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Giovana Esther Zucatto e Giovanna Lucio Monteiro

PAZ, SUBSTANTIVO FEMININO (?)


Arte por Giovanna Lucio Monteiro



No dia 27 de setembro, começaram a circular as imagens da campanha de Marcelo Crivella à reeleição na prefeitura do Rio de Janeiro, tendo como vice a tenente-coronel do Exército, Andréa Firmo. Na imagem, Firmino aparece trajando a farda do Exército Brasileiro com um lenço e uma boina azuis, símbolo das missões de paz das Nações Unidas - o logo da ONU foi apagado digitalmente. A tenente-coronel foi a primeira mulher a comandar uma base de missão de paz da organização, quando atuou no Saara Ocidental entre abril de 2018 e abril de 2019. Ao ser questionada sobre a mobilização desta simbologia com finalidades eleitorais, Firmo respondeu: “Eu apenas segui a orientação da própria ONU, que na resolução 1325 incentiva o empoderamento feminino e a presença das mulheres na política. Quisemos veicular uma alusão à minha experiência com ações humanitárias, agora em prol das mulheres sofridas do Rio”. Ainda que seja bastante questionável a associação dos valores humanitários com uma chapa encabeçada por um quadro como Marcelo Crivella, é inegável que Firmo soube mobilizar muito bem o discurso sobre a importância da inserção de mulheres na política promovido pelos órgãos e convenções da ONU.


Em outubro de 2000, o Conselho de Segurança da ONU (CSNU) aprovou por unanimidade a Resolução 1325 de 2000 (doravante Res. 1325), que demarcou a institucionalização da ideia de transversalização de gênero (gender mainstreaming) dentro das preocupações de paz e segurança das Nações Unidas e reconheceu as mulheres como agentes tanto na guerra quanto na paz. Na resolução, as partes reivindicam que os países-membros promovam maior representação feminina nas diferentes instâncias políticas e nos mais variados níveis de tomada de decisão, assim como maior participação das mulheres na prevenção e gestão dos conflitos, e na construção da paz. De maneira mais específica, prevê-se a inclusão da perspectiva de gênero no planejamento do desarmamento, desmobilização e reintegração de ex-combatentes (artigo 13) e a inclusão mandatória de mulheres nos componentes militares e civis das Missões de Paz (artigo 15).


A Res. 1325 incluiu, de maneira permanente, a temática “Mulheres, Paz, e Segurança” na agenda da ONU. Desde então, os esforços levados a cabo no âmbito da instituição no que diz respeito à gestão de conflitos e construção da paz procuraram adotar estratégias de transversalização de gênero, ou seja, colocar as perspectivas e preocupações de gênero como parte central dessas iniciativas. Isso se traduziu em discursos fortemente normativos que associam uma maior igualdade de gênero - pelo menos em termos de representação - à possibilidade de garantir a paz de forma duradoura. Isso aparece na forma de concepções positivas de paz que priorizam a igualdade de gênero, considerações sobre as vítimas da violência - ou seja, a guerra em seu aspecto individual - e justiça social no pós-guerra (Karim e Beardsley, 2016). De certa forma, os ideais do liberalismo clássico e a concepção da paz democrática que permeiam o ideário da ONU desde sua criação são atualizados para incluir uma variável de gênero.


Desde a Res. 1325, o CSNU já teve oito novas resoluções relativas a esta temática: Res. 1820/2008; Res. 1888/2009; Res. 1889/2009; Res. 1960/2010; Res. 2106/2013; Res. 2122/2013; Res. 2242/2015 e Res. 2467/2019. Sem entrar em pormenores, essas resoluções buscaram aprofundar a discussão sobre gênero e paz no interior da organização, assim como pautar ações mais específicas para o avanço da agenda. Ainda, a partir de 2014, um dos principais pontos de convergência dos processos de revisão da arquitetura de paz e segurança da ONU é o apontamento da necessidade da “inserção da perspectiva de gênero em todos os aspectos relacionados à promoção e à manutenção da paz e da segurança internacionais” (Brasil, 2017).


Cabe citar, ainda, a Res. 2282 de 2016 do CSNU e a Res. 70/262 do mesmo ano da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), que, embora não estejam diretamente cobertas sob o guarda-chuva da Agenda, trazem uma importante inovação, que é o conceito de “paz sustentável” (sustaining peace). O arcabouço provido pelas resoluções prevê, entre outras medidas, “a promoção do desenvolvimento sustentável; a erradicação da pobreza; a reconciliação nacional e o diálogo inclusivo; o acesso à justiça; a promoção da igualdade de gênero; e a mobilização de forma coordenada dos diversos órgãos e entidades do Sistema ONU” como forma de garantir uma sustentação da paz no longo prazo. Essas medidas seriam trabalhadas não só no pós-conflito, mas também teriam natureza preventiva. Em consonância, a ideia de “paz sustentável” reforça a associação normativa entre igualdade de gênero e construção da paz, característica da Agenda Mulheres, Paz e Segurança.


A associação entre feminilidade e paz é um ponto recorrente no debate que conjuga mulheres e guerra. Feministas chamadas “essencialistas”, associam as experiências femininas, especialmente a socialização e a maternidade, ao pacifismo. Há a identificação da paz enquanto uma realidade concreta feminina, em que, apesar de as mulheres – especialmente as mães –, não serem intrinsecamente pacíficas, a prática materna seria uma fonte natural de políticas pacificadoras (Ruddick, 1995). Já a guerra teria como principal causa a agressão masculina, ideia que fica escancarada nesta passagem de Virginia Woolf, em seu livro Three Guineas:



Se você insiste em lutar para me proteger, ou “nosso” país, vamos esclarecer sobriamente e racionalmente entre nós que você está lutando para satisfazer um instinto sexual que eu não posso compartilhar; para obter benefícios que eu não dos quais eu não partilho e provavelmente não irem compartilhar; mas não para garantir benefícios para mim ou satisfazer meus instintos (Woolf, 1938, apud Ruddick, 1995, p. 147, tradução nossa).



A guerra não apenas afetaria as mulheres de maneira desproporcional, mas seria o ataque último aos ideais femininos não-violentos. Esses ideais - ou virtudes femininas - teriam, por seu turno, um potencial muito grande não só para a paz negativa, ou seja, o fim dos conflitos, mas para a construção de uma paz duradoura (Daly, 1978; Shiva, 1993; Ruddick, 1995). Ainda, há a associação da feminilidade com o pacifismo por uma associação mais crítica, em que a disposição dos homens para a guerra e das mulheres para uma posição mais passiva e submissa é parte do “contrato patriarcal”, no qual a legitimação da guerra e da violência se baseiam (Reardon, 1985; Pateman, 1988 apud Weber, 2006). A crença - ou, pelo menos, o discurso - de que mulheres teriam uma maior propensão à paz foi bastante mobilizada no contexto da agenda Mulheres, Paz e Segurança da ONU. O que não passou desprovido de críticas.


A ênfase na diferença entre homens e mulheres e em uma “paz feminina” ou um modus operandi intrinsecamente feminino enquanto uma essencialização da “natureza” das mulheres como diferentes dos homens pode oprimir ou debilitar a figura feminina. Retratar a mulher como uma alternativa não-violenta à guerra arrisca reificar essa antiga associação do feminino com o pacifismo, que ignora a diversidade das experiências das mulheres e suas aspirações. Mais do que isso, pode incutir em as mulheres não serem levadas a sério na vida pública, especialmente em cargos governamentais e, obviamente, militares (Duncanson e Woodward, 2015). Argumenta-se, então, que imagens de gênero não podem mais ser reduzidas ao dualismo “homens propensos à guerra” e “mulheres propensas à paz” (Stachowitsch, 2013).


Cheryl Benard (1999), por exemplo, defende que as mulheres podem ser tão violentas quanto homens; no entanto, são privadas da oportunidade de fazer parte de empreendimentos de guerra ou de influenciar o curso dos acontecimentos. A guerra e o uso da violência, indo além, seriam mecanismos que atuam para reforçar a exclusão feminina dos espaços públicos. Mary Wollstonecraft (1792) questionou o novo status de cidadania oriundo da Revolução Francesa em função da exclusão das mulheres. O contínuo que vai da violência doméstica à guerra é corroborado nas obras de autoras como Bertha von Suttner, Rosa Luxemburgo e Emma Goldman, que fizeram referência explícita ao sofrimento das mulheres na guerra e à continuidade da tirania nos âmbitos públicos e privados e à dominação dos homens na família e no domínio público (Weber, 2006).


Em resumo, a principal limitação da Agenda Mulheres, Paz e Segurança parece estar na própria concepção de gênero que a ONU e os países-membros têm adotado. Como o próprio nome já confidencia, igualdade de gênero é associada automaticamente com a inclusão das perspectivas, demandas e de mais mulheres nos campos relativos ao conflito e à paz. Isso é problemático de duas maneiras: primeiro, invisibiliza uma importante dimensão da violência de gênero que é aquela perpetrada contra homens e meninos, especialmente civis, tornando-os ausentes das políticas de gênero da ONU (Drumond, 2012). O mesmo também é válido para questões referentes às populações LGBTQ+, que constituem um grupo especialmente vulnerável. Em segundo lugar, tanto pela ênfase repetida na violência sexual, quanto pela associação normativa direta entre inclusão de mulheres e sustentação da paz, muitas vezes acaba por reforçar estereótipos sobre a identidade e o papel da mulher, como sempre vítima do conflito ou como tendo uma natureza inerentemente pacífica.


Finalmente, convém citar que algumas autoras têm lançado um olhar mais crítico sobre como, especialmente a partir da adoção da Res. 1325, a mobilização do discurso de igualdade de gênero dentro da esfera de segurança internacional tem servido como maneira de reassegurar a ordem geopolítica vigente dentro dos marcos do neoliberalismo; servindo, ainda, como forma de legitimar crescentes intervenções militares (Agathangelou e Ling, 2003; Pratt, 2009). Butler (2015) cunha a ideia de “instrumentalização coercitiva da liberdade”, ao abordar como o discurso feminista é apropriado na intenção de justificar e legitimar publicamente a invasão dos Estados Unidos no Iraque, assim como o uso de preceitos progressistas por países da União Europeia para levar a cabo políticas xenófobas que barrem a imigração de muçulmanos. Nesse sentido, a candidatura da tenente-coronel Firmo junto ao prefeito Marcelo Crivella demonstra como o discurso feminista presente na ONU e, principalmente, na Res. 1325 pode levar a caminhos distintos. Por um lado, a inserção de mulheres na política pode se traduzir em redução da desigualdade de gênero, objetivo da Agenda Mulheres, Paz e Segurança. Por outro, esse discurso pode ser apropriado por países e políticos mais conservadores de forma a promover mudanças pequenas - algumas poucas mulheres em posições políticas importantes - mas manter a estrutura opressora de gênero. Assim, a gramática da paz pode até ser feminina, mas as políticas colocadas em prática para promovê-la não têm sido.



REFERÊNCIAS


AGATHANGELOU, Anna M; LING, L. H. M. (2003), “Desire Industries: Sex Trafficking, UN Peacekeeping, and the Neo-Liberal World Order”. The Brown Journal of World Affairs, v. 10, n. 1, p. 133-148.


BENARD, Cheryl. (1999), Assessing the Truths and Myths of Women in War and Peace. Perspectives on Grassroots Peacebuilding: The Roles of Women in War and Peace Conference. United States Institute of Peace.


BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. (2017), Plano Nacional de Ação sobre Mulheres, Paz e Segurança. Brasília.


BUTLER, Judith. (2005), Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.


DALY, Mary. (1978), Gyn/Ecology. The Methaethics of Radical Feminism. Boston, Beacon Press.


DRUMOND, Paula. (2012), “Invisible males: A critical assessment of UN gender mainstreaming policies in the Congolese genocide”, in A. Jones (ed.), New Directions in Genocide Research. Nova York: Routledge.


DUNCANSON, C.; WOODWARD, R. (2015), “Regendering the military: Theorizing women’s military participation”. Security Dialogue, p. 1-19.


KARIM, Sabrina; BEARDSLEY, Kyle. (2016), “Explaining sexual exploitation and abuse in peacekeeping missions: The role of female peacekeepers and gender equality in contributing countries”. Journal of Peace Research, v. 53, n. 1, p. 100-115.


PRATT, Nicola; RICHTER DEVROE, Sophie. (2011), “Critically Examining UNSCR 1325 on Women, Peace and Security”. International Feminist Journal of Politics, v.13, n.4, p. 489-503.


REARDON, Betty. (1985), Sexism and the War System. Nova York; Londres, Teachers College; Columbia University.


RUDDICK, Sara. (1995), Maternal thinking: toward a politics of peace. Boston, Beacon Press.


SHIVA, Vandana. (1993), Ecofeminism, Kali for Women. Nova Deli; Londres, Zed Books.


STACHOWITSCH, S. (2013), “Professional Soldier, Weak Victim, Patriotic Heroine”. International Feminist Journal of Politics, v. 15, n.2, p. 157-176.


WEBER, Anette. (2006), “Feminist Peace and Conflict Theory”. Routledge Encyclopaedia on Peace and Conflict Theory. Londres, Routledge.


WOLLSTONECRAFT, Mary. (1975, [1792]). A Vindication of the Rights of Woman. Harmondsworth, Pelican Books.


Giovana Esther Zucatto é bacharela em Relações Internacionais pela UFRGS, mestra e doutoranda em Sociologia pelo IESP-UERJ. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Teoria Social e América Latina (NETSAL) e do Observatório Político Sul-Americano (OPSA).

Giovanna Lucio Monteiro é feminista, graduanda em Relações Internacionais pela UFRJ, pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes (NIEJA).

* As autoras são coordenadoras do Observatório Feminista de Relações Internacionais (OFRI), um grupo de pesquisadoras (e pesquisadores) empenhadas com a produção e divulgação científica de qualidade, valorizando o papel de uma ciência crítica e comprometida com a transformação social, política e econômica. Hoje (1/10/2020), às 17h30, ocorre o webinar de lançamento da plataforma digital do OFRI, com a embaixadora Irene Vida Gala e a professora Maria Regina Soares de Lima.

Como citar esse texto: ZUCATTO, Giovana E. & MONTEIRO, Giovanna L. (2020), “Paz, substantivo feminino (?)”. Horizontes ao Sul. Disponível em: www.horizontesaosul.com/single-post/2020/10/01/PAZ-SUBSTANTIVO-FEMININO-

Editora Responsável: Vitória Gonzalez






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