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  • Bárbara Fontes

COMO VOLTAR PARA A ESCOLA APÓS A PANDEMIA?




Na escola em que eu leciono, as aulas começaram somente uma semana antes da suspensão das atividades devido à pandemia do Covid-19. No primeiro encontro com as turmas, propus uma dinâmica de acolhimento e boas vindas na qual, em círculo, todos falamos, usando de preferência apenas uma palavra, sobre o sentimento de retornar àquele espaço intenso de convivência e sobre o que é importante para que cada um se sinta seguro e confortável no ambiente escolar.


Nas quatro turmas em que fiz a dinâmica, as respostas foram semelhantes. No que se refere ao que sentiam por estar voltando às atividades na escola, os educandos demonstraram, em geral, desânimo e resistência. Foi comum ouvir falas como “já estou cansadx”, “estou deprimidx”, “já estou ansiosx pelas férias”, “estou estressadx”. Por outro lado, pouquíssimos foram os que demonstraram estar felizes ou motivados com o início do ano letivo. Em relação ao que é importante para que se sintam bem na escola, predominaram palavras como “amigos/amizade”, “respeito”, “empatia”, “compreensão” e “acolhimento”. Nessa segunda pergunta, o objetivo era que estabelecêssemos valores comuns da turma para o ano letivo. Com o acordo dos colegas em relação às palavras ditas, seria colado na sala de aula um cartaz com as palavras para que sempre voltássemos àquilo em situações de conflito.


Apesar de algumas resistências pontuais no início da dinâmica, ela foi bem recebida e teve o papel também de exercitar a escuta, uma vez que deveríamos ouvir todos e esperar a nossa vez de falar. Na explicação da escolha da palavra que expressasse o que é importante para que os educandos se sintam bem na escola, me chamou a atenção que diversas falas foram no sentido de expressar como, muitas vezes, esse ambiente é hostil e violento, seja no sentido das cobranças acadêmicas, seja no sentido das relações interpessoais.


Essa dinâmica confirmou algo há muito sabido por estudiosos dos sistemas escolares: a escola é, antes de tudo, um importante espaço de socialização, como evidenciaram as respostas da segunda pergunta. As respostas negativas da primeira pergunta que, a priori, trariam uma perspectiva individual, expõem o fracasso de um modelo educacional tecnicista, defasado e verticalizado, que não dá espaço às potencialidades e emoções dos educandos no processo de ensino-aprendizagem. Não por acaso, alguns deles mencionaram na dinâmica a “pressão” que sofrem e a falta de tempo para que possam fazer atividades que gostam.


Com a chegada da pandemia e do isolamento forçado, fiquei me perguntando se os estudantes mudariam a fala caso fizéssemos novamente a dinâmica depois que tudo isso passar. Fiquei pensando também sobre a importância da disciplina escolar sociologia, e as diversas reflexões que podemos fazer, em decorrência da pandemia, sobre desigualdade social, individual e coletivo (ou indivíduo e sociedade, para usarmos a oposição clássica das ciências sociais), capitalismo e o papel do Estado na sociedade. Mas, acima de tudo, venho me questionando sobre o lugar da escola na nossa sociedade, sobre o que levamos do nosso período escolar e sobre o seu papel na formação do nosso senso de coletividade.


Em relação a isso, o autor Daniel Munduruku, propõe, a partir das cosmovisões indígenas, importantes reflexões sobre nossa concepção de educação e sociedade. No livro O banquete dos deuses: conversa sobre a origem da cultura brasileira, publicado originalmente em 2000, Munduruku, que também é professor, explica o que considera um problema do processo educativo brasileiro: a separação entre a “educação” e o “ser humano”.


Enquanto o foco está na transmissão de conhecimentos e conteúdos, perde-se a dimensão subjetiva que também faz parte – ou deveria fazer – da educação formal, uma vez que “as pessoas possuem uma série de sentimentos, emoções, afetividades, sonhos e desejos e tudo isso precisa ser motivado, trabalhado e, às vezes, educado a fim de que elas saibam lidar com tudo isso” (Munduruku, 2009:70). O autor não desconsidera todas as limitações que temos em nosso precário sistema educacional, destacando o exercício da “liberdade” como uma forma de humanizar o processo educacional.


O sentido de “liberdade” defendido por Munduruku é bem diferente daquele propagado pelo liberalismo, focado no indivíduo. Para o autor, exercitar a liberdade é justamente desenvolver a capacidade de respeitar e reconhecer no outro a sua potencialidade. Essa capacidade de “olhar além” de nós mesmos traz a dimensão da coletividade para o processo educacional ao imprimir, na prática cotidiana, o reconhecimento da alteridade como parte da construção de conhecimento.


Pergunta Munduruku (2009:71): “O que está por trás do respeito? É saber que a pessoa que nós respeitamos tem algo além de nós, é um ser que merece nossa reverência”. Na tradição oralizada das sociedades indígenas, os mais jovens possuem liberdade, mas reconhecem, em primeiro lugar, o caminho mais longo percorrido pelos mais velhos, reverenciando esses saberes. Isso não se dá de forma impositiva e verticalizada, como muitas vezes acontece em nosso sistema educacional, mas faz parte da construção da autoestima da criança. Para respeitar ao outro, deve-se respeitar a si mesmo; para ser livre, deve-se querer o outro livre também.


Humanizar nosso sistema educacional é, assim, “olhar para o educando como um ser humano integral e não apenas como depositário de um conhecimento” (p.73). Isso inclui estimulá-lo a descobrir suas potencialidades e reconhecer a dimensão sensível que envolve o processo de ensino-aprendizagem. Presumo que as queixas dos educandos na dinâmica de boas vindas à escola estejam muito relacionadas à pouca humanização que nosso sistema educacional nos permite ter. Sobre isso, e sobre muitas outras coisas, muito tem a nos ensinar as sociedades indígenas, onde “educa-se para a compreensão e a colaboração e não para a disputa do saber; não para a competição e sim para a paz” (Munduruku, 2009:70).


Como será quando retornarmos às atividades escolares? Talvez o isolamento forçado traga o reconhecimento de um importante papel da escola: nos mostrar que, para haver uma vida comunitária saudável, precisamos respeitar e acolher a diferença, entendendo que o coletivo está acima do individual. Para isso, não podemos ficar preocupados apenas em dar conta dos conteúdos atrasados, reproduzindo a lógica produtivista e tecnicista já tão entranhada em nós, como se nada tivesse acontecido. Precisamos abrir espaços de diálogo, mesmo que pequenos, para começarmos a refletir coletivamente sobre as lições que podemos tirar disso tudo. Talvez seja o momento oportuno para que a comunidade escolar possa discutir, de forma horizontal, sobre o modelo de educação, escola e sociedade que temos até agora e começar a construir reflexões sobre possibilidades mais colaborativas e acolhedoras daqui para a frente.


Em meio à pandemia do Covid-19, que tem potencial para reconfigurar valores e a forma como nos pensamos em sociedade, as contribuições de Daniel Munduruku são muito pertinentes para refletirmos sobre o nosso sistema educacional. As sociedades indígenas, que têm o comum e o coletivo como cerne de sua organização social, podem nos ajudar a perceber que a escola, muito mais do que um lugar de transmissão de um dado tipo de conhecimento, é um espaço profícuo a “educar” no sentido de construir valores coletivos como solidariedade, respeito e horizontalidade. Em situações limites como a que estamos vivendo – e como a que as sociedades indígenas já vivem há séculos – esses valores são essenciais não só para resistirmos, mas, principalmente, para reexistirmos e nos reinventarmos enquanto sociedade.




REFERÊNCIAS


MUNDURUKU, Daniel. (2009), O banquete dos deuses: conversa sobre a origem da cultura brasileira. São Paulo: Global.




Como citar esse texto: FONTES, Bárbara de Souza. (2020), "Como voltar para a escola após a pandemia?". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/03/26/COMO-VOLTAR-PARA-A-ESCOLA-APOS-A-PANDEMIA



Bárbara de Souza Fontes é Professora de Sociologia do Colégio Pedro II. Mestre e Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da UFRJ.

email: barbarafontes@gmail.com



Editora Responsável: Luna Ribeiro Campos











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