual Pleasure and Narrative Cinema (1975), a estruturação cinematográfica do cinema de Hollywood é articulada no inconsciente das pessoas e participa da geração de diferenças sexuais e de gênero na sociedade patriarcal.


Em nosso caso, dadas as características do período analisado e a centralidade do conflito - na definição do político e dos processos de subjetivação (Lechner, 1984) -, concentramo-nos nas representações do conflito social e nos discursos cinematográficos estabelecidos. Perguntamos, especificamente, o que filmes como Tropa de Elite II (2010), O som ao redor (2012) ou o próprio Bacurau (2019) propõem? Que tipo de maneira de ver o mundo e de atuar nele promove esses filmes?


Através da Análise do Discurso, particularmente por meio da identificação dos repertórios interpretativos (Wetherell & Potter, 1996) e das representações visuais predominantes, conseguimos estabelecer três formas discursivas que os filmes prescrevem de maneira transversal.


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A primeira forma discursiva encontrada nos filmes revela que a mudança é buscada através de estratégias individuais. Muitas vezes os atores sociais representados, particularmente aqueles imersos na marginalidade e exclusão, resistem a tais condições através de estratégias individuais, que não tornam visível a possibilidade de organização coletiva ou solidariedade como um mecanismo para atingir um objetivo. Aqueles que viram os filmes reconhecerão que é assim que os quatro filhos de Cleuza em Linha de Passe ou Jéssica, a filha da empregada, procuram "sobreviver" em Que horas ela volta?


A verdade é que estas práticas, guiadas pelo “pragmatismo dos pobres” que Ismail Xavier (2007) aponta para os filmes do início do século, são também caracterizadas por ações, provisórias e parciais, que nunca parecem se opor explicitamente a problemas estruturais, ou mais precisamente às causas destes, mas apenas com algum efeito. A forma de “problemas do dia-a-dia” para a sobrevivência então predomina. A soma desses traços faz emergir alguns discursos fílmicos onde o político parece ser um assunto privado e de pessoas isoladas que, “arranhando com suas próprias unhas” e sem grandes escrúpulos, resistem à hostilidade, ao desprezo e ao desamparo que os rodeia. “Sairei da pobreza estudando”, “conseguirei um objeto roubando-o” ou “trabalharei incansavelmente para chegar à frente”, são estratégias argumentativas que nos filmes indicam formas de resistência individual e individualista (exceto para o povo em Bacurau).


Um ponto interessante: os indivíduos que buscam mudança, resistência ou melhoria de suas condições de vida passam — com poucas exceções — por um “relaxamento moral”. O que acontece é que as circunstâncias parecem levar os atores a se corromperem progressivamente (Raimundo Nonato, em Estômago), caso contrário, alcançar o bem-estar é uma tarefa praticamente impossível. Começa contando uma pequena mentira ou fazendo algum desvio ocasional (muitas vezes com boas intenções), mas acaba se envolvendo progressivamente em corrupção grave. Os indivíduos começam a fazer coisas que não teriam feito antes.


Um segundo repertório interpretativo é a invisibilidade como motivo de conflito social. Mas em que sentido a invisibilidade pode ser uma causa? Ela o é, seguindo Honneth e sua gramática moral de conflitos sociais, pela lesão de expectativas profundas de reconhecimento ou, o que dá no mesmo, pela impossibilidade de alguns atores se sentirem respeitados e autônomos (Honneth, 1997). É assim na medida em que opera como uma experiência social flagrante para indivíduos e grupos que são empurrados para os cantos escuros e negligenciados da sociedade. Não ser olhado, não ser ouvido ou lembrado são metáforas sensoriais recorrentes que os filmes usam para se referir a essa falta de reconhecimento que muitas pessoas experimentam, que também é acompanhada por uma visualidade de impessoalidade, na qual os personagens vagam perdidos, entre grupos indiferenciados (em transportes públicos superlotados, no meio de gigantescos edifícios cinzentos) e em espaços que os anulam, o que confirma articuladamente a dinâmica da invisibilidade. Uma excelente representação disso é dada na Linha de Passe (2008), particularmente na sequência onde Dênis — sequestrando um executivo —, pede a este, quase implorando-lhe, que o olhe, que o reconheça.


Dênis como um sequestrador. Linha de Passe (2008), Walter Salles e Daniel Thomas.



Em frente a estes ignorados, há aqueles que detêm o poder e negam o reconhecimento aos primeiros, recusando-se a validá-los como uma parte legítima da sociedade. Estes — os poderosos — procuram constantemente manter a fronteira nos modos de vida, marcando sua distância e bloqueando as expectativas dos atores emergentes. É isso que a elite paulista e os sádicos invasores americanos procuram fazer na cidade de Bacurau, que procuram literalmente apagar do mapa, deixando-os sem água, sem sinal de satélite e depois massacrando-os.


O terceiro repertório interpretativo é aquele que mostra a sociedade brasileira como uma soma de fraturas sociais, onde o diferente representa uma ameaça. Embora as diferenças e disputas pudessem ser entendidas como normais ao se analisar as representações do conflito social, neste caso, elas nos parecem ser especialmente intensas e dignas de nota.


Uma característica relevante da construção discursiva do Brasil é que ela aparece como uma sociedade com uma baixa tolerância à pluralidade social e política. A comunicação orientada para a compreensão é mínima e ocasional, uma vez que em geral o que predomina é uma violência (nas suas diferentes expressões) que nega o outro, o meu interlocutor na sociedade.


Essa noção, consideramos, é um produto simultâneo da percepção do outro como uma ameaça que deve ser enfrentada, já que surge como um claro aviso do risco de que “meu status e os bens que possuo” correm. Um exemplo disso é como Bárbara (a burguesa em Que horas ela volta?) percebe Jéssica (a filha da empregada doméstica) quando ela come o sorvete de seu filho, entra na piscina ou fala com seu marido. A partir daí, ela assume progressivamente uma atitude cada vez mais hostil. Também pode ser claramente destacada a paranoia com que os vizinhos de classe média alta do Recife vivem em O som ao redor (2012), que estão saturados de câmeras e serviços de segurança e têm frequentes visões e pesadelos com a invasão de jovens negros pobres a seus condomínios.



Câmeras de segurança. O som ao redor (2012) - Kleber Mendonça Filho



Essa questão relacional se baseia em pelo menos duas fraturas sociais centrais, dadas por classe e geografia. Os filmes mostram o Brasil como uma sociedade fraturada principalmente pela oposição entre uma classe alta e uma classe trabalhadora heterogênea, mas também por uma oposição geográfica — que também é simbólica — entre o Nordeste e o Sudeste.

Enquanto na fratura de classe (que no Brasil é profundamente combinada com a racial), opõe-se os burgueses, profissionais liberais, brancos, frívolo e usuários de drogas (os playboys da Tropa de Elite), contra os indivíduos negros ou pardos, com empregos de servidão (principalmente mulheres) ou outros empregos precários, que vivem em favelas e com famílias de pais ausentes; na fratura geográfica, opõem-se o Nordeste, da origem, das amplas paisagens, dos sujeitos inocentes, ao sudeste da corrupção, da elite, das cidades gigantescas, mas também das oportunidades de emprego e educação.


Assim, a pintura resultante é um Brasil com fronteiras internas bem delimitadas, onde cada lote — embora se comunique com os outros — é cercado por uma vala que o “proteja” da diferença/ameaça dos outros.


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Esses três repertórios interpretativos ou mini-discursos (Rose, 2007) mostram algumas representações do conflito social no cinema do período pós-Retomada (2004- ), que postulam uma forma específica de entender as relações de poder da sociedade brasileira e algumas estratégias de ação na mesma, que orientam as ações de indivíduos e grupos. São, portanto, discursos fílmicos que funcionam como coordenadas de orientação de seus “receptores”, afetando as estruturas com as quais se relacionam ao seu ambiente e a si mesmos, ou seja, modelando sua subjetividade. Essa subjetividade é sempre política na medida em que é o resultado de algo que excede o indivíduo e o atravessa na forma de relações de poder (Tassin, 2012).


É importante observar duas coisas: embora os discursos cinematográficos postulem estas estratégias individuais, a invisibilidade como causa e a sociedade brasileira como fraturada, isto não significa que eles produzam um “efeito” específico por si mesmos. Estas orientações são sempre conjugadas com outros discursos sociais já existentes, com determinadas condições materiais e outras experiências sociais vividas pelas pessoas, já que, como afirma Ryan & Kellner (1988), o cinema toma elementos já codificados pela sociedade, recodifica-os para si mesmo e depois os reintroduz no espaço público, de modo que é sempre parte de um sistema cultural mais amplo que dá forma à realidade social.


A segunda coisa é que, em última instância, a adoção dessas diretrizes também depende, em grau relevante, das características e capacidades dos próprios públicos. O exercício interpretativo realizado por indivíduos e grupos é condicionado por seu capital cultural, sua classe, seu gênero, seu contexto socioespacial e até mesmo pela tecnologia específica da qual é observado, de modo que os “efeitos concretos” podem variar de acordo com as características do que tem sido chamado de “leitor empírico”. Não é o mesmo “ler” Tropa de Elite II se você é filho de um dos mais de cem mortos do Massacre de Carandiru (que o filme lembra) ou um parente do coronel responsável por ele.


Em resumo, a análise realizada mostra e descreve discursos (com sua “tripla natureza” - textual, intertextual e contextual) que são projetados através da tecnologia do cinema na sociedade brasileira nos últimos anos. A confirmação destas e de suas características deve levar, em nossa opinião, a uma maior atenção ao cinema e a outros meios “jovens”, como participantes dos processos de subjetivação e politização da sociedade. Esta tarefa, que é importante e cientificamente benéfica, deve, no entanto, ser feita, superando a desvalorização do estudo de imagens e incorporando novos objetos e métodos de estudo na investigação de questões de poder.



NOTAS


[1] Estas reflexões são uma síntese da dissertação “Discursos del Cine Brasileño: Subjetivación política a través de las Representaciones del Conflicto Social en el Cine de la Pos-retomada (2004-2019)”, correspondente ao Mestrado em Estudos Latino-Americanos Contemporâneos da Universidade Complutense de Madri.


[2] Além das ideias aqui apresentadas, a tese em questão oferece um olhar detalhado sobre os estudos de "cultura e poder", imagem e cinema, tanto no Brasil como na América Latina. Os filmes analisados foram: Tropa de Elite I (2007), Estômago (2007), Linha de Passe (2008), O som ao redor (2012), Tropa de Elite II (2010), Que horas ela volta? (2015) e Bacurau (2019).




REFERÊNCIAS


HALL, S. (1997), Foucault: Power, Knowledge and Discourse. En Discourse Theory and Practice: A reader (2004) de Wetherell, M. (et al.). Sage publications and University Open.

HONNETH, A. (1997) La lucha por el reconocimiento. Por una gramática moral de los conflictos sociales. Barcelona, España. Editorial Crítica.

LECHNER, N. (1984), La conflictiva y nunca acabada construcción del orden. Santiago, Chile. Flacso y Ediciones Ainavillo.

MULVEY, L. (1975), Visual Pleasure and Narrative Cinema [Extract] en Visual Culture: The Reader, ed. by Evans, J. & Hall, S. Sage Publications and Open Universities. pp. 381- 389.

ROSE, G. (2007), Visual Methodologies: An introduction to the interpretation of visual materials. London. UK. Sage Publications.

RYAN, M & KELLNER, D. (1988), Camera Política. The politics and Ideology of Contemporary Hollywood Films. Bloomington, Indiana University Press.

TASSIN, E. (2012), De la subjetivación política. Althusser, Foucault, Arendt, Deleuze. Revista de Estudios Sociales, 43, pp. 36-49.

WETHERELL, M. Y POTTER, J. (1996), El análisis del discurso y la identificación de los repertorios interpretativos. En: A. Gordo; J. Linaza (eds.). Psicologías, discursos y poder Madrid: Visor.

XAVIER, I. (2007), Humanizadores do Inevitável. Revista ALCEU, v.8, n°15, julio-diciembre. pp. 256-270.






Pablo Contreras Gutiérrez é sociólogo pela Pontifícia Universidade Católica do Chile e Mestre em Estudios Contemporáneos de América Latina pela Universidade Complutense de Madri.

Como citar esse texto: GUTIÉRREZ, Pablo Contreras. (2020), "Subjetivação política: o que o cinema brasileiro tem a dizer". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/09/22/SUBJETIVACAO-POLITICA-O-QUE-O-CINEMA-BRASILEIRO-TEM-A-DIZER


Editores Responsáveis: Pedro Borba e Leonardo Nóbrega











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