A BOLA NÃO CORRE MAIS: APONTAMENTOS SOBRE CULTURA E FUTEBOL NO BRASIL
Em Fortaleza, o tradicional estádio Presidente Vargas (PV) se transformou em um hospital de campanha para o atendimento de pacientes com Covid-19. Foto: Ronaldo Oliveira/Divulgação
Futebol no Brasil é cultura, faz parte de um campo de elaboração de símbolos, projeções de vida, construção de laços de coesão social, afirmação identitária e tensão criadora. Nossas maneiras de jogar bola e assistir aos jogos dizem muito sobre as contradições, violências, alegrias, tragédias, festas e dores que nos constituíram (SIMAS, 2017: 5).
A bola não corre mais em jogos oficiais e em muitos campos de futebol de subúrbio (várzea) das capitais e do interior do Brasil. No dia 15 de março a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) anunciou a suspensão, por tempo indeterminado, de todas as suas competições. Dentre as disputas que tiveram seu andamento suspenso estão a Copa do Brasil, os Campeonatos Brasileiros Femininos A1 e A2, Campeonato Brasileiro Sub-17 e Copa do Brasil Sub-20. Nas palavras do presidente da CBF, Rogério Caboclo, "sabemos e assumimos a responsabilidade do futebol na luta contra a expansão da covid-19 no Brasil".
O futebol é um fenômeno que tem sido pensado não apenas pelos seus amantes e praticantes amadores, mas também pelos(as) cientistas sociais. O antropólogo carioca Roberto DaMatta (2006), em A bola corre mais que os homens, nos mostra o futebol como o espaço da incerteza, pois um jogo praticado com os pés é mais imprevisível do que, por exemplo, o futebol americano, disputado com as mãos. No nosso futebol, homens e mulheres não possuem o controle total da bola, pois ela corre mais do que eles(as). Assim como no futebol, os tempos atuais nos revelam os imponderáveis de nossa existência.
Em dias de isolamento social e de saudades, os torcedores, como eu, sentem falta do futebol, um espaço de sociabilidades e da manifestação das mais diversas emoções humanas, como a alegria e a felicidade do gol marcado e da vitória, e até mesmo a tristeza e a raiva da derrota. Nos atuais tempos (in)tensos (PRATA, 2019), resta acompanhar na televisão a reprise de jogos antigos nas tardes de domingo. Enquanto cresce o contato simultâneo através das lives, transmissões ao vivo pela internet, o mundo do futebol, bastante acostumado ao acompanhamento ao vivo, agora se volta para a memória de tempos passados. Seja a seleção brasileira tetracampeã liderada por Romário e Bebeto em 1994, ou a vitória épica sobre a Argentina na Copa das Confederações de 2005, os clássicos revisitados desencadeiam "a presença de todas as outras imagens que nos habitaram em momentos e situações anteriores" (ROCHA; ECKERT, 2013: 46).
Por outro lado, os clubes encontram nas lives uma saída possível para a penúria financeira que a falta de jogos lhe impõe. O Fortaleza Esporte Clube, por exemplo, realizou no dia 3 de junho uma live com mais de 70 mil expectadores que contou com a apresentação de bandas de forró e com a venda de camisas com 50% de desconto. Junto com a arrecadação, algo do vínculo afetivo entre torcedor e clube é alimentado.
Na principal obra da sociologia do esporte, A busca da excitação, o sociólogo alemão Norbert Elias parece nos estar falando sobre o tédio no cotidiano dos amantes do futebol em tempos de pandemia quando descreve que:
Existe pouca excitação na sua vida normal; talvez não exista nenhum desporto nem entusiasmo para o praticarem. Podem estar sem trabalho, se é que alguma vez o tiveram. De um modo geral, a vida é particularmente monótona. Nada de especial acontece (ELIAS, 1992:91).
Em tempo de bolas paradas e campos vazios, os torcedores e praticantes desse esporte estão distantes de práticas cotidianas fundamentais do futebol brasileiro, como os rachas e as resenhas. O racha é conhecido como "pelada" em algumas cidades brasileiras, como Recife, e é definido pela socióloga cearense Rosângela Pimenta (2009:34) como "[...] uma determinada forma de prática de futebol marcada pela ludicidade, espontaneidade e modificação das regras". Já a resenha é uma prática de sociabilidade também marcada pela brincadeira e alívio das tensões cotidianas. Sem os rachas e as resenhas se torna preciso buscar o entusiasmo mencionado por Elias de outras maneiras, preferencialmente dentro de casa.
Mesmo em tempos onde a bola não rola, o futebol ainda é um jogo de luta entre oposições (BOURDIEU, 2003). O presidente do Internacional de Porte Alegre, Marcelo Medeiros, defende que "jogador que não quiser jogar pede demissão". A possibilidade de um retorno precoce nos mostra a face escravocrata do nosso país presente no esporte, ou seja, o futebol, nas palavras do jornalista André Rocha, é "uma espécie de escravocracia moderna, na qual os agentes abaixo do guarda-chuva de quem manda são apenas números em uma planilha e precisam manter a roda girando. Mesmo que alguns paguem com a própria miséria e outros com a vida mesmo".
Do outro lado, o prefeito de Belo Horizonte e ex-presidente do Clube Atlético Mineiro, Alexandre Kalil (PSD), afirma que "pensar em futebol agora é coisa de débil mental". O técnico do Botafogo, Paulo Autuori, usou palavras igualmente fortes para criticar a urgência com que se quer retomar o calendário esportivo:
Me parece uma sandice falar sobre o retorno das equipes de futebol neste momento. Falta de respeito diante de tantas mortes e sofrimentos. Demonstra uma preocupante falta de conhecimento dos responsáveis a favor dessa medida sobre a complexa rotina dos treinamentos de futebol. Ausência de preocupação e de respeito aos profissionais, especialmente daqueles mais sacrificados, que não são jogadores nem membros da comissão técnica. Nós, profissionais, merecemos respeito. Querem futebol de volta? E daí? Lamento.
Na mesma linha do argumento de Paulo Autuori, o recente primeiro de maio, Dia do Trabalho, não foi uma data comemorativa para alguns funcionários do Flamengo. Após 46 dias de paralisação do futebol por conta da pandemia do novo coronavírus, o atual campeão Brasileiro e da Taça Libertadores da América demitiu 62 trabalhadores e trabalhadoras, cerca de 10% dos seus funcionários. Além disso, o Flamengo, conhecido como o "time do povo" ou o "time da massa", descontou 25% dos milionários salários dos seus jogadores profissionais. Enquanto os funcionários mais pobres foram demitidos, os jogadores milionários tiveram apenas parte dos salários comprometidos. Um clube da massa se voltou contra os seus.
O antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1989) descreve, em sua clássica obra A Interpretação das Culturas, a briga de galos em Bali. Para Geertz (1989:188), "[...] grande parte de Bali se revela numa rinha de galos. É apenas na aparência que os galos brigam ali - na verdade, são os homens que se defrontam". Substituindo os termos "briga de galos" por "futebol" e "Bali" por "Brasil", é possível compreender o futebol e suas sociabilidades em tempos de pandemia como maneiras de nos fornecer um comentário metassocial sobre o nosso país, pois a luta de oposições políticas e sociais permanecem durante o Covid-19.
Diante da tragédia que vivemos nos últimos meses, já é certo que não é “só uma gripezinha” o que nos acomete. Quem ama futebol sente a sua falta, mas no momento é necessária outra vitória antes que possamos continuar nos aglomerando nos “templos onde oram e comungam brasileiros comuns” (SIMAS, 2019). A bola precisa continuar parada para que os campos de futebol sejam lugares seguros. Um dia, ainda não sabemos quando, há de pulsar novamente o estádio que o escritor uruguaio Eduardo Galeano descreveu de modo único, mas universal:
Aqui o torcedor agita o lenço, engole saliva, engole veneno, come o boné, susurra preces e maldições, e de repente arrebenta a garganta numa ovação e salta feito pulga abraçando o desconhecido que grita gol ao seu lado. Enquanto dura a missa pagã, o torcedor é muitos. Compartilha com milhares de devotos a certeza de que somos os melhores, todos os juízes estão vendidos, todos os rivais são trapaceiros (GALEANO, 2019: 14-15).
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. (2003), "Como se pode ser desportista?" In: Questões de sociologia. Lisboa: Fim de Século, p. 181-203.
DAMATTA, Roberto. (1982), "Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro". In: Universo do Futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, p. 19-42.
_________________. (2006), A bola corre mais que os homens: duas copas, treze crônicas e três ensaios sobre futebol. Rio de Janeiro: Rocco.
GALEANO, Eduardo. (2019), Futebol ao sol e à sombra. Porto Alegre: L&PM.
GEERTZ, Clifford. (1989), A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.
NORBERT, Elias; DUNNING, Eric. (1992), A busca da excitação. Lisboa: Difel.
PIMENTA, Rosângela Duarte. (2009), Desvendando o jogo: o futebol amador e a pelada na cidade e no sertão. Tese de Doutorado - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
PRATA, Liliane. (2019), O mundo que habita em nós: reflexões filosóficas e literárias para tempos (in)tensos. São Paulo: Editora Instante.
ROCHA, Ana Luiza; ECKERT, Cornelia. (2013), "Etnografia de e na rua: estudo de antropologia urbana". In: Etnografia de rua: estudos de antropologia urbana: Editora da UFRGS.
SIMAS, Luiz Antonio. (2017), Ode a Mauro Shampoo e outras histórias da várzea. Rio de Janeiro: Mórula.
___________________. (2019), Pedrinhas miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros. Rio de Janeiro: Mórula.
Guilherme Custódio é mestrando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (PPGS/UECE). É também pesquisador do Grupo de Pesquisa Ciências Sociais e Cidade (UECE).
E-mail: guifil246@hotmail.com
Como citar esse texto: CUSTÓDIO, Guilherme. (2020), "A bola não corre mais: apontamentos sobre cultura e futebol no Brasil". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/06/15/A-BOLA-NAO-CORRE-MAIS
Editora Responsável: Luna Ribeiro Campos e Leonardo Nóbrega