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  • Gabriela Trevisan

“OS PORCOS” E A ESCRITA FEMINISTA DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA

Acervo de Cláudio Lopes de Almeida, neto da escritora - s/d

“Os Porcos”, da escritora carioca Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), é parte da coletânea de contos Ânsia Eterna, publicada em 1903. A narrativa conta a história da cabocla Umbelina e de seu desejo de vingança, permeado pela rejeição do pai e do filho do patrão, seu amante, após uma gravidez fora do casamento. O texto ganhou concursos e teve traduções, sendo inspirado, segundo a própria autora, em histórias que ouvira no campo, ainda jovem, e que a haviam horrorizado.


Júlia Lopes de Almeida publicou, além de contos, crônicas, romances, manuais de comportamento e de jardinagem, relatos de viagem, peças de teatro e livros didáticos, assim como contribuiu em diversos jornais de grande circulação, como O País e Jornal do Comércio, e em periódicos femininos e/ou feministas, a exemplo de A Família e A Mensageira. Suas obras tinham grande circulação, sendo Júlia muitas vezes homenageada em eventos no território nacional e mesmo internacional.


Sua imagem foi muitas vezes associada à de uma mulher que conciliava o mundo da escrita com o cuidado da família, como na famosa entrevista concedida por ela e seu marido, Filinto de Almeida, a João do Rio, em 1904, na qual este afirma que “D. Júlia, a criadora genial, tem a doce arte de ser mãe”. Contudo, seu engajamento em causas feministas era notório, dialogando com outras escritoras, como Josephina Álvares de Azevedo, e militantes de renome, como Bertha Lutz, em especial na Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, grupo do qual também fez parte. As críticas à cultura patriarcal na virada dos séculos XIX e XX estavam latentes em suas obras, abordando os temas do casamento, da maternidade, da violência contra as mulheres e das mudanças no mundo urbano.


A seguir, trazemos às leitoras e aos leitores o conto “Os Porcos” na íntegra. O texto oferece um pequeno recorte das quase quarenta obras publicadas por Júlia Lopes de Almeida e mostra como, no momento em que a ciência se consolidava como discurso de verdade e tentava colonizar os corpos femininos, as mulheres escreviam e criavam personagens como Umbelina. Dessa forma, comprometidas com um engajamento feminista, elas denunciavam as violências sofridas pelas mulheres, anunciando deslocamentos e transgressões diante do ideal de domesticidade da época.


OS PORCOS

Julia Lopes de Almeida


A Artur Azevedo


Quando a cabocla Umbelina apareceu grávida, o pai moeu-a de surras, afirmando que daria o neto aos porcos para que o comessem.


O caso não era novo, nem a espantou, e que ele havia de cumprir a promessa, sabia-o bem. Ela mesma, lembrava-se. Encontrara uma vez um braço de criança entre as flores douradas do aboboral. Aquilo, com certeza, tinha sido obra do pai.


Todo o tempo da gravidez pensou, numa obsessão crudelíssima, torturante, naquele bracinho nu, solto, frio, resto dum banquete delicado, que a torpe voracidade dos animais esquecera por cansaço e enfartamento.


Umbelina sentava-se horas inteiras na soleira da porta, alisando com um pente vermelho de celuloide o cabelo negro e corredio. Seguia assim, preguiçosamente, com olhar agudo e vagaroso, as linhas do horizonte, tugindo de fixar os porcos, aqueles porcos malditos, que lhe rodeavam a casa desde manhã até a noite.


Verônica Berta, 2018 - adaptação do conto Os porcos

Via-os sempre ali arrastando no barro os corpos imundos, de pelo ralo e banhas descaídas com o olhar guloso, luzindo sob a pálpebra mole e o ouvido encoberto pela orelha chata, no egoísmo brutal de encontrar em si toda a tenção. Os leitões vinham por vezes, barulhentos e às cambalhotas, envolverem-se na sua saia e ela sacudia-os de nojo, batendo-lhes com os pés, dando-lhes com torça. Os porcos não a temiam, andavam perto, fazendo desaparecer tudo diante da sofreguidão dos seus focinhos rombudos e móveis, que iam e vinham grunhindo, babosos, hediondos, sujos da lama em que se deleitavam, ou alourados pelo pó de milho, que estava ali aos montes, flavescendo ao sol.


Ah! os porcos eram um bom sumidouro para os vícios do caboclo! Umbelina execrava-os e ia pensando um modo de acabar com o filho duma maneira menos degradante e menos cruel.


Guardar a criança... mas como? O seu olhar interrogava em vão o horizonte frouxelado de nuvens.


O amante, filho do patrão, tinha-a posto de lado... diziam até que ia casar com outra! Entretanto achavam-na todos bonita, no seu tipo de índia, principalmente aos domingos, quando se enfeitava com as maravilhas vermelhas, que lhe davam colorido à pele bronzeada e a vestiam toda com um cheiro doce e modesto...


Eram duas da madrugada, quando a Umbelina entreabriu um dia a porta da casa paterna e se esgueirou para o terreiro.


Fazia luar; todas as coisas tinham um brilho suavíssimo. A água do monjolo caia em gorgolões soluçados, flanqueando o rancho de sapé, e correndo depois em tio luminoso e trêmulo pela planície tora. Flores de gabiroba e de esponjeira brava punham lençóis de neve na extensa margem do córrego; todas as ervas do mato cheiravam bem. Um galo cantava perto, outro respondia mais longe, e ainda outro, e outro, até que as vozes dos últimos se contundiam na distância com os mais leves rumores noturnos.


Umbelina afastou com a mão febril o xale que a envolvia, e, descobrindo a cabeça, investigou com olhar sinistro o céu profundo.


Onde se esconderia o grande Deus, divinamente misericordioso, de quem o padre falava na missa do arraial em termos que ela não atingia, mas a faziam estremecer?


Ninguém pode fugir ao seu destino, diziam todos; estaria então escrito que a sua sorte fosse essa que o pai lhe prometia − de matar a tome aos porcos com a carne da sua carne, o sangue do seu sangue?!


Essas coisas rolavam-lhe pelo espirito, indeterminadas e confusas. A raiva e o pavor do parto estrangulavam-na. Não queria bem ao filho, odiava nele o amor enganoso do homem que a seduzira. Matá-lo-ia, esmagá-lo-ia mesmo, mas lançá-lo aos porcos... isso nunca! E voltava-lhe à mente, num arrepio, aquele bracinho solto, que ela tivera entre os dedos indiferentes, na sua bestialidade de cabocla matuta.


O céu estava limpo, azul, num céu de janeiro, quente, vestido de luz, com a sua estrela Vésper enorme e diamantina, e a lua muito grande, muito forte, muito esplendorosa!


A cabocla espreitou com olho vivo para os lados da roça de milho, onde ao seu ouvido agudíssimo parecera sentir uma bulha cautelosa de pés humanos: mas não veio ninguém, e ela, abrasada, arrancou o xale dos ombros e arrastou-o no chão, segurando-o com a mão, que as dores do parto crestavam convulsivamente. O corpo mostrou-se disforme, mal resguardado por uma camisa de algodão e uma saia de chita. Pelos ombros estreitos agitavam-se as pontas do cabelo negro e luzidio; o ventre pesado, muito descaído dificultava-lhe a marcha, que ela interrompia amiúde para respirar alto, ou para agachar-se, contorcendo-se toda.


A sua ideia era ir ter o filho na porta do amante, matá-lo ali, nos degraus de pedra, que o pai havia de pisar de manhã, quando descesse para o passeio costumado.


Uma vingança doida e cruel aquela, que se fixara havia muito tempo no seu coração selvagem.


A criança tremia-lhe no ventre, como se pressentisse que entraria na vida para entrar no túmulo, e ela apressava os passos nervosamente por sobre as folhas da trapoeraba maninha.


Ai! iam ver agora quem era a cabocla! Desprezavam-na? Riam-se dela? Deixavam-na à toa como um cão sem dono? Pois que esperassem! E ruminava seu plano, receando esquecer alguma minúcia...


Deixaria a criança viver alguns minutos, fá-la-ia mesmo chorar, para que o pai lá dentro, entre o conforto do seu colchão de paina, que ela desfiara cuidadosamente, lhe ouvisse os vagidos débeis e os guardasse sempre na memória, como um remorso.


Ela estava perdida. Em casa não a queriam; a mãe renegava-a, o pai batia-lhe, o amante fechava-lhe as portas... e Umbelina praguejava alto, ameaçando de fazer cair sobre toda a gente a cólera divina!


O luar com a sua luz brancacenta e fria iluminava a triste caminhada daquela mulher quase nua e pesadíssima, que ia golpeada de dores e de medo através dos campos. Umbelina ladeou a roça de milho, já seca, muito amarelada, e que estalava ao contato do seu corpo mal firme: passou depois o grande canavial, dum verde d’água, que o luar enchia de doçura e que se alastrava pelo morro abaixo, até lá perto do engenho, na esplanada da esquerda. Por entre as canas houve um rastejar de cobras, e ergueu-se da outra banda, na negrura do mandiocal, um voo fofo de ave assustada. A cabocla benzeu-se e cortou direito pelo terreno mole do feijoal ainda novo, esmagando sob a sola dos pés curtos e trigueiros as folhinhas tenras da planta ainda sem flor. Depois abriu lá em cima a cancela, que gemeu prolongadamente nos movimentos de ida e volta, com que ela o impeliu para diante e para trás, entrou no pasto da fazenda. Uma grande nudez por todo o imenso gramado. O terreno descia numa linha suave até o terreiro da habitação principal, que aparecia ao longe num ponto branco. A cabocla abaixou-se tolhida, suspendendo o ventre com as mãos.


Toda a sua energia ia fugindo, espavorida com a dor física, que se aproximava em contrações violentas. A pouco e pouco os nervos distenderam-se e o quase bem-estar da extenuação fê-la deixar-se ficar ali, imóvel, com o corpo na terra e a cabeça erguida para o céu tranquilo. Uma onda de poesia invadiu-a toda: eram os primeiros enleios da maternidade, a pureza inolvidável da noite, a transparência lúcida dos astros, os sons quase imperceptíveis e misteriosos, que lhe pareciam vir de longe, de muito alto, como um eco fugitivo da música dos anjos, que diziam haver no céu sob o manto azul e flutuante da Virgem Mãe de Deus...


Umbelina sentia uma grande ternura tomar-lhe o coração, subir-lhe aos olhos.

Não a sabia compreender e deixava-se ir naquela vaga sublimemente piedosa e triste...


Súbito, sacudiu-a uma dor violenta, que a tomou de assalto, obrigando-a a cravar as unhas no chão. Aquela brutalidade fê-la praguejar e ergueu-se depois raivosa e decidida. Tinha de atravessar todo o comprido pasto, a margem do lago e a orla do pomar, antes de cair na porta do amante.

Foi; mas as forças diminuíam e as dores repetiam-se cada vez mais próximas.


Lá embaixo aparecia já a chapa branca, batida do luar, das paredes da casa.


A roceira ia com os olhos fitos nessa luz, apressando os passos cansados. O suor caía-lhe em bagas grossas por todo o corpo, ao tempo que as pernas se lhe vergavam ao peso da criança.


No meio do pasto, uma figueira enorme estendia os braços sombrios, pondo uma mancha negra em toda aquela extensão de luz. A cabocla quis esconder-se ali, cansada da claridade, com medo de si mesma, dos pensamentos pecaminosos que tumultuavam no seu espirito e que a lua santa e branca parecia penetrar e esclarecer. Ela alcançou a sombra com passadas vacilantes; mas os pés inchados e dormentes já não sentiam o terreno e tropeçavam nas raízes das árvores, muito estendidas e salientes no chão. A cabocla caiu de joelhos, amparando-se para a frente nas mãos espalmadas. O choque foi rápido e as últimas dores do parto vieram tolhê-la. Quis reagir e ainda levantar-se, mas já não pode, e furiosa descerrou os dentes, soltando os últimos e agudíssimos gritos da expulsão.


Um minuto depois a criança chorava sufocadamente. A cabocla então arrancou com os dentes o cordão da saia e, soerguendo o corpo, atou com firmeza o umbigo do filho, e enrolou-o no xale, sem olhar quase para ele, com medo de o amar...


Com medo de o amar!... No seu coração de selvagem desabrochava timidamente a flor da maternidade. Umbelina levantou-se a custo com o filho nos braços. O corpo esmagado de dores, que parecia esgarçarem-lhe as carnes, não obedecia à sua vontade. Lá embaixo a mesma chapa de luz alvacenta acenava-lhe, chamando-a para a vingança ou para o amor. Julgava agora que se batesse àquelas janelas e chamasse o amante, ele viria comovido e trêmulo beijar o seu primeiro filho. Aventurou-se em passadas custosas a seguir o seu caminho, mas voltaram-lhe depressa as dores e, sentindo-se esvair, sentou-se na grama para descansar. Descobriu então a meio o corpo do filho; achou-o branco, achou-o bonito, e num impulso de amor beijou-o na boca. A criança moveu os lábios na sucção dos recém-nascidos e ela deu-lhe o peito. O pequenino puxava inutilmente, a cabocla não tinha alento, a cabeça pendia-lhe numa vertigem suave, veio-lhe depois outra dor, os braços abriram-se-lhe e ela caiu de costas.


A lua sumia-se, e os primeiros alvores da aurora tingiram dum róseo dourado todo o horizonte. Em cima o azul carregado da noite mudava para um violeta transparente, esbranquiçado e diáfano. Foi no meio daquela doce transformação da luz que Umbelina mal distinguiu um vulto negro, que se aproximava lentamente, arrastando no chão as mamas pelancosas, com o rabo fino, arqueado sobre as ancas enormes, o pelo hirto, irrompendo ralo da pele escura e rugosa, e o olhar guloso, estupidamente fixo: era uma porca.


Umbelina sentiu-a grunhir. Viu confusamente os movimentos repetidos do seu focinho trombudo, gelatinoso, que se arregaçava, mostrando a dentuça amarelada, forte. Um sopro frio correu por todo o corpo da cabocla, e ela estremeceu ouvindo um gemido doloroso, dolorosíssimo, que se cravou no seu coração aflito. Era o filho! Quis erguer-se, apanhá-lo nos braços, defendê-lo, salvá-lo... mas continuava a esvair-se, os olhos mal se abriam, os membros lassos não tinham vigor, e o espírito mesmo perdia a noção de tudo.


Entretanto, antes de morrer, ainda viu, vaga, indistintamente, o vulto negro e roliço da porca, que se afastava com um montão de carne perdurado nos dentes, destacando-se isolada e medonha naquela imensa vastidão cor de rosa.



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ALMEIDA, Júlia Lopes de. Ânsia eterna. Florianópolis: Editora Mulheres, 2013

(1ª publicação - ALMEIDA, Júlia Lopes de. Ancia eterna. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1903)

Referência do HQ:

BERTA, Verônica. Ânsia Eterna. São Paulo: SESI-SP editora, 2018.



Gabriela Simonetti Trevisan é mestranda em História Cultural na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde também se formou em História. A autora pesquisa a escritora Júlia Lopes de Almeida há mais de cinco anos e atualmente desenvolve a dissertação intitulada "Contracondutas femininas: norma e transgressão na escrita de Júlia Lopes de Almeida".

Contato: trevisan.gabriela@gmail.com

 

Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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