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  • Marcia Rangel Candido

MEMÓRIA EM TEMPOS DE NEGACIONISMO


Imagem do acervo pessoal de Carlos Gallo

“Cuando tarda, no es justicia” (“Quando tarda, não é justiça”). Há um ano, li esta frase num cartaz quando estive visitando o Museo de la Memoria, em Montevidéu. Com alguma frequência, volto a pensar nos múltiplos significados (políticos, sociais, históricos) que por ela são abrangidos. São significados que me fazem refletir sobre os caminhos e descaminhos percorridos nas lutas por memória, verdade e justiça em diversas regiões que, ao longo do século XX, passaram por regimes autoritários. Sejam eles as ditaduras nazi-fascistas instaladas na Europa, quer sejam as ditaduras de Segurança Nacional iniciadas na América Latina no contexto da Guerra Fria.

Diferenças à parte naquilo que se refere ao modo como essas ditaduras se desenvolveram em cada contexto, todos os países que passaram por um processo de transição[1] democrática entre as décadas de 1970 e 1990 viram demandas semelhantes surgirem, e, pouco a pouco, interpelarem as instituições reivindicando a elucidação dos crimes cometidos pelo Estado, a punição dos responsáveis pela repressão política e a preservação da memória sobre o período. Variaram bastante as “respostas” que o sistema político deu para os setores que reivindicaram (e reivindicam) o não esquecimento das violações praticadas em nome dos regimes autoritários que chegavam ao fim. Comissões da verdade, indenizações, julgamentos, reformas institucionais, construção de memoriais, cada país estabeleceu, ao longo das últimas décadas, e, sempre dentro daquilo que era considerado possível, algum tipo de mecanismo com vistas ao enfrentamento do passado, dando algum tipo de satisfação às vítimas e seus familiares, especificamente, e à sociedade como um todo, em sentido amplo.

Portugal, país que costuma ser identificado como o marco da 3ª onda de democratizações (Huntington, 1994), ao realizar seu processo de transição a partir de 25 de abril de 1974, quando foi iniciada a Revolução dos Cravos, estabeleceu, ainda nos primeiros meses após o fim da ditadura, as bases para o ajuste de contas com o regime fascista. Foram investigados os envolvidos com as violações praticadas pela polícia política e afastados de seus cargos os responsáveis pelas instituições vinculadas ao Estado Novo português – denominação utilizada para designar, oficialmente, o regime fascista instaurado em Portugal a partir de 1933 (ver, sobre as políticas de memória no contexto português: Raimundo, 2018).

Na Argentina, para dar um exemplo geograficamente próximo do contexto brasileiro, assim que foi iniciado o mandato de Raúl Alfonsín na presidência (em 10 de dezembro de 1983), e chegou ao fim a ditadura que existiu no país entre 1976 e 1983, foi instituída uma comissão responsável pela investigação dos crimes cometidos pela repressão, com ênfase nos casos de desaparecimento [2]. Na mesma época, os integrantes das Juntas Militares que comandaram o país após o Golpe de Estado foram processados e, em sua maioria, punidos pelos crimes cometidos na “Guerra Suja” (termo utilizado para designar a perseguição aos e às militantes de esquerda). Entre avanços e recuos, os julgamentos das violações aos direitos humanos praticadas em nome do Estado argentino seguem ocorrendo até a atualidade, tendo levado centenas de envolvidos com a repressão ao banco dos réus, ainda que tudo o que tenha sido realizado nos últimos anos tenha ocorrido após uma fase marcada pelo bloqueio das demandas por justiça cujas particularidades, devido ao espaço, não poderão ser aqui exploradas (detalhes sobre o caso argentino podem ser consultadas em: CELS, 2010; 2015).

Assim como seus vizinhos do Cone Sul, que com o final das ditaduras foram pressionados por organizações de direitos humanos, grupos de vítimas e outros setores da sociedade a prestar contas pela violência política, o Brasil também veio trilhando, desde o fim do regime autoritário, um tortuoso caminho em direção às demandas por memória, verdade e justiça. Em 1995, após dez anos desde a saída das Forças Armadas do Poder Executivo, foi editada uma lei prevendo reparação econômica aos familiares de mortos e desaparecidos (Lei 9.140/1995). Em 2002, foi criada a Comissão da Anistia, responsável pela reparação às pessoas perseguidas pela ditadura. Em 2012, quase três décadas desde o fim do regime, finalmente foi instalada uma Comissão da Verdade. A busca pela justiça até hoje tem sido inviabilizada com base numa interpretação restrita da Lei da Anistia (Lei 6.683/1979), e nenhuma pessoa envolvida com a repressão política foi julgada e condenada por seus crimes [3].

A despeito das políticas de memória que foram implementadas, uma dificuldade que persiste em todos contextos, embora com intensidades diferentes, se refere à existência de discursos negacionistas. Ou seja, por mais evidências que se tenha dos crimes cometidos em nome dos regimes autoritários, ainda existem pessoas que simplesmente negam os fatos, não acreditam neles e/ou os relativizam. Isso também ocorreu em países da Europa em diversos momentos. Em 2007, António Salazar, que comandou Portugal por décadas durante a ditadura do Estado Novo, foi escolhido como “o maior português de sempre” numa enquete realizada por um canal de televisão. Na França, túmulos de judeus tiveram uma suástica pixada por grupos neonazistas em mais de uma oportunidade. Na Espanha, defensores do franquismo marcharam em Madri, em 2018, fazendo atos em homenagem ao ditador no aniversário de sua morte. Na Argentina, apesar dos avanços no tocante à realização da justiça, pessoas vinculadas ao governo do presidente Mauricio Macri relativizaram a violência política ocorrida durante a ditadura. No Brasil, em outubro de 2018, passados quatro anos desde a entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, foi eleito presidente da República um político que relativiza os crimes cometidos pela repressão, os justifica, nega o caráter autoritário do regime, e, inclusive, faz apologia pública a um torturador.

Por qual razão a negação persiste? O que é possível fazer para minimizá-la? Certamente, neste texto será impossível responder de maneira definitiva às perguntas formuladas. Isto se deve, por um lado, pela grande quantidade de variáveis que podem e devem ser consideradas. Por outro lado, a impossibilidade referida está diretamente relacionada ao foco que se dá na seleção daquilo que impacta (ou não) na existência do fenômeno. Certamente, há uma série de questões psicológicas envolvidas nos atos de lembrar, esquecer e negar. Focando-se, contudo, em elementos sócio-políticos, a análise dos processos que levaram ao fim de regimes autoritários e à instauração de novas democracias pode ser observada, no que tange ao fenômeno do negacionismo, a partir de dois aspectos intimamente relacionados entre si: 1. A forma como se deu a mudança de regime; 2. As políticas de memória que foram implementadas nestes países [4].

Imagem do acervo pessoal de Carlos Gallo

Estudos elaborados no rastro das transições à democracia estabeleceram, como uma hipótese que ajuda a entender (em parte) muitos contextos, a ideia segundo a qual países nos quais o regime autoritário foi finalizado de forma mais abrupta, promovendo uma ruptura mais profunda entre o velho regime e o novo, tendem a implementar políticas de memória mais efetivas (ver, entre outros: Aguilar Fernández, 2008; Jelin, 2017; Morlino, 2013). As condições sociais e políticas para a manutenção e o fortalecimento da negação dos crimes cometidos por regimes autoritários, acredito, também podem ser observadas a partir da hipótese mencionada. Isto é, e dito em outras palavras, é possível que naqueles contextos nos quais a transição à democracia tenha sido menos abrupta e, portanto, mais negociada, seja potencializado o negacionismo.

O que foi dito parece válido pensando-se, por exemplo, no caso do Brasil e da Argentina. O caso brasileiro é identificado como um exemplo de uma transição negociada, na qual os setores que saíram das estruturas de poder tiveram grande ingerência tanto sobre o processo transicional (que durou mais de uma década), como no estabelecimento das bases do novo regime. O caso argentino, ao contrário, é um exemplo contundente de uma transição por ruptura, na qual as Forças Armadas tiveram baixíssima capacidade de estabelecer as condições de sua retirada do poder. Em ambos os casos, apesar das diferenças, encontra-se exemplos de discursos negacionistas. O potencial e os efeitos destes discursos, contudo, são bastante distintos.

Quando integrantes do Governo Macri relativizaram o número de desaparecidos políticos, manifestações massivas tomaram as ruas do país, mobilizando a população. Embora as políticas de memória no país estejam passando por um período complicado, recuos contra avanços conquistados são, em essência, minimizados mediante mobilização [5]. Quando alguma figura pública brasileira relativiza a violência praticada durante a ditadura, o que se verifica é uma baixa capacidade de mobilização contra os setores que buscam negar o que foi feito pelo regime autoritário. As eleições presidenciais podem ser consideradas como paradigmáticas neste sentido, afinal, o presidente eleito faz, reiteradamente, apologia à ditadura e à violência, e, em seu Governo, iniciado em janeiro de 2019, há uma grande concentração de integrantes das Forças Armadas ocupando cargos de destaque.

Apresentados alguns elementos que ajudam a entender, ainda que parcialmente, por qual razão o fenômeno do negacionismo não apenas se mantém, mas também se fortalece em alguns casos, persiste a pergunta: O que fazer, então, para minimizar seus efeitos? Esta, talvez, seja uma questão mais simples de ser respondida. É necessário continuar lembrando, reivindicando o não-esquecimento. A persistência da memória sobre as violações ocorridas é condição para que discursos negacionistas tenham seu potencial reduzido. Quanto mais informação sobre o tema, melhor. Não é uma tarefa fácil, sobretudo em contextos nos quais o acesso aos arquivos da repressão é bloqueado, o orçamento para implementação de medidas reparatórias é reduzido, e, inclusive, os estudos sobre o tema são deslegitimados. Apesar de não ser fácil, é um caminho possível para a construção de uma cultura democrática e a favor dos direitos humanos.

Se os caminhos da justiça se encontram bloqueados, lutemos para que a memória seja preservada. Para que não se negue. Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça.

NOTAS

[1] Os processos de transição à democracia foram intensamente analisados por pesquisadores e pesquisadoras de diversas regiões a partir da década de 1970, dando origem a uma agenda de estudos da ciência política que foi denominada de “transitologia”. Uma referência fundamental na compreensão destes processos políticos foi o projeto “Transições do regime autoritário”, coordenado pelo cientista político argentino Guillermo O’Donnell. Os resultados parciais do projeto podem ser consultados em: O’Donnell; Schmitter, 1988.

[2] Organizações de direitos humanos e grupos de familiares de vítimas da ditadura argentina, como a Asociación Madres de Plaza de Mayo e Abuelas de Plaza de Mayo, entre outras, estimam em 30 mil o número de desaparecidos políticos no país. A comissão criada pelo presidente Alfonsín, oficialmente denominada Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas (CONADEP), funcionou entre 1983 e 1984, e, no final dos seus trabalhos, publicou o relatório “Nunca Más” (“Nunca Mais”). A CONADEP tem sido considerada para muitos estudiosos, entre os quais se destaca a pesquisadora Priscilla Hayner (2011), como uma das primeiras Comissões da Verdade instalada em períodos de redemocratização.

[3] A Lei da Anistia brasileira tem sido interpretada, desde o contexto da transição, como sendo uma “anistia recíproca”. Ou seja, uma regra que beneficiaria tanto as vítimas da repressão como as pessoas que praticaram violações aos direitos humanos. A interpretação da norma que beneficia agentes da repressão é questionada por organizações de direitos humanos e grupos de vítimas da ditadura desde a promulgação da lei. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal se posicionou sobre o tema no julgamento da ADPF 153. A maioria dos ministros, contudo, entendeu que, independente da falta de clareza na lei, a intepretação corrente estava correta à luz do ordenamento jurídico brasileiro, ainda que a normativa internacional sobre o tema sugira que tais regras sejam consideradas inválidas. Sobre a anistia no contexto brasileiro, ver: Bernardi, 2017; Gallo, 2017.

[4] Os estudos transitológicos criaram categorias para caracterizar os modos como ocorriam as transições à democracia no contexto da 3ª onda. As classificações mais recorrentes costumaram classificar os processos transicionais em “transições por ruptura” (ou “por colapso”) e “transições negociadas” (ou “pactadas”).

[5] Sobre as manifestações na Argentina, ver: https://www.pagina12.com.ar/27784-en-esta-plaza-gritamos-son-30-000

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUILAR FERNÁNDEZ, Paloma. Políticas de la memoria y memorias de la política: el caso español en perspectiva comparada. Madrid: Alianza Editorial, 2008.

BERNARDI, Bruno Boti. "O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e o caso da guerrilha do Araguaia: impactos no Brasil". Revista Brasileira de Ciência Política, 2017, n.22, p.49-92.

CELS – Centro de Estudios Legales y Sociales. Derechos humanos en Argentina: informe 2010. Buenos Aires: Siglo XXI, 2010.

_____. Derechos humanos en Argentina: informe 2015. Buenos Aires: Siglo XXI, 2015.

GALLO, Carlos Artur. "O Brasil entre a memória, o esquecimento e a (in)justiça: uma análise do julgamento da ADPF nº 153 pelo Supremo Tribunal Federal". Revista Brasileira de Ciência Política, 2017, n.24, p.81-114.

HAYNER, Priscilla B. Unspeakable truth: transitional justice and the challenge of truth commissions. 2.ed. Londres: Routledge, 2011.

HUNTINGTON, Samuel P. A terceira onda: democratização no final do século XX. São Paulo: Ática, 1994.

JELIN, Elizabeth. La lucha por el pasado: cómo construimos la memoria social. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2017.

MORLINO, Leonardo. "Legados autoritários, política do passado e qualidade da democracia na Europa do Sul". In: PINTO, António Costa; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.). O passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 261-294.

O’DONNELL, Guillermo; SCHMITTER, Philippe C. Transições do regime autoritário: primeiras conclusões. São Paulo: Vértice / Revista dos Tribunais, 1988.

RAIMUNDO, Filipa. Ditadura e democracia, legados da memória. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2018.

Carlos Artur Gallo é Doutor em Ciência Política pela UFRGS e Professor do Departamento de Sociologia e Política da UFPel .

Contato: galloadv@gmail.com

Editora responsável: Simone da Silva Ribeiro Gomes

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