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  • Guilherme Marcondes

A QUEDA DOS MUROS E FRONTEIRAS: ENTREVISTA COM CLEMENTE PADÍN*


Clemente Padín sendo entrevistado por Tálisson Melo de Souza e Guilherme Marcondes.



Nota Introdutória dos Entrevistadores:

Nascido em 1939 em Lascano, departamento de Rocha, no Uruguai, Clemente Padín tem uma notável carreira artística por sua contribuição no desenvolvimento de linguagens estéticas importantes para a história da arte não apenas em seu país, mas em toda América Latina. Sua trajetória inclui, entre outras coisas, a direção das revistas Los Huevos del Plata (1965-1969), OVUM 10 e OVUM (1969-1975); a organização da primeira exposição de Arte Correio na América Latina, em Montevidéu (1974); a participação na 16ª Bienal de São Paulo (1981), na Bienal de La Habana (em 1984 e 2000) e o Premio Pedro Figari pelo conjunto de sua obra (2005). Nos anos 1960, Padín teve um papel central na constituição do paradigma estético denominado arte contemporânea, no qual trabalhos artísticos passaram a dispensar um caráter objetual. Seu trabalho inclui diversas linguagens estéticas relacionadas à arte contemporânea, como Performance, Mail Art, Poesia Experimental, Video Art, Designer Gráfico, Curadoria e Net Art.

Ao abordar trabalhos sobre a chamada arte moderna, seja de historiadores/as/xs, artistas, críticos/as/xs de arte ou curadores/as/xs de exposição, é possível notar a persistência da ideia de que artistas modernos buscavam uma "autonomia da arte", isto é, pensavam a arte como uma área do conhecimento independente e livre de limitações sociais. A arte era pensada em si e por si mesma. No entanto, com o advento da arte contemporânea, alguns estudos sustentam que não se busca mais uma autonomia da arte, mas a quebra das fronteiras entre arte e vida - como se até então as produções estéticas estivessem em um panteão separado da vida cotidiana. É a partir dessas noções que iremos abordar o trabalho de Clemente Padín. Trabalho este que não se dá apenas sem a necessidade de um caráter objetual, mas que elimina as fronteiras entre arte e vida no momento em que, como enfatiza o artista na entrevista abaixo, produz trabalhos que são inseridos no cotidiano, dialogando com questões levantadas pela sociedade.

Ao tratar da relação entre arte e política, é imprescindível rememorar trabalhos como o de Clemente Padín. Com uma carreira de mais de seis décadas, Padín assistiu a seu país ser tomado por períodos ditatoriais e, depois de redemocratizado, pelo neoliberalismo. No entanto, rejeitando o papel de espectador-passivo, ele se tornou um dos principais produtores de trabalhos artísticos questionadores das repressões ditatoriais e também capitalistas.

Em virtude de uma residência artística e de pesquisa promovida pelo Espacio de Arte Contemporáneo (EAC) em Montevidéu, entre julho e agosto de 2018, para a realização do projeto (Joven) Arte (Latinoamericano) en Uruguay: de 1980 a los años 2010, tivemos a oportunidade de entrevistar Clemente Padín em sua casa, a mesma de onde, durante anos, não pode sair por conta de sua prisão no período ditatorial. A entrevista a seguir parte do encontro de dois pesquisadores brasileiros e um artista uruguaio com Padín, uma referência viva para diversas linguagens estéticas e, especialmente, para tratar das relações entre arte e vida e arte e política.

Mais do que relatar as contribuições de Clemente Padín para a arte produzida na América Latina, esta entrevista busca sintetizar suas fundamentais reflexões sobre a arte e a sociedade de seu tempo, de seus muitos tempos. É esta reflexão que agora os/as/xs leitores/as/xs têm a oportunidade de conferir.


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TM – Agradecemos que nos tenha recebido hoje, pois queremos falar de várias coisas contigo. Então, são coisas sobre o seu trabalho artístico multifacetado, sua relação com o Brasil e a relação entre arte e vida, arte e política. Podemos começar por aí?


CP – O que eu vinha fazendo como performer era uma ação simples que tentava envolver os espectadores na criação da obra, à maneira de Edgardo Antonio Vigo, no marco da exposição Prospectiva 74, MAC USP (Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo). Com curadoria de Walter Zanini, o artista exilado Francisco Inarra fez minha performance El Artista Esta al Servicio de la Comunidad. Aqui, na foto. O tema do trabalho foi, precisamente, promover e ajudar a comunidade a compreender e superar os problemas comunitários que sofria. Neste caso, um carrinho foi montado para transportar os espectadores e o performer se detinha frente aos trabalhos comprometidos com a temática político-social e explicava o seu significado.

Francisco Inarra durante a performance El Artista Esta al Servicio de la Comunidad, 1975, de Clemente Padín.



Aqui, por exemplo, Francisco Inarra está frente à obra do artista argentino, Juan Carlos Romero, Violencia, com a qual coincido tematicamente. Sem dúvida, ambas as obras são conceituais, com forte teor autorreferencial. Francisco Inarra estava muito comprometido politicamente em seu próprio país e teve que se exilar urgentemente por seu envolvimento. Agora, meu primeiro contato com a cultura brasileira foi através do Poema/Processo do poeta concretista Wlademir Dias-Pino, do Rio de Janeiro. Aconteceu que dois representantes muito importantes desse movimento estavam participando da amostra de poesia visual organizada por [Edgardo] Vigo em La Plata, em 1968: o casal Álvaro de Sá e Neide Dias de Sá. Quando eles voltavam para o Rio de Janeiro, passaram por minha casa em Montevidéu e lá nos conhecemos. Eles me informaram sobre o Poema/Processo e nós concordamos em publicar juntos: Poema/Processo, Ponto- OVUM 10. Eu gostaria de mostrar essa edição, mas ela está protegida no Arquivo da Universidad [de la República] e com 80% do meu arquivo pessoal.


TM – Lendo seus textos, vendo registros do seu trabalho e outros textos sobre suas obras e carreira, parece se configurar uma narrativa que tem um contexto de muita instabilidade para a criação. Isso, ao mesmo tempo, parece ser a condição que impulsionou muitos desses caminhos de intervenção e elaboração, levando a esse lugar fronteiriço entre poética e política, imagem e palavra, objeto e ação, provocação de efemeridade e resistência ao apagamento da memória, como a sua concepção de arte como instrumento de comunicação.


CP – Sim. Isso era o mais importante, nós tínhamos vários slogans na época, um deles já soava desde os anos 1960: “arte onde as pessoas estão”. E onde estão as pessoas? Estão na rua e lá íamos nós com nossa arte. Outro slogan, que também é muito gráfico: “primeiro a mobilização, depois a arte”. Não podíamos separar as diferentes instâncias que a arte assume. Uma obra não é simplesmente uma obra de arte, é muito mais que isso; é também um ato político, um ato social, um ato religioso etc., mas há elementos que predominam e dão o tom do que é finalmente perseguido com esse tipo de ação. O que não pode ser feito é separar as diferentes instâncias, umas das outras, é impossível. Você vai a um ato político e, a primeira coisa que você vê, são decorações, pôsteres, desenhos, pinturas enormes, isso é arte plástica. A música é ouvida, isso também é arte. Alguém lê um texto que também pode ser poético. Mas o que acontece? Um político sobe e começa seu discurso. O que é, então? Sem dúvida, é um discurso de atos políticos que aproveita todas as possibilidades expressivas oferecidas pela arte. Em geral, nos anos 1960-1970, todos nós coincidíamos, não estávamos interessados em arte. Hoje vendo essas mobilizações, como foram feitas em seu tempo, você vê e aprecia que existem elementos de substituição, metafóricos, que podem induzir você a pensar que o que você está vendo é uma obra de arte. Mesmo que tenha fins políticos, sociais ou religiosos, o que você quiser.


JS – Vocês se articularam como grupo ou era coincidência que tinham vários artistas dessa geração?


CP – Eram coincidências, porque todos, em geral, tínhamos uma origem humilde e estávamos vivendo à sorte de nosso povo, entregues à luta. O que teve suas dificuldades frente ao poder, frente a ditadura. Há matizes, alguns mais, outros menos, a lista de artistas presos foi menor que os dedos da mão. Não houve uma concentração firme, apenas uma luta passiva, um tipo de trabalho não muito consciente ou permanente dos artistas. Muitos optaram por ir embora.


JS – Alguns ficaram.


CP – Sim, mas é que não se podia fazer muito. Se podia, mas estavas exposto a ir para a prisão, onde te torturavam. Eu, por exemplo, perdi quase todos os meus dentes e, bem, foi um risco a correr. Percebe? Poderia ter sido morto ou algum de meus familiares. Paciência... Olhe, esse período me irrita porque ainda não fizemos uma autocrítica de tudo isso. Quase não se fala e se escreve sobre isso.

Mas, tudo bem. Houve um caso que foi muito grave, que foi em 1980, ou 79, não sei, nos anos 70, que a Bienal de Paris produziu uma seção da juventude latino-americana . E o que aconteceu? Os franceses que haviam triunfantemente terminado a guerra argelina lançaram um vínculo de apoio às ditaduras latino-americanas com essa tentativa de legitimá-las através do cultural, do artístico. Então, eles fazem uma seção especial para a América Latina e a quem eles encomendam a curadoria? Para o Uruguai. E o que o Uruguai faz? O que fazem os militares uruguaios? Designam quem quer que seja o diretor do Museo Nacional de Artes Visuales (MNAV), o museu mais importante do nosso país (que permanece assim). E esse homem...


TM – [Ángel] Kalenberg?


CP – Este senhor vai passear pela América Latina realizando a curadoria da Seção de Jovens. A rejeição foi generalizada e fui convidado pelos grupos mexicanos que criaram uma comissão para organizar uma ‘contrabienal’, mas, perto da data de abertura em Nova York, fui preso, em agosto de 1977. Eu estava pronto para sair...

Acabo de me inteirar que uma das pessoas em que mais confiava era um agente da CIA! Parte do organismo que a CIA criou para a América Latina, para conter os avanços das esquerdas no campo cultural e artístico, o Congreso por la Libertad de la Cultura. No mesmo nível dos Cuerpos de Paz o de la Juventud Uruguaya de Pié. As manifestações contra a Bienal de Paris podem ser lidas pois foram compiladas por Felipe Ehrenberg.


Capa do livro editado por Felipe Ehrenberg sobre as vicissitudes da Seção Jovem da Bienal de Paris.



TM – Pensei em te perguntar, lendo tudo isso, como se desenha uma história em blocos, de circunstâncias muito diferentes: um estágio anterior ao golpe, o curso da ditadura e o processo de democratização. Como se fossem blocos, mas imagino que você, tendo vivido tudo isso, veja as coisas como um processo mais complexo.


CP – Vamos pensar então, daquele primeiro encontro que tive com Álvaro de Sá e Neide Sá, foi o ponto de partida, naquele momento eu mal conhecia [Edgardo] Vigo, fui informado sobre as atuais tendências poéticas, mas eu não conhecia muitos poetas experimentais. Por exemplo, ele não sabia nada sobre Ferreira Gullar e sua poesia metafísica neoconcreta. Naquela época, tive um intenso intercâmbio com muitas revistas estrangeiras graças a Los Huevos Del Plata e a OVUM 10, duas revistas que editei em Montevidéu. Isso me deu a oportunidade de conhecer muitos poetas e artistas e estar bem informado sobre o que estava acontecendo.


GM – E como era esse processo de produção? Como se davam todas estas articulações? Gosto de pensar como um coletivo de pessoas consegue efetivar um projeto assim, pergunto: já era um projeto estruturado ou se deu como um fluxo?


CP – Não foi nada premeditado, porque se aquela exposição não tivesse ocorrido em Buenos Aires, eles, o casal Sá, não teriam vindo e eu não saberia o que estava acontecendo no Rio de Janeiro e no nordeste brasileiro.


JS – Como fazia os originais?


CP – Os originais tinham 40 cm x 60 cm, vendi todos nos anos 1990. Eu os vendi para um arquivo em Miami, The Sackner Archive of Concrete and Visual Poetry, que desapareceu devido à morte de seus donos . Eram poemas visuais ‘assemânticos’, isto é, sem significado verbal. Foi nosso protesto que derivou do maio de 1968 francês: não queríamos manipular as pessoas como o sistema fazia, usando a linguagem verbal para controlar seu comportamento. Queríamos continuar fazendo poesia, mas sem nos juntarmos às manobras do poder. Foi um movimento muito curto de cerca de dois a três anos que foi orientado para outras áreas experimentais em várias formas de expressão, como ação, poesia, intervenções urbanas, etc. Sem dúvida, foi o período mais revulsivo e efervescente da época.


GM – Sei que estamos temporalmente mais para cá, mas meu trabalho se concentra também em entender como artistas se tornam artistas. Queria saber como foi esse processo para você.


CP – O processo foi natural, você não se dá conta, não tinha pensado: hoje sou um pouco mais artista que ontem. Aqui alguns têm um processo mais rápido, outros tem um processo mais lento, ou com altos e baixos ou muito retilíneo. É uma questão pessoal. Em meu caso, foi oscilante porque nunca coincidia com um suporte em especial. Fui oscilando entre a poesia experimental, a performance e os estudos críticos, o designer, a instalação, a vídeo arte, fiz de tudo. Hoje em dia o que mais crio são trabalhos de arte correio, sobretudo postais e, especialmente, ofereço workshops e seminários em residências ou congressos. Agora mesmo fui convidado para a Santa Terezinha, perto de Recife, lar de meu amigo de anos Paulo Bruscky.


GM – Como você e Paulo Bruscky se conheceram?


CP – O conheci epistolarmente um pouco após a instauração da ditadura. Ele foi um dos que fizeram campanha pela minha liberdade, nos anos 1970, reunindo assinaturas e realizando uma exposição de Arte Correio exigindo nossa liberdade, a de Jorge Caraballo e a minha. Paulo Bruscky que figura! Que artista, impressionante. É fantástico, já me levou umas 5 ou 6 vezes ao Brasil. E, Jorge Caraballo foi um colega, que caiu preso acusado de ser meu cúmplice. Eles não o condenaram pelo crime que ele poderia ter feito, mas o condenaram como meu cúmplice. Bem, é assim que você encontra pessoas...

Depois, nos anos 1980, organizei muitos eventos aqui nas ruas de Montevidéu. Foi o estágio anterior ao neoliberalismo e as pessoas estavam muito comprometidas com tudo o que estava acontecendo. Você pegava o telefone e convidava as pessoas para uma reunião ou uma performance, por exemplo, em 18 de julho , e elas apareciam as centenas para participar. Já na década de 1990, quando o neoliberalismo entrou, você pegava o telefone e elas davam desculpas para não participar. Desculpas admissíveis, mas houve um movimento contrário, para dentro, em direção à interioridade. Ao em vez de sair à, foi o contrário, elas entraram. A última coisa que fiz na rua foi uma reunião contra a guerra do [George H. W.] Bush pai contra o Iraque em 1991. Hoje, com o agravamento dos problemas sociais, há novos movimentos. Sobretudo liderados por mulheres pelas lutas de gênero. Nos anos 1980, saímos para a rua, nos encontramos e nos mobilizamos pelos problemas que afligiam o país.

Eu tive sorte na década de 1980 de trabalhar em uma união, a Asociación de Empleados Bancarios del Uruguay (AEBU), onde trabalhava no setor da juventude, com os filhos de funcionários do interior do país que vinham estudar em Montevidéu. Durante a semana, víamos o que estava acontecendo em nosso país, seus problemas sociais e nos reuníamos para montar uma atividade de natureza lúdico-cultural, para difundir a natureza do problema na comunidade. Por exemplo, em 1988 houve um momento em que quase 200 jovens por mês estavam deixando o país, uma sangria impressionante, não havia trabalho, não havia ajuda ou incentivo algum. Os jovens não podiam casar, não tinham trabalho, não tinham alojamento decente, não tinham nada e saíam! Por isso, organizamos, a AEBU e outros sindicatos, um evento em que um casal de jovens se despede no centro de Montevidéu enquanto carregavam cartas com seus nomes: JUAN e MARÍA. Como sempre, o primeiro passo era garantir a comunicação direta com as pessoas e depois a arte, isto é, os instrumentos de significar.


GM – Como foi a sua juventude? Seus inícios, começar como artista no contexto uruguaio?


CP – Muito difícil, te faz viver furioso por toda a vida e creio que ainda estou um pouco furioso. Tive um rompimento familiar aos 4 anos e fui parar no Consejo del Niño, que é agora o INAME . Estive lá até que minha mãe se casou novamente e retirou quando eu tinha 6 anos, mas aos 14 anos tivemos outro rompimento. Eu decidi estudar Medicina, como a maioria dos meus amigos na juventude. Mas era impossível e tive que procurar caminhos alternativos. No meu caso, com a ajuda de um parente, foi seguir uma carreira de apenas três anos sem a necessidade de cursos secundários adicionais (cursos em que tive que ser aprovado ao entrar na Universidade mais tarde). Estou falando de 1956. Agora tenho 78 anos. O único que me restava: trabalhar, estudar e trabalhar.

Fui estudar Educação Física, que era uma carreira nova, que não pediam preparatório e era possível receber o diploma em apenas três anos de estudo e, ainda, te davam um cargo público, imagine! Com emprego liberal, com apenas 4 horas diárias de trabalho. Isso me deu a oportunidade de fazer preparatórios à noite e logo estudar Letras na Facultad de Humanidades.


JS – Antes de ser preso?


CP – Sim, e antes de Los Huevos del Plata, en 1965. Era vox populi que vivíamos uma espécie de luta com a geração anterior, a de 1945, e a revista cumpriu esse papel como instrumento de afirmação geracional. A geração de 45, era muito boa, mas foi muito exclusivista. Eles possuíam todos os espaços culturais e não podíamos editar ou expor e encontrar um espaço para apresentar nosso trabalho. Então, nos juntamos, alguns da minha idade, e fundamos uma revista, Los Huevos del Plata, em 1965, com a intenção de alcançar nossa "voz", que foi alcançada após três anos de intenso trabalho. Fazíamos uma espécie de poesia juvenil, que não era nada experimental. Com os intercâmbios entre revistas, conhecemos outras experiências e alguns foram avançando por outras fronteiras. Isso causou nossa separação, entre os experimentais e aqueles que se apegaram à tradição. Assim, nasceu a OVUM 10, por volta de 1967, inteiramente dedicado à poesia experimental, especialmente à poesia visual.


GM – E como fazia para sustentar financeiramente sua vida pessoal e profissional nesta época?


CP – Eu trabalhava muitíssimo. Tinha três ou quatro empregos: educação física me ocupava 4 horas diárias e o restante eu repartia entre clubes desportivos. Depois me casei em 1974, ou seja, agora tenho 54 anos de casado. Para começar, parei de estudar, fiz todos as matérias iniciadas antes de sair, fui aprovado em tudo e esta foi minha base. Retomei meus estudos 20 anos depois em plena democracia.


TM – Você acredita que esse contexto dos anos de 1960 ao final dos anos de 1980, com limitação da circulação de artistas, obras e ideias em espaços institucionais teve importância na construção de uma identificação entre artistas latino americanos?


CP – Sim, isso aconteceu. A nossa primeira rede devemos ao Arte Correio, foi uma parte do networking universal ainda que necessariamente regionalizada. Na América Latina, tínhamos uma a Rede de Arte Correio. No início eram Vigo, Guillermo Deisler do Chile, Dámaso Ogaz da Venezuela e eu aqui em Montevidéu. Mais tarde, em 1984, em Rosário, Argentina, fundamos a Asociación Latinoamericana y del Caribe de Arte Correo, com quase todos os artistas-correio do circuito. Para maior legitimidade, a ata fundamental foi assinada por um notário público. Isso funcionou e com todo o grupo estabelecemos nossos próprios limites, um deles é que tivemos que estar fortemente comprometidos e envolvidos com a realidade político-social. Logo se foram somando muitos artistas. Eu tenho um livreto onde falo sobre o fenômeno da Rede, como surgiu a primeira Rede, como foi ampliada, como chegamos a um consenso sem nos consultar. Foi muito importante porque nos deu uma voz no concerto mundial. Todo o networking sabia que se houvesse trabalhos comprometidos pertenciam à América Latina.


TM – Você acredita que esse contexto de ditaduras estimulou uma espécie de solidariedade específica?


CP – Sim, claro. Isso depois veio a ter uma implicação muito mais profunda, quando surge o Conceptualismo, especialmente o de Joseph Kosuth, e outras criações anglo-saxônicas, algo completamente distanciado dos problemas da Terra, de volta aos anéis de Saturno. Mas, na América Latina, demos a volta e aplicamos em nossa própria Terra, ao que estava acontecendo. E isso ocorreu no marco de realização de um trabalho colossal que, com o tempo, seria constituído na pedra miliar de todo um movimento que se chamava Tucumán Arde. Foi o ponto de partida para a América Latina chegar a uma voz original naquela época.


TM – E você vê isso como uma característica que é única entre os artistas latino-americanos em relação àqueles em outras partes do mundo, assim como aquela relação com a política e a “realidade”?


CP – Sim, naquela época existia outra zona geográfica bastante similar à nossa, sobretudo em suas conformações político-sociais e de poder (ditatura). Me refiro a Europa Oriental, quase as mesmas ditaduras, seja sob o comunismo ou sob o capitalismo. Ao que me concerne, tive a oportunidade de desfrutar de uma residência do D.A.A.D. (a Academia Alemã de Artes e Letras) em Berlim Ocidental. E, também, tive a sorte de cruzar duas vezes para a Berlim soviética e, lá, tive a oportunidade de conhecer muitos artistas alemães, quase todos praticando arte correio, principalmente porque não tinham outra maneira de divulgar seus trabalhos.


TM – Você acredita que é originada uma espécie de rótulo: “artista latino-americano”, e que se espera algo dele?


CP – Sim, creio, porque a prática comprova.


TM – E, lhe parece que ainda hoje permanece esta diferença como artista latino-americano?


CP – Bem, não sei, mudou muito o panorama a partir, sobretudo, do surgimento do neoliberalismo e do pós-modernismo. Foram perdidas as referências de quase tudo que tínhamos vivido e experimentado. Porém, com o impulso das crises, vem surgindo um interesse cada vez maior pelos sucessos que “aconteceram”, isto é, pela realidade que vivemos.


TM – Apontarias algum evento como marco de desenvolvimento da visibilidade ao que você e os artistas latino-americanos faziam?


CP – Ocorreram vários eventos muito importantes, um deles foi a recusa de boa parte dos artistas latino-americanos à Seção Jovem da X Bienal de Paris. Também o encontro organizado por Juan Acha, em 1980, em Medellín, Colômbia, para consolidar o tema das artes não objetuais…


TM – Com Aracy Amaral também.


CP – Sim, com Aracy Amaral também. É, praticamente, quando começa oficialmente outro evento importante que foi a Bienal organizada pela Zanini em 1981. Walter Zanini era uma pessoa excepcional. O conhecia epistolarmente, desde 1973, quando ele me convidou para a Prospectiva'74 no MAC USP, aquele grande evento. Mais tarde, ele também me convidou para a Bienal de São Paulo, em 1981. Em ambos os casos eu não pude comparecer, então fui substituído por um ator basco exilado, Francisco Inarra. Foi um feito incrível, sem dúvida, um acontecimento, porque foi uma conjunção de artistas, trabalhos e tendências interessantes. Praticamente o Conceitualismo invadiu o Brasil. A mesma coisa estava acontecendo em Buenos Aires. Não há dúvida de que o impulso dado pelo CAYC (Centro de Arte y Comunicación), dirigido por Jorge Glusberg, à sua disseminação foi decisivo para a expansão total do Conceitualismo na América Latina.


TM – O próprio Francisco [Inarra] quem realizou a performance na Bienal? E, era El Artista está al Servicio de la Comunidad?


CP – Sim, é ao menos o que indica o catálogo da Bienal. Sei foi instalado um cartaz na entrada da Bienal com a frase "O Artista é um Serviço da Comunidade", do qual não tenho certeza se é da realização da performance na Bienal. Um cronista uruguaio do jornal uruguaio El Día, Roberto de Espada, que morreu há vários anos, foi à Bienal e constatou que não foi realizada. De minha parte, durante esses anos, estive preso em minha casa.


TM – Como a sua participação na Bienal foi a distância, como poderia se relacionar a sua obra, nas condições em que foi realizada, com os envios oficiais da representação uruguaia?


CP – As duas grandes seções da Bienal estavam separadas, contavam com diferentes curadores. De um lado, ninguém me conhecia no circuito local. Por outro lado, levava o fardo da luta geracional contra a geração de 45. O preço foi o silêncio. Quando saía um novo número de Los Huevos, Marcha, o semanário máximo dos artistas de 45 dizia: “Saiu outro número de Los Huevos del Plata… com 12 erratas”. Esse era o comentário crítico. Recentemente é que me descobrem que aqui no Uruguai, e me corrijam se estou equivocado, quando recebi o Premio Pedro Figari em 2005.


GM – Gostaria de lhe perguntar sobre isso. Como que a partir do prêmio começam a lhe conferir reconhecimento? Como foi para você receber esta premiação?


CP – Foi realmente fantástico, não somente pelo prêmio em si, mas porque abriu um campo de trabalho e de gente amiga. Ademais, o catálogo foi um dos pontos altos de toda a minha carreira artística. Foi escrito e editado por uma grande crítica uruguaia, Patricia Bentancur.


A partir do triunfo da Frente Amplio (coalizão de esquerda), me consolidei no front interno, a ponto de que hoje, em 2018, há um ciclo anual de performances no Subte Municipal, uma das melhores salas do país, que leva meu nome.

Bem, esta é uma história muito interessante, não? Sempre fui muito ativo, sempre estava fazendo dez coisas ao mesmo tempo. Mas com o caminhar dos anos começam os ataques associados à velhice, por exemplo, me agacho e fico tonto, a pressão, o excesso de açúcar e sal, o coração, eu tenho uma operação no coração. Essas e outras doenças me forçaram a deixar a performance e leituras poéticas agitadas. É por isso que fui forçado a reconverter minhas atividades. Assim, comecei a trabalhar em atividades mais simples e menos exigentes fisicamente, como palestras, seminários, exposições, pesquisas, edições, entrevistas, etc. Eu estava fechando os projetos associados à minha juventude e idade adulta. Existem 4 livros prontos para serem publicados, várias exposições e alguns projetos associados ao urbano e outros de grande importância, como a consolidação do meu arquivo. Agora aparecerá este livro: Vanguardia Poética Latinoamericana y Otros Ensayos. E em Buenos Aires vão publicar uma antologia de poesia autorreferente, se chamará Soplen Rabiosamente Autorreflexivos, um verso de Góngora parodiado. Além disso, tive que parar de trabalhar no Instituto Universitario Nacional de Arte (IUNA) da Universidad de Buenos Aires, da UBA, onde trabalhei por sete anos no curso de pós-graduação em Línguas Artísticas Combinadas e em outras universidades estaduais argentinas. Uma das consequências disso foi que a Universidad Nacional de Córdoba, na Argentina, me concedeu o troféu 400 Anos, lembrando que esta Universidade foi a primeira a aparecer na América Latina. Estou muito orgulhoso com este prêmio, devo dizer.


JS – Mas quando volta a democracia você já tinha o reconhecimento de sua geração por seu o trabalho.


CP – Sem querer meu nome começa a aparecer por conta da AEBU. Eu estava trabalhando na organização de uma exposição que reunisse os três aspectos de artistas uruguaios: exílio, insílio e local. Fizemos uma grande exposição, acho que a maior de toda a história uruguaia em 8 salas diferentes, mais de 500 artistas, vivos, mortos.


TM – Voltando um pouco à questão da Bienal [de São Paulo], como foi a recepção de sua presença ainda que a distância?


CP – Não tenho ideia, estava preso em minha casa produzindo obras. O grosso de minha obra eu fiz nesses anos de prisão. A partir de 1984, com o fim da ditatura, durante minha residência em Berlim Ocidental, abandonei meu trabalho gráfico e me dediquei a fazer arte correio, à performance e outros projetos irregulares.


GM – Como era o seu processo de trabalho estando preso em casa? Como foi a influência disso no seu trabalho?


CP – Talvez, por ser o único trabalho que eu tinha, me obrigou a ser muito exigente quanto a minha obra, cuidadoso, com ênfase perfeccionista. Fiz quase todo esse meu trabalho gráfico com linhas, lento, extenso e pensativo. Mas, uma vez caída a ditadura, parei de fazê-las pelo resto da vida. Logo me apliquei a colagem e criei obras como La Enciclopedia Visual de La Historia Latinoamericana e outras. Na qual, para todos os eventos importantes que estavam acontecendo na América Latina, acrescentei o correlato de uma obra de arte aplicada ao evento histórico (ou que tinha algum relacionamento). Veja a capa [Padín mostra a edição em que vinha trabalhando, ainda não publicada].


TM – Eu li no texto de Patricia Bentancur, que você tentava manter um arquivo de Arte Correio, mas que foi interrompido com o início da ditadura aqui. Em 2009 você logrou fazer um arquivo público...


CP – Claro, foi junto com a Universidad de la República do Uruguai e da Fundación Reina Sofía da Espanha, através do que ficou conhecido como Red Conceptualismos del Sur, que reúne acadêmicos e pesquisadores da Espanha e da América Latina. Graças à sua ajuda logrei criar a Asociación Civil Archivo Padín e consegui que o Archivo General de la Universidad de la República o preservasse, assinando um contrato de comodato, o que me garantiu a tranquilidade que meu legado não seja comercializado para o exterior, como é de costume, e que as portas do Arquivo estivessem sempre abertas a pesquisadores, estudantes e interessados.


GM – Foi sua a concepção de o arquivo ser aberto a todos?


CP – Foi quando nasceu a Red Conceptualismos del Sur que teve o propósito de consolidar e manter os arquivos de todos os artistas em seus países de origem. O que acontecia antes? Bem, um morreu e os parentes venderam o arquivo e levaram todos os pedaços de papel que encontraram, nada foi deixado. A Red tem um site onde você pode relatar suas ideias e conquistas, bem como localizar os arquivos que já salvaguardaram. Ela também dá conta de todas as mobilizações que foram organizadas em relação aos eventos que estão ocorrendo na América Latina e na Espanha. Assim, a união do arquivo da Universidade e o meu foi propiciada. Ademais, fiz acordos com nossas autoridades para criar uma associação civil cujo conselho de diretores é inteiramente composto por artistas, com financiamento da Red.


TM – Você percebe alguma conexão singular entre a cultura local uruguaia ou latino-americana com relação aos arquivos?


CP – Sim. A criação de arquivos e seu estabelecimento nos países onde o artista nasceu é fundamental, eles estão sempre trabalhando na criação e consolidação de arquivos, eles [a Red] já criaram o do artista argentino Juan Carlos Romero e ajudaram na criação de arquivos como o do chileno Guillermo Deisler, além do meu. Eles até financiaram toda a gestão que fiz antes do governo para institucionalizar o arquivo. Se você quiser mais informações, convido você a visitar o site deles com muitas informações sobre suas atividades.


GM – Você com a Arte Correio fazia esta relação que agora fazemos com um click no computador.

CP – Nós analisamos isso e pensamos que o nome "Arte Correio" está errado, deveria se chamar "Arte Comunicacional" ou "Arte de Contato" porque, como os canais de comunicação mudam, o nome do que é conhecido como Arte Correio, deveria mudar o nome, mas a arte continua a mesma.


GM – Ainda que venha por e-mail.


CP – No importa que venha como venha. A mensagem de Facebook também é comunicação. Por isso te digo que está mal colocado o nome “Arte Correio”, é arte aplicada à comunicação. Começou, efetivamente, sendo transportada pelos serviços postais, mas, em um momento se distribuiu por fax e não mudou o nome para “Fax Art”. Logo, quando apareceu o e-mail, não passou a se chamar “Email-Art”, e assim vai.


GM – Conversamos um pouco sobre o conceito de latino-americanidade, um conceito que une contextos muito diferentes, não é meu tema de pesquisa, mas queria saber como é o contexto uruguaio para você e como ele é diferente de outros contextos latino-americanos?


CP – O que temos que fazer abstrair é a questão dos limites e fingir que não temos fronteiras. Depois de derrubar a parede, você fica com uma área igual à anterior. Poderão mudar as relações materiais da vida, poderá haver um ambiente mais árido, mais quente, menos úmido, mais úmido, mas existe ali uma essência que nos une, a linguagem. Tanto portugueses como espanhóis provêm da mesma área linguística, da Península Ibérica, não podemos dizer que "somos geminados," mas sim unidos pela língua. Há uma característica generalizada em termos de comportamento latino-americano e é comunicação, somos muito comunicativos, charlatães, falamos pelos cotovelos. Conversamos, conversamos e conversamos e nos ajudamos muito, é uma característica latino-americana.


TM – No contexto atual as linguagens que eram emergentes entre os anos de 1960 e 2000 já estão mais estabelecidas, estão institucionalizadas. Quais limites ou potencialidades acreditas que existem hoje para a promoção da arte como um instrumento de comunicação e reflexão?


CP – Não preciso fazer porque naturalmente é, onde há uma troca de qualquer natureza entre dois interlocutores, a arte pode existir. É uma comunicação em primeiro lugar, mas pode ter nuances, elementos próprios da metaforização ou substituição de coisas por objetos, pelos quais ela pode ser considerada uma obra de arte, para a arte duas pessoas bastam. Agora, imaginem quando é em um nível social e todas as pessoas que estão envolvidas.


TM – Ter essas pessoas e linguagens dentro das instituições muda algo nessa comunicação?


CP – Bem, é um assunto que sempre me fascinou. Alguém diz: “vamos lutar contra o poder, o sistema”, enfim, tudo isso. E por que? Se deveríamos trabalhar juntos. Lendo Karl Marx, não me lembro onde o li, ele disse: "um artista em uma sociedade socialista vai ser um homem que, entre outras coisas, pinta".


TM – Eu li essa frase em um texto seu.


CP – Devo ter citado assim, mas a tomei de Karl Marx, através de Rúben Yañez, o diretor de teatro.


GM – Como enxergas os rumos e caminhos da política institucional uruguaia hoje?


CP – É muito confuso o cenário político e cultural. Digamos, quando eu ganhei o Prêmio Pedro Figari, em 2005, foi quando a Frente Ampla ganhou a primeira eleição, o que foi a força da mudança e trouxe um fantástico projeto de governo, e eles aplicaram isso, não totalmente, mas a maioria de nós diz que estamos vivendo até hoje como se tivesse caído do céu e, ao contrário, foi feito passo a passo. Agora digamos que estamos em completa dissolução deste projeto por várias razões, pelo envelhecimento, pela passagem do tempo, pela falta de motivação, tudo isso. Estamos às vésperas de uma substituição de poder, é muito provável que a direita ganhe a nossa próxima eleição, mais do que provável, há muitos sinais.


TM – Eu estava pensando, esse contexto de uma direita está mais forte no Brasil, já afetou as instituições culturais, nos últimos anos tivemos censura de exposições, ataques a obras promovidos por civis, etc. Você vê alguma analogia com eventos do passado? Esse julgamento moral da arte?


CP – Não saberia o que dizer para você, reconheço que nos anos de 1960 e 1970 houve um intenso movimento artístico poético brasileiro. O movimento do Poema/Processo que se originou no Rio de Janeiro e no nordeste brasileiro. Depois de todos os movimentos, especialmente os musicais que estavam arrastando várias pessoas, eclodiram com o triunfo do PT (Partido dos Trabalhadores) que foi o ponto máximo e de lá há algumas conquistas importantes para o Brasil. As pessoas podem comer, podem ter sua casa, atenção médica. Agora tudo isso está em marcha a ré, está mudando, certo?


TM – Não sei, acho que é a singularidade do que aconteceu em relação às artes mais representativas recentemente, performances que foram interrompidas, censuras de exposições, especialmente com artes visuais que provocaram uma reflexão, sobre gênero, sexualidade, religião, questões étnico-raciais. Você vê isso como algo diferente do que aconteceu antes?


CP – Claro, foi o que fizemos nas reuniões que tivemos na AEBU com os jovens sindicalistas. Eles estavam estudando em Montevidéu e nos encontramos e discutimos para ver o que poderíamos fazer para melhorar diferentes aspectos da vida no Uruguai. Assim, soubemos que em um bairro distante do centro, Sayago, havia uma fábrica de Portland que tinha quatro 4 chaminés e liberava quase 10 toneladas de pó por dia. Todo mundo estava doente, com problemas de garganta, nariz, olhos inchados, plantas mortas e cinza era a cor predominante. Então, nós fizemos uma mobilização que durou vários meses, todos os domingos íamos ao bairro para trabalhar, fazíamos desfiles com guarda-chuva, leitura poemas, canto popular, reunimos as pessoas, explicamos o problema, intervimos junto as autoridades com os vizinhos. Em algum momento a imprensa chegou para tomar notas e denunciar o fato. Tudo isso gerou uma pressão insustentável para a fábrica que acabou colocando filtros nas chaminés. Foi um triunfo. Ali estávamos convencidos de que o que estávamos fazendo não era apenas uma obra de arte, mas também artística. Lembro-me de que fiz uma gravação e a chamei de Acontecimiento Artístico-Social, mas não me encorajei a chamá-la de arte.

Além disso, aproveitando o tema, fiz um trabalho conceitual que chamei de AIRE. Eu pendurei a palavra “aire" em enormes letras de 2 metros de altura nas árvores do bairro de Sayago. É a substituição conceitual de um elemento físico ausente, o "ar" pela transposição linguística do conceito. Finalmente, a empresa fechou a fábrica. É uma obra que nos permite expor a conjunção das outras esferas da atividade humana, neste caso, a social e a política. Você pode assistir o vídeo no Youtube com o nome Para no Morder el Polvo que fizemos com os poetas do grupo local FABLA. Mais tarde eu tirei uma foto da fábrica que tinha quatro chaminés e aproveitando a funcionalidade da palavra "aire" (que, na verdade, tem 4 letras) e coloquei cada letra da palavra “aire” em cada coluna. E estava pronto o poema visual. Mais ou menos para que possamos ver todas as imbricações que esse simples ato de fazer arte teve, porque não era apenas arte, era muito mais que isso. Foi fazer ativismo social com o povo. Após o período do neoliberalismo, ou seja, depois de 20 anos, mais ou menos, estamos voltando aos bairros, especialmente em Buenos Aires e Santiago do Chile, onde há equipes de artistas que tomam um bairro e que o "trabalham", isto é, eles colocam em sintonia com a modernidade do século XXI. Fazem planos, reestruturam habitações, passagens urbanas, conversam com os vizinhos, veem suas necessidades, encaminham demandas ao município para que, por exemplo, tenham novas linhas de ônibus, coloquem novas paradas, para construírem escolas, instituições de bairro que favorecem a vida da comunidade, um trabalho muito bom. Aqui, em Montevidéu, existe um grupo que trabalha assim com os exilados, excelente.


TM – Preparamos una última pergunta: que espaços, atividades e projetos você destacaria para pensar sobre o estímulo a experimentação artística hoje no país?


CP – Sempre ocorrem coisas novas, talvez a própria época nos tenha levado a experimentar materiais e concepções. Parecia-nos absurdo exercitar uma arte sem conhecer em profundidade a forma expressiva que usamos e, isso, só é possível experimentando as formas de expressão. São fenômenos recorrentes que acontecem de vez em quando, a cada 20 ou 30 anos há um impulso de querer procurar coisas novas, como se as palavras estivessem envelhecidas e não nos permitissem expressar como gostaríamos. Mas, o que envelhece é a maneira de se expressar, não as palavras em si. Por isso, é tão importante a maneira como nos expressamos, as novas formas de fazer poesia, pintar quadros, fazer coisas. Se você se propõe a analisar o que é a história da arte, percebe que, de vez em quando, as mesmas tendências de ruptura retornam com outros conteúdos. Assim, se fala da arte revival. Há um ditado que diz: "cada época tem sua própria linguagem". Por exemplo, 1917, Dadaísmo, alguns anos passam, 1956 e aparece a Fluxus Art, que "vê" o Dadaísmo, mas de outra perspectiva.

Mas não é só isso. Quando surge um novo movimento artístico, ele tende a exagerar seu conteúdo. Depois de um tempo, as águas voltam ao seu curso e as expressões parecem "acalmar-se". Por exemplo, o Futurismo começa com a "palavra em liberdade" em primeiro lugar, uma verdadeira quebra dos códigos da linguagem. Mas, depois de um certo tempo, a calmaria retorna e surgem propostas poéticas apolíneas. Algo como o amadurecimento de propostas poéticas. A ponto de promoverem o surgimento de novas propostas poéticas: neste caso, a poesia concreta de 1956.

Em outras palavras, não há nada que caia do céu, tudo está evoluindo e encadeando. Depois da poesia concreta de 1956 aparece o Neoconcretismo de Ferreira Gullar e o poema/processo de Wlademir Dias-Pino. Às vezes os novos movimentos se movem e ocupam outros setores. Neste caso, o Neoconcretismo é aliado às artes plásticas e emergem artistas da gama de Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape etc.

O que vem a seguir de Dias-Pino? Nada? Pelo contrário, surge um movimento que não vem dessa cadeia de eventos, mas vem da própria digitalização da Poesia Asêmica. Alguns argumentam que nasce da antropologia, especialmente da escola em Nova York, quando fala, por exemplo, que todos nós estamos atuando o tempo todo e que todo o corpo e suas ações são uma fonte de expressão por todo o mundo, canais possíveis. Por exemplo, o nosso atacante de futebol Luis Suárez, o que ele faz quando ele converte um gol? Ele faz uma performance mesmo quando lhe chutam, performance. Sob esse ponto de vista toda expressão gráfica que um indivíduo faça é algo que está sendo enunciando para outro, portanto, pode ser uma forma de arte com o propósito deliberado de expressar alguma coisa, isto é, de comunicar algo. Denominaram Asêmica porque, em geral, se desenvolvem sem usar as possibilidades expressivas da linguagem verbal, é uma linguagem com a qual você está se expressando antropologicamente, para saber o que esses "rabiscos" significam que precisaríamos de um dicionário de signos asemics.

Algo semelhante aconteceu com a Poesia Semiótica, em 1968, no Brasil. Ou seja, duas instâncias, o texto (formado com imagens) e o que significava cada imagem usada no texto (imagens de dicionário usado no poema ou uma chave lexical). No final dos anos 1960, a Poesia Visual Semântica surgiu no ocidente. Como resultado do movimento de Maio de 68, questionando a linguagem verbal, considerando-a um instrumento para a sujeição do povo. Por isso, desistimos de escrever poesia que "diz alguma coisa". Mas como não queríamos deixar de ser poetas, decidimos pela Poesia Visual Asemântica, ou seja, um poema para não dizer nada linguisticamente, poesia visual, ao fim de tudo. O poema semiótico é quase simultâneo ao que nasce em São Paulo, pelas mãos de Decio Pignatari, Luis Angelo Pinto, Haroldo de Campos, chamado de Pop Poems, acreditando ver neles formulações de uma corrente artística da moda. Eles logo perceberam que eram parte de uma proposta do poeta carioca Wlademir Dias-Pino que continuaria no Poema/Processo.



Montevidéu, Uruguai, 08 de agosto de 2018.

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* Esta entrevista foi originalmente publicada no Chile, em maio de 2019, na Revista Estudios Críticos de Arte y Cultura Contemporánea, sob o título: Poética y política? Allí donde está la gente? Una conversación con Clemente Padín sobre más de cinco décadas de su arte/vida. Tradução de Guilherme Marcondes.

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REFERÊNCIAS:


BETANCOUR, Patricia. Clemente Padín. Montevideo: Espacio Pedro Figari del Banco Central del Urugyay, 2006.

BRUSKY, Paulo. "Exposição Internacional de Arte Correio Homenagem a Clemente Padín e Jorge Caraballo". In BERNAL, María Clara (Org.). Redes intelectuales: Arte y política en América Latina. Bogotá, Ediciones Uniandes, 2015, páginas. 291-94.

COMISSION DE CULTURA DE AEBU (Org.). Catálogo de la Muestra por las Libertades. Uruguay, 1984.

EHRENBERG, Felipe. Expediente Bienal X: La Historia Documentada de un Complot Frustrado. Ciudad de México: Beau Gest Press/ Libro Acción Libre, 1978.

HEINICH, Nathalie. "Práticas da Arte Contemporânea: Uma Abordagem Pragmática a um Novo Paradigma Artístico". Revista Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 04, n.02, p. 373-390, 2014.

PADÍN, Clemente. Enciclopedia Visual de la Historia Latinoamericana. Montevideo, Uruguay: 1983.

______. Vanguardia Poética Latinoamericana y otros ensayos. Buenos Aires, Montevideo y São Paulo: Editorial Sur/l, 2018.

RED DE CONCEPTUALISMOS DEL SUR. Disponível em: https://redcsur.net/es/.

VILLAS BÔAS, Glaucia. "Como a Arte (Contemporânea) se Apresenta? Sobre a Atualidade de A Moldura de Georg Simmel". Revista Novos Rumos Sociológicos, Pelotas, v. 5, n. 7, jan./jul., 2017.


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Guilherme Marcondes é Editor da Horizontes ao Sul. Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará. Doutor e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ. Bacharel e licenciado em ciências sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. É pesquisador associado ao Núcleo de Sociologia da Cultura da UFRJ. Foi assistente de pesquisa no CPDOC/FGV e coordenador de pesquisa e memória no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.

Tálisson Melo de Souza é Artista visual e pesquisador. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ (bolsa CNPq). Mestre em Artes, Cultura e Linguagens e Bacharel em Artes e Design pela UFJF, com ênfase em História da Arte pela Universidade de Salamanca, Espanha. Membro do Núcleo de Sociologia da Cultura da UFRJ e do Laboratório de História da Arte da UFJF.

Jorge F. Soto é Artista plástico, curador independente e designer gráfico. Expõe regularmente em individuais e coletivas no Uruguai, Argentina, Brasil, Peru, Equador, México, Cuba, Alemanha, França, Polônia, Hungria, Porto Rico e Estados Unidos. Foi ganhador de diversos prêmios, dentre os quais o Primeiro Prêmio do Salão Municipal em 1992 e 2004; Primeiro Prêmio José Belloni de 1990; Primeiro Prêmio Paul Cèzánne em 1992; Menção Especial Prêmio V Centenario ICI, 1991; Prêmio de Artistas Estrangeiros no 62º Salão Paranaense, Curitiba Brasil 2007 e Grande Prêmio El Azahar IX Bienal de Salto, em 2011.



Editora responsável: Luna Ribeiro Campos



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