O 1º DE ABRIL E AS RELAÇÕES ENTRE CIVIS E MILITARES NO BRASIL
Ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto. Foto: Isac Nóbrega/PR
Introdução
Na marca dos 56 anos do golpe de Estado que deu início à ditadura civil-militar (1964-1985), diversos integrantes do Governo Federal, inclusive o Presidente e o Vice-Presidente da República, se manifestaram nas redes sociais exaltando o regime autoritário. Mas para além desse movimento - que afinal era esperado, tendo em vista que no ano anterior a data já havia sido comemorada oficialmente -, outro fato importante foi observado no âmbito específico da crise da pandemia do novo coronavírus. A coletiva de imprensa que o então ministro da Saúde, Henrique Mandetta (DEM)[1], vinha promovendo diariamente na sede de seu ministério foi transferida para o Palácio do Planalto, com uma nova coordenação. À frente da coletiva, estava agora o novo ministro-chefe da Casa Civil, general Braga Netto. Respondendo pelos outros ministros, impedindo perguntas de jornalistas e coordenando a ação do executivo, o general parecia mostrar que, depois deste 31 de março de 2020, assim como fora 56 anos antes, a relação entre civis e militares no Brasil precisaria ser enfrentada sob novos ângulos.
As datas que marcam o golpe de 1964 – 31 de março e 1º de abril - têm sido momentos simbólicos para levantar discussões acerca dos legados autoritários e dos avanços democráticos do nosso processo de transição. Um desses debates diz respeito à interferência das Forças Armadas na condução de assuntos que se estendem para além das esferas estritamente militares da política nacional brasileira. A questão se tornou ainda mais importante nos últimos anos, devido à crescente ocupação de cargos de natureza não militar da administração pública por oficiais da ativa ou da reserva.
Sem jamais abandonar a arena política em todo o período republicano, os militares brasileiros oscilaram, como em um movimento pendular, entre momentos de maior e menor autonomia na condução dos assuntos extramilitares da política nacional. Após a transição, a autonomia política das Forças Armadas foi progressivamente diminuindo, ainda que em um ritmo “lento, gradual e seguro”. No entanto, desde a crise política que levou ao controverso impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016, o sentido do pêndulo voltou a se alterar e, ao longo dos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, a politização dos militares foi significativamente ampliada.
Durante a Nova República, a ausência dos militares no primeiro plano do debate político esteve relacionada à adoção de uma série de medidas implementadas pelos governos democraticamente eleitos. Dentre elas poderiam ser citadas: a extinção do Serviço Nacional da Informações em 1990 e a criação da Agência Brasileira de Inteligência em 1999; o estabelecimento da justiça comum como foro para julgar militares acusados de cometer crimes comuns em 1996; a formulação de uma Política Nacional de Defesa também em 1996 (com atualizações em 2005 e 2012); a criação do Ministério da Defesa em 1999; a construção da Estratégia Nacional de Defesa em 2008 (com atualização em 2012) e a publicação do Livro Branco da Defesa (2012).
Sem negar a inequívoca importância de cada uma dessas reformas, o que se observa na conjuntura atual é um marcante retrocesso na quase totalidade desses aspectos. Assim, essa oscilação recente, registrada em tão curto espaço de tempo e sem uma clara ruptura institucional, vem colocando em questão os limites das interpretações das relações civis-militares no Brasil contemporâneo, que apontavam para uma volta definitiva dos militares brasileiros à caserna. Segundo essas leituras, as reformas institucionais que vinham sendo adotadas estariam logrando limitar as esferas de responsabilidade das Forças Armadas no âmbito da administração do Estado brasileiro. Ou seja, o processo de profissionalização dos militares brasileiros vinha sendo bem-sucedido.
Frente às drásticas mudanças no cenário político, cuja marca simbólica mais central é o fato de que há hoje mais militares no primeiro escalão do executivo federal do que se registrava no período ditatorial, este parece ser um momento oportuno para a adoção de novas perspectivas de análise sobre as relações entre o poder político e as Forças Armadas no Brasil. Afinal, como explicar o retorno das fardas à política? A proposta deste texto é apresentar, de forma muito inicial, contribuições que distintos campos do conhecimento das ciências humanas podem oferecer à reflexão sobre o tema.
A politização dos militares brasileiros nos últimos anos: diferentes olhares e tentativas de explicação
Apresentaremos aqui três conjuntos de argumentos que podem ajudar a compreender a conjuntura atual. Com base naquilo que nos ensinam os historiadores sobre a importância de se observar os fenômenos sociais e políticas em seus diferentes tempos, esses argumentos se baseiam: 1) na longa temporalidade - que remete ao início da República; 2) na média temporalidade - que diz respeito às características da transição à democracia; e 3) na curta temporalidade - que tem a ver com a atuação dos militares ao longo do regime democrático.
Do ponto de vista da longa temporalidade, é preciso levar em conta que a história republicana brasileira foi marcada pela interferência recorrente das Forças Armadas na política nacional, isto é, em assuntos extramilitares. Com base no imaginário de que a farda representaria a ordem, a estabilidade e a defesa contra a “corrupção”, foram inúmeros os momentos em que parte da sociedade e das elites políticas e econômicas recorreram a soluções armadas. A usurpação do poder político civil pelos militares com o golpe de 1964 foi apenas o ápice desse longo processo. Nesse sentido, seria possível encarar o presente pela ótica dessa tradição, de modo que o agora seria apenas mais uma expressão de uma história mais longeva.
Um segundo argumento que também se assenta sobre uma perspectiva de tempo mais larga diria respeito à existência de um certo ethos militar, desenvolvido ao longo das décadas, que no caso brasileiro estaria marcado por uma perspectiva de necessidade de intervenção no processo político, na medida em que os militares se encaram como mais capazes e mais preparados do que os civis para conduzir os assuntos políticos da Nação.
Não obstante, apelar apenas para uma tradição histórica mais longa, mesmo que esta remonte ao final do século XIX, parece insuficiente para dar conta de compreender o momento específico que se vive. Não se pode ignorar as mudanças trazidas com o final da ditadura e, principalmente, com as três décadas de regime democrático da Nova República, sob o risco de tratarmos de maneira indiscriminada processos e fenômenos que guardam entre si diferenças importantes.
No quadro das explicações que voltam o olhar para o processo de transição, vale lembrar os argumentos da transitologia, notadamente a questão da “transição por transação” que teria caracterizado o Brasil, nos termos de Donald Share e Scott Mainwaring. Ao contrário de transições marcadas pela "derrocada" ou pelo "colapso" do regime anterior, a "transição pela transação" garante às elites políticas do regime autoritário em declínio o controle sobre o processo político, de modo que este tipo específico de transição normalmente ocorre de maneira a garantir às Forças Armadas "a continuação da autonomia militar" (Share e Mainwarning, 1986: p.212).
Um desenvolvimento específico da transitologia foi a conformação de um campo, menos vinculado à ciência política e mais ao direito internacional dos direitos humanos, conhecido como justiça de transição. Os especialistas dessa área apontam para o déficit democrático que os Estados carregam quando não levam adiante políticas públicas para acertar as contas com seus passados ditatoriais, a partir da promoção dos direitos à memória, verdade, justiça e reparação. Nesse sentido, o Brasil costuma figurar como um mau-exemplo, pois foram muito tímidas as ações adotadas ao longo da Nova República, especialmente na promoção da justiça, uma vez que segue em vigor a Lei de Anistia de 1979, garantindo a impunidade aos militares responsáveis por graves violações de direitos humanos durante a ditadura. Como consequência dessa ausência de medidas mais efetivas, as Forças Armadas do país jamais reconheceram suas responsabilidades pela violência do passado autoritário, o que as impede de promover um processo de reflexão sobre qual seria seu papel em uma sociedade democrática.
Apesar da relevância desses argumentos, eles carregam um problema fundamental: adotar a dinâmica da transição como elemento capaz de oferecer uma explicação global para os fenômenos correntes. É pouco profícuo tentar compreender o contexto recente da politização dos militares lançando mão apenas desse viés explicativo. Em contraposição, poderíamos apontar dois argumentos. No caso da “transição por transação”, vale notar que o artigo citado é um estudo de caso do Brasil e da Espanha. No entanto, o desenvolvimento das relações civis-militares se deu de maneira bastante distinta nos dois países. Nesse sentido, parece necessário pensar em outras variáveis, que se encontram no próprio regime democrático, para investigar o caso brasileiro.
Do mesmo modo, a despeito da importância inequívoca das medidas de justiça de transição, também este argumento possui seus limites. Cada um dos pequenos passos dados em termos de memória, verdade, justiça e reparação no Brasil foi acompanhado de intensas críticas e mobilizações dos militares. Isto é, no caso brasileiro, a adoção dessas medidas é elemento que ajuda a explicar a politização dos militares, não o contrário. Não à toa, foi precisamente durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, quando a denúncia pública das graves violações de direitos humanos promovidas durante a ditadura teve sua maior amplitude em todo o período democrático, que surgiram os primeiros atos públicos por “intervenção militar”.
Por fim, no que toca a processos vinculados a uma temporalidade mais curta, poderíamos apontar algumas contribuições relevantes. Em primeiro lugar, é possível recuperar o conceito da “tutela militar” desenvolvido por Eliézer Oliveira para definir o padrão de relações civis-militares no governo José Sarney (1985-1990). Isso porque tal conceito foi empregado para designar “uma situação na qual um governo politicamente frágil de apoio partidário e parlamentar encontra nas Forças Armadas a fonte primeira de sua estabilidade”. Ao fazê-lo, Sarney teria garantido como contrapartida aos militares “um grau elevado de autonomia política” da instituição fardada em relação a assuntos propriamente militares mas também extramilitares (Rizzo, 1994). Mutatis mutandis, o conceito de tutela militar parece apresentar um grande rendimento analítico para explicar a crescente ocupação de cargos de natureza não militar da administração pública federal por oficiais militares da ativa ou da reserva nos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro.
No caso de Michel Temer, o questionamento sobre a legitimidade de um governo nascido de um controverso impeachment, a dissolução da sua base parlamentar em função da corrida eleitoral de 2018, o envolvimento direto do seu nome em escândalos de corrupção, e, principalmente, seus baixíssimos níveis de aprovação, são elementos que demonstram fragilidades da gestão e que ajudam a explicar o porquê Temer foi buscar nas Forças Armadas uma fonte de estabilidade para o restante de seu mandato, experiência cujo ápice foi a intervenção federal/militar no estado do Rio de Janeiro em 2018. No governo de Jair Bolsonaro, por sua vez, a falta de articulação política com o Congresso Nacional e a ausência de quadros minimamente qualificados em seu partido são alguns dos fatores a serem considerados.
Este argumento, contudo, funciona de forma unidirecional: ajuda a explicar a razão pela qual tais governos procuram sustentação nas Forças Armadas, mas não é suficiente para compreendermos as motivações da instituição e de seus representantes para se movimentar a fim de retornar ao primeiro plano da política. Para isso, elencamos dois fatores que não podem ser ignorados sobre a atuação dos militares ao longo do regime democrático.
Por um lado, pesquisadores das relações internacionais têm se dedicado a pensar nos efeitos não previstos da participação dos militares brasileiros na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH) sobre a política doméstica nacional. Alguns dos autores desta abordagem concluem que ao invés de contribuir para o fortalecimento da autoridade e do controle objetivo do poder político civil sobre as Forças Armadas (como previa a tese do peacekeeper democrático), a participação de militares brasileiros na MINUSTAH teria produzido uma maior politização das Forças no contexto das políticas domésticas (Marques, 2018). Tanto a transferência de fundos e prestígio da ONU aos oficiais militares do país, quanto a legitimação doméstica das práticas adotadas pelos militares brasileiros no Haiti enquanto um “caso de sucesso”, teriam contribuído para que a instituição se sentisse autorizada junto à opinião pública nacional para desempenhar maior interferência na política nacional (Satomayor, 2014).
Outros especialistas em segurança pública, notadamente sociólogos e cientistas políticos, têm se dedicado a analisar as consequências da utilização reiterada das Forças Armadas no desempenho de papel de polícia. Nos termos de Muniz e Júnior (2007: p. 53), é preciso levar em conta a “possível autonomização” das Forças Armadas quando estas assumem tarefas de policiamento. Isso porque “os que detêm o poder de policiar constituem um dos mais poderosos grupamentos políticos concebíveis”, de modo que se há uma sobreposição entre Forças Armadas e polícias, ocorre uma perigosa concentração do monopólio do uso da força. Assim, “ a associação do ethos das Forças Armadas com a penetração e o alcance da polícia desafia de maneira explícita os arranjos internos de qualquer comunidade política”.
Considerações finais
Enquanto contemplávamos os últimos trinta anos pela chave da profissionalização das Forças Armadas, elas construíram, a partir da atuações nos planos internacional e doméstico, fortes bases de legitimidade. Para os governos democráticos, esses aspectos eram vistos como complementares: a promoção de reformas institucionais parecia garantir o poder objetivo dos civis sobre os fardados e asseguraria um fortalecimento dos militares para a atuação em cenários que, a princípio, não indicavam extrapolar suas atribuições. Entretanto, no quadro da grave crise política que vivemos, tornou-se claro que o resultado de tal movimento não ocorre desta forma.
O propósito central deste texto foi fazer um convite à renovação da reflexão sobre as relações civis-militares no Brasil da Nova República. Analisar melhor o passado recente, afastando a crença inabalável na suposta profissionalização definitiva dos militares, parece ser um caminho importante para que possamos entender as transformações que tiveram início em 2016, se aprofundaram radicalmente após 2018 e seguem em curso, com toda a força.
NOTAS
[1] Luiz Henrique Mandetta deixou o Ministério da Saúde há alguns dias, em 16 de abril.
REFERÊNCIAS
MARQUES, Adriana. (2018), “Missões de paz e a relações civis-militares: reflexões sobre o caso brasileiro”. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, v.7, n.14, Jul./Dez. 2018 | p.242-262.
MUNIZ, Jacqueline de Oliveira & JÚNIOR, Domício Proença. (20017), “Forças Armadas e policiamento”. Revista Brasileira de Segurança Pública, n.1, v.1.
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo. (1994.), De Geisel a Collor: forças armadas, transição e democracia. Campinas, SP: Papirus.
SHARE, Donald; MAINWARING, Scott. (1986), “Transições pela Transação: a democratização no Brasil e na Espanha”. DADOS – Revista de Ciências Sociais, v. 29, n. 2. Disponível em: http://dados.iesp.uerj.br/artigos/?id=321, 1986 p. 212.
SOTOMAYOR, Arturo. (2014), The Myth of the democratic peacekeeper: civil-military relations and the United Nations. Baltimore, John Hopkins University Press.
Como citar esse texto: MARTINS DA COSTA, Hugo; PEDRETTI, Lucas. (2020), "O 1º de Abril e as Relações entre Civis e Militares no Brasil". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/04/20/O-1-DE-ABRIL-E-AS-RELACOES-ENTRE-CIVIS-E-MILITARES-NO-BRASIL
Hugo Bras Martins da Costa é Doutorando em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociaise Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e pela Sciences Po Paris.
Lucas Pedretti é Doutorando em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Editora Responsável: Marcia Rangel Candido