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  • Mario Toer, Rafael Rezendee

SOBRE OTIMISMO EM MEIO AO CAOS POLÍTICO: UMA ENTREVISTA COM MARIO TOER



Notas do entrevistador


Durante o segundo semestre de 2019, frequentei as reuniões semanais do Grupo de Investigación Hegemonía Latinoamericana, na casa do Professor Mario Toer, na Cidade Autônoma de Buenos Aires, Argentina. Todas as terças-feiras, um grupo de pesquisadores costuma se encontrar na sala do belo sobrado do sociólogo para ler alguns artigos conjuntamente, se arrolar em longas e interessantes discussões sobre a conjuntura latino-americana e tomar mate. Toer, o mais experiente, conduz o debate intervindo sempre que acha por bem, muitas vezes fazendo referências ao seu passado acadêmico e militante.


No último encontro com o grupo antes de findar minha temporada porteña, cheguei mais cedo para conversar com o professor, que gentilmente aceitou ofertar uma pequena entrevista à Horizontes ao Sul. Em um cenário de alastramento da extrema-direita no Brasil, repressão política no Chile e golpe na Bolívia, Toer mostrou seu marcante otimismo com o povo e a democracia. Ao contrário do estereótipo do intelectual marxista do século XX – ranzinza e desiludido -, o professor se revelou uma pessoa alegre, bem humorada e confiante na possibilidade de superação do modo capitalista de produção.


Toer é licenciado em sociologia pela Universidade de Buenos Aires (UBA) e doutor pela London School of Economics (LSE). Ele foi professor da Universidade do Chile até 1973, quando presenciou o golpe contra Salvador Allende e a Unidade Popular. Pouco após voltar para a Argentina, foi preso em decorrência da sua militância política. Quando solto, se viu obrigado a ir para o exílio. Após o fim da ditadura, Toer retornou ao seu país e se tornou professor da Faculdade de Ciências Sociais da UBA, estando por muitos anos como titular da cátedra de Política Latino-Americana. Algumas de suas obras são: La vía Chilena, un balance necesario (1974); El Materialismo Histórico. Conceptos y categorías básicas acerca del social (2002); De Moctezuma a Chávez: Repensando la historia de América Latina (2006); A 100 años de la revolución rusa. El influjo de un estremecido fulgor (2017).


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Olá, Mario. Muito obrigado por me receber. Você frequentemente fala sobre “colinas e planícies”. Ao meu ver, se trata de um método de observar as questões políticas e sociais. Por favor, nos explique esse método e como aplicá-lo sobre a atual conjuntura latino-americana.


Eu gosto muito dos conceitos e das metáforas. Essa eu peguei da China. Não sei se Deng Xiaoping pessoalmente a usa. É muito gráfica e muito pertinente para a América Latina. No sentido que a China pondera através de uma lógica que está por trás de todo o comunismo chinês: existe o que é secundário e o que é principal; onde se concentra a força e onde não se descuida do território, mas se mantém uma espécie de cerco permissível. E no caso da China, o notável é que Deng sabe - retomando o que Marx já havia definido sobre o que são as condições materiais - que pensar um socialismo como transição para uma sociedade comunista está relacionado com o desenvolvimento científico tecnológico. Tanto que ele [Marx] vislumbrava nos países mais avançados o horizonte da produção de bens suficientes para que as necessidades da maioria fossem atendidas. E que era isso condição para que o proletariado - que no século XIX se imaginava que seria majoritário na Europa - uma vez que tomasse o poder do Estado, pelos meios que fossem, (Marx, veja só, estava muito interessado em uma possível transição pacífica na Inglaterra, tanto que pensou sobre o tema das indenizações) pelo seu peso estaria em condições de transformar seu poder de produção de mercadorias em produção de bens de consumo para satisfazer as necessidades das massas. Isso requeria certos avanços tecnológicos. Pensando em um processo de transição, fica claro que a frente dos trabalhadores era a chave para levar a cabo essa tarefa. Sabemos que isso não aconteceu nesses termos. Isso porque o desenvolvimento desigual e combinado em todo o planeta fez com que, naquele período histórico, a acumulação viesse principalmente da capacidade de obter riquezas de frações importantes do planeta: a era do imperialismo. Isso muda a estrutura das classes nos países. Isso muda todo o mapa de como fazer política. Uns captaram e outros não. Houve os que ficaram presos ao mote da frente de trabalhadores, como pensada no século XIX. O caso mais típico é Trotsky e sua revolução permanente. Outros a defendem, mas não com tanta veemência e eloquência como Trotsky. É uma tradição que vai se adaptando. O primeiro que explicitamente diz que as coisas são diferentes é Lênin, quando afirma ser necessário fazer a análise concreta da situação concreta e que a frente que pode ser feita depende dessa análise. Por isso defende uma revolução burguesa de novo tipo através de uma aliança operária e camponesa. Como sabemos, para Trotsky isso era um disparate. Essa revolução, nesse termos, transitória, até que se produzisse a revolução europeia, era a lógica de Lênin. Ele já pensava em outros termos. Fruto da lógica de composição e organização da sociedade e suas contradições. E aqui voltamos às colinas e às planícies. Quando Lênin defendeu a Nova Política Econômica (NEP) ele deixou claro, textual: vai ser assim até que se produza a revolução nos países mais avançados. Era a revolução possível. Com características particulares, a NEP reabilitava o mercado, mas o controlava. Esse foi um momento da história das tradições ideológicas que não chegou a se consolidar do ponto de vista conceitual. Recentemente, Gramsci retomou o feito da construção de um bloco histórico, o que é diferente da frente dos trabalhadores do século XIX. Cada bloco histórico tem que definir as condições de cada país. E as tarefas são definidas a partir de como se define essa contradição. E o melhor aluno dessa reformulação quem é? É o Mao [Zedong], quando ele afirma que a contradição principal e o inimigo principal define com quem você tem que se aliar. Foi uma aposta em concreto que, com o intuito de enfrentar os japoneses, o levou a se aliar a quem lhe estava perseguindo. Ou seja, há tarefas que estão no âmbito do principal e outras são secundárias. O caso chinês tem uma situação de época. Nos anos 1960 se produz uma grande ofensiva do terceiro mundo. É nesse período que o maoísmo se radicaliza. Isso, por quê? Porque nesse período se torna imaginável que os países desse terceiro mundo podem desafiar o primeiro mundo. A radicalidade e a inexperiência. O maior símbolo disso é a consigna do Che: um, dois, três, muitos Vietnames. O grande salto adiante e a revolução cultural estão relacionados com essa época. Por isso não se pode fazer a análise dos países e da região por separado. Havia um entendimento da época de que seria possível criar um cerco. O cerco, como sabemos, se quebrou. Isso não é nada menor. Quando o centro inicia sua ofensiva, se sente o "fracasso" do movimento guerrilheiro latino-americano, das posições mais radicalizadas em alguns locais da Europa e, na China, do grande salto adiante e da revolução cultural. É neste cenário que surge Deng Xiaoping, que observando o panorama histórico, define que há prioridades novas. Então ele define que existem colinas relacionadas ao desenvolvimento estratégico da China na superação da sua condição de dependência e há um campo bastante extenso, as planícies, onde deveria se produzir e enriquecer na lógica do quanto mais melhor. O tema principal é haver uma condução que saiba diferenciar as colinas, o intocável, e essa outra região que não deve ser meramente descuidada, mas vista como recurso para que o desenvolvimento das forças produtivas, o desenvolvimento cientifico-tecnológico, possa se desenvolver como pensou Marx em sua época. É o caminho chinês ao socialismo. Esse método representa a leitura de Marx para os tempos atuais. E para a América Latina a velha tradição do radicalismo - aí me vem a cabeça o caso do marxista franco-brasileiro…


Michael Lowy?


Ele diz que a esquerda, ou os comunistas, ou os marxistas retrocedem quando abandonam a política de frente operária, ou seja, quando abandonam a posição operária do século XIX. Essa tradição dura em defesa de um programa é o que mantém estagnada e limitada a esquerda. Não é possível entrar no cenário político assim. Tudo isso das planícies e das colinas tem a ver com a abertura de frentes, com as tarefas e com a perspectiva estratégica. A tradição mais de esquerda desse esquerdismo amórfico está em muitas partes da América Latina. Eles não fazem essa discussão e por isso são marginais. Podem deixar de ser quando encontrarem tarefas e definirem “isso aqui é colina e aquilo tudo abaixo é planície”.


Mario, você viveu diferentes momentos da história latino-americana. Foram alguns momentos difíceis e outros de alegria. Hoje vemos os golpes de volta na América Latina. Sejam mais explícitos, como na Bolívia e Honduras, sejam menos, como no Brasil e Paraguai. Por outro lado, há resistência nas ruas de Quito, no Chile… Como você observa o momento atual do sub-continente?


Vejo com muito otimismo. O confronto se agudiza e isso implica que as força populares têm mais delineada a consciência sobre seus objetivos. Essa consciência que não foi dizimada pelo crescimento momentâneo dos projetos de direita, pelo retorno do livreto neoliberal, que na prática demostrou seu limite. O que foi acumulado nos últimos quinze anos tende a se recompor e estender de forma mais massiva. E essa presença massiva permite compreender porque estamos vendo coisas que não tinham acontecido anteriormente, como no Chile e na Colômbia, por exemplo. Desde já a direita usa todos os seus recursos e não vai renunciar de nenhum modo. Mas nós estamos em um estágio superior. Estamos, para usar García Linera, às vésperas de uma nova onda, se é que ela já não começou. As ondas vêm e vão e claro que podem haver novos retrocessos, mas estaremos em melhores condições de retomar a iniciativa. Basta ver o que aconteceu na Argentina com a gestão dessa frente muito bem concebida pela Cristina Kirchner e seguida por Alberto Fernández e os movimentos sociais. Se há algum passo atrás, como estão precisando dar Evo Morales e García Linera, assim como a Frente Ampla uruguaia, ele não termina por fechar esse conflito que será crescente. Esse ano que começa agora será duro. Mas às vezes não tão duro quanto foi em outras épocas porque a luta política faz com que a direita seja obrigada a levar certas coisas em conta. Não é tudo igual como antes. O retrocesso que está dando [Sebastian] Piñera tem a ver com parte da história chilena que deixou certas condições. Eu não sei qual será o desgaste do presidente brasileiro. Nem o que acontecerá na Colômbia, onde o presidente está muito na defensiva. O que eu vejo é uma crescente confrontação que não podemos desconectar com o mundo tal qual, com a presença da China, com os desesperados esforços do presidente estadunidense tentando frear a ascensão chinesa e seu desenvolvimento cientifico tecnológico. Para mim é quase engraçado o Huawei ser o grande espião que esta carcomendo a base de sustentação do império estadunidense. Esse recurso quase engraçado mostra as dificuldades de um país que segue sendo uma potência e a paciência e sabedoria dos chineses ao saber que o tempo está ao seu lado. Isso também é perceptível na tática do Evo [Morales] e Álvaro [García Linera], na Bolívia. Dar um passo atrás para depois dar dois adiante. Se damos conta que o democrático é nosso, podemos dar um passo atrás, e por mais que nos isolem, acabaremos mostrando que somos maioria. Isso me dá confiança e expectativas positivas sobre o futuro.


Uma última pergunta, Mario. Na última edição da revista – Revista Política Latinoamericana -que você coordena, há um texto em que você afirma que deseja um país normal. Com a eleição de Alberto Fernández para presidente, a Argentina enfim será um país normal? Quais suas expectativa sobre o governo Fernández?


Bem, um país normal é uma frase de Cristina Fernández de Kirchner: “o que nós queremos é um país normal”. O que significa na história argentina um país normal, tendo em vista todos os golpes de Estado que tivemos? A vigência das instituições democráticas que vão permitir que as maiorias sejam governantes. É isso que se espera de um país normal. Que as maiorias possam fazer sua experiência e pôr em evidência as fábulas que vende a direita. É nesse sentido que o passo ao lado que deu Cristina, ao permitir que um homem com muita habilidade, Alberto Fernández, seja candidato à presidência, é porque sabe que o presidente eleito sabe o que tem que fazer. E o que tem que se fazer, nos novos tempos, porque antes não era assim, é criar um cenário onde ele possa colocar do lado dele a maioria suficiente para dar passos sucessivos. Essa é a sabedoria. E então saber definir o que são as colinas. O que tampouco é difícil saber no que consistem. São questões claras para pôr ordem em um país governado pelas maiorias. Consolidando isso, eu também sou otimista sobre o período que se abre na Argentina. O que não significa que eu subestime a baixeza da contraofensiva permanente da direita que já trata com seus meios de enganar as pessoas sobre a situação econômica. Eu não menosprezo nada disso. O que eu digo é que há pessoas na liderança, com o reconhecimento das maiorias, a grande massa do povo, como dizia a canção*, está alinhada, olhando os sinais sobre o que é preciso fazer. Não é como em 2001, insurreições populares. Estão reconhecendo uma liderança, mas mostrando sua presença. Esse reconhecimento gera um vínculo entre a direção e a grande maioria, que tem traços de solidez que não houve outras vezes. É claro que há variantes que se somam por oportunismo. Imaginar que isso desapareceria seria inocente.


Algumas últimas considerações?


Poderia dizer que esse novo período que estamos entrando será ácido, duro, mas ao mesmo tempo será muito estimulante. Não será uma partida de várzea. Vai dar prazer ver que cada um estará onde deve estar. Essa satisfação, que também é a beleza do fortalecimento do movimento popular, vai estar presente nesse novo tempo. Sou otimista e acredito que em não muito tempo o Brasil também vai caminhar nessa mesma direção.




*Toer faz referência à uma estrofe da Marcha Peronista: “Por ese gran argentino que se supo conquistar a la gran masa del pueblo combatiendo al capital”.




Editores responsáveis: Rafael Rezende e Marcia Rangel Candido











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