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  • Leonardo Nóbrega, Marcia Rangel Candido

DE MAURICIO MACRI A ALBERTO FERNÁNDEZ: O QUE ESPERAR DA ALTERNÂNCIA DE PODER NA ARGENTINA


Foto: Folha de São Paulo



Introdução


A expressão “lua de mel” é frequentemente utilizada para descrever as relações iniciais entre novos governos e diferentes segmentos da sociedade. Nesta caracterização, o aspecto temporal é importante, pois se refere à dimensão das expectativas sustentadas durante a implementação de um projeto de governo recém-eleito. No presente texto, temos como intuito abordar as projeções de uma opção política que acabou de ser vitoriosa nas urnas e apresentar algumas respostas para a pergunta “o que esperar da alternância de poder na Argentina?”, tendo como objeto as possibilidades geradas com a posse, no dia 10 de dezembro de 2019, da coalizão vencedora no último pleito presidencial do país, a “Frente de Todos”, liderada por Alberto Fernández e a vice Cristina Kirchner, ambos do Partido Justicialista (PJ).


A partir de uma breve contextualização da disputa eleitoral para a presidência e da transição de governos, pretendemos discutir três horizontes importantes da conjuntura argentina: 1- economia e política externa; 2- direitos das mulheres e saúde pública; 3- cultura, educação, ciência e tecnologia. Para tal, o fio condutor foi a escolha de ministérios que na gestão recente tiveram modificações bastante significarivas. Enquanto Mauricio Macri (Proposta Republicana, PRO) encerrou o mandato sustentando uma política de austeridade e ajuste fiscal que reduziu o número de pastas à metade (1), Fernández anunciou uma estrutura renovada que aumentou o número de ministérios e alterou sua configuração em termos de conteúdo com relação ao governo anterior.

A composição ministerial certamente não foi uma tarefa fácil para Fernández. Quando se uniu à Kirchner para formar a coalizão que viria a se tornar exitosa, ele sabia que tinha pela frente um desafio complicado que precisava ser superado se quisesse entrar no pleito com chances reais de disputa: unificar o peronismo, corrente política e social heterogênea, enorme, com agudas desavenças internas e principal portadora do imaginário à volta do qual gira a política argentina (DOMINGUES, 2013). Uma vez logrado o intento, Fernández tinha contas a acertar. Sua equipe de ministros deveria representar, se não todas, ao menos uma significativa parcela das forças peronistas que o apoiaram.

Antes de mais nada, é preciso ressaltar que, no caso aqui abordado, a mudança de governo representa, de fato, um giro político. Se de um lado temos o ex-presidente Macri, um rico engenheiro e empresário que encabeçou uma coalizão política (Juntos por el Cambio) com atores ideologicamente localizados entre o centro e a direita, de outro lado temos o presidente Fernández, um professor universitário que liderou uma coalizão política (Frente de Todos) com atores ideologicamente localizados entre o centro e a esquerda. O que ainda não podemos afirmar com total segurança é a dimensão do giro político que será engendrado na Argentina, entretanto, a nomeação da nova equipe ministerial nos oferece alguns importantes indícios, abordados a seguir.


Economia e Política Externa


A história argentina, pelo menos desde a redemocratização, em 1983, é uma história composta por breves interregnos de estabilidade em meio a sucessivas crises econômicas. Estas foram comumente constituídas pela desastrosa confluência entre estagnação, inflação e endividamento. As crises econômicas já derrubaram presidentes eleitos, como Raúl Alfonsín (1983-1989) e Fernando de la Rúa (1999-2001), e interromperam sonhos de reeleição, como o de Macri (2015-2019). Não por acaso, em quase toda eleição presidencial, a economia surge como o tema central que cativa o eleitor do país vizinho.

A crise que explodiu ainda no ano de 2001 ocupa um espaço especial no imaginário do povo argentino. A manutenção da Lei de Convertibilidade, que igualava o peso argentino ao dólar, herança do governo de Carlos Menem (1989-1999), silenciosamente multiplicava a dívida externa do país ao passo que o desemprego aumentava e o produto interno bruto retraia. Tal cenário, que gerava uma enorme desconfiança nos investidores, provocou uma corrida bancária. Como resposta, o presidente Fernando de la Rúa e o ministro Domingo Cavallo apresentaram um plano econômico que incluía o que ficou conhecido como "corralito", o que nada mais era do que uma rígida restrição dos saques bancários. A consequência imediata foi o brutal empobrecimento de grande parte da população, gerando um caos social que incluiu greves, cortes de estradas, saques, panelaços, gigantescas marchas, cinco presidentes em doze dias e uma duríssima repressão com o saldo de algumas dezenas de mortos. Dessa crise econômica surgiram algumas novidades que marcaram a política argentina nos anos seguintes. As mais notórias são a ascensão nacional do casal Kirchner, o espraiamento do movimento piqueteiro e o incremento da permanente desconfiança da população em relação à moeda nacional - quase todos os argentinos poupam em dólares.

Em 2015, ao primeiro sinal de uma possível crise, pouco mais da metade da população resolveu apostar em um novo presidente, alguém mais próximo ao mercado. Através de um discurso tecnocrático, Macri foi eleito com a promessa de recuperar a economia argentina. Sua arma era o receituário clássico do neoliberalismo: austeridade e menor intervenção estatal. Ao fim, o ex-presidente não só falhou no intento de recuperar a economia argentina, como acabou por agravar a crise, mergulhando o país em níveis alarmantes de pobreza, o que lhe custou a possibilidade de reeleição.

Fernández foi eleito propondo um novo pacto social entre trabalhadores e empresários, assim como culpando os especuladores pela crise. Mas qual seriam as bases desse novo pacto social? Qual o grau de radicalidade do giro econômico que será promovido por Fernández? Por um lado, alguns apostaram que Fernández, como Lula, optaria por começar seu governo com um ministro da economia mais próximo do campo ortodoxo. Por outro lado, alguns apostaram em um giro mais radical, uma aproximação com a Teoria Monetária Moderna, super-heterodoxa.

Nem ortodoxia, nem heterodoxia pura. No campo econômico, Fernández seguirá, ao que tudo indica, a insígnia que tem marcado sua conduta: mudanças sim, mas com moderação. Para o ofício de ministro da Economia, o novo presidente escolheu o jovem Martín Guzmán, de 37 anos. Ele é professor na Universidade de Columbia, onde trabalha com Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de economia. Durante sua carreira acadêmica, Guzmán se dedicou a investigar o tema da renegociação da dívida argentina, o maior desafio que ele terá que encarar. O que o mercado e o povo esperam de Guzmán é a reestruturação rápida e sem rompantes da dívida pública combinada com investimentos em setores chave, buscando a geração de emprego e o aquecimento do mercado interno.

Apesar de ser considerado um “super-ministro”, ou seja, um ministro que concentra muito poderes, é fundamental ressaltar que Guzmán terá que articular suas políticas com outras duas destacadas figuras. A primeira delas é Miguel Pesce, o novo presidente do Banco Central, instituição da qual foi vice-presidente entre 2004 e 2015. Ele é professor da Universidade de Buenos Aires (UBA) e foi um notório defensor do governo Kirchner quando a presidenta, em 2010, anunciou que usaria parte das reservas para pagar a dívida pública. A segunda figura é Matías Kulfas, o novo responsável pelo Ministério de Desenvolvimento Produtivo (Ministerio de Desarrollo Productivo). Também egresso da UBA, ele é um destacado defensor de políticas industrializantes. Seu desafio é frear o processo de desindustrialização, intensificado durante o governo Macri e um os pilares da alta taxa de desemprego do país.

No campo das relações internacionais, por sua vez, o novo chanceler argentino é Felipe Solá (PJ), engenheiro agrônomo, ex-governador da província de Buenos Aires e ex-deputado federal. Peronista, Solá começou sua vida política no final dos anos 1980, participou dos governos Menem e foi da base de apoio dos governos Kirchner até 2008, quando deixou o bloco governista no auge de um grave conflito entre o governo e algumas organizações patronais do setor agropecuário. Desde então, ele figura no grupo dos peronistas não kirchneristas. A nomeação de Solá pode ser considerada uma retribuição pela retirada da sua pré-candidatura presidencial quando Fernández e Kirchner anunciaram que iriam concorrer juntos no pleito de 2019.

O principal desafio de Solá será estreitar laços com os parceiros comerciais da Argentina, algo primordial para um país que precisa recuperar a economia. Ademais, o novo chanceler terá que trabalhar em um cenário de quase total ausência de afinidade político-ideológica com os países fronteiriços, em especial o Brasil. O gigante sul-americano é o maior parceiro comercial da Argentina, mas os dois Estados possuem uma série de antigas disputas sobre tarifas de importação. Além disso, as ameaças ao MERCOSUL, feitas pelo governo brasileiro, assustam a gestão dos vizinhos.

Para comandar as negociações com o importante parceiro, Fernández indicou Daniel Scioli para ser o embaixador argentino em Brasília. Scioli é um poderoso político peronista e já foi governador da província de Buenos Aires, deputado federal, vice-presidente e candidato a presidente. Seu caráter pragmático e negociador é o que sustenta a aposta no seu nome para estreitar os laços com o governo e os empresários brasileiros.

Em relação ao governo anterior, a política externa argentina sofrerá algumas reorientações já anunciadas. A primeira delas é a assunção de um posicionamento com maior grau de altivez na disputa sobre as Ilhas Malvinas (2). A segunda é a defesa, dentro do Grupo de Lima, de uma saída para a crise venezuelana que priorize a negociação entre as partes ao invés do isolamento do governo de Nicolás Maduro. Por fim, o novo governo argentino deve se opor mais firmemente às tentativas de desestabilização de regimes e governos na América do Sul. Sobre a crise contemporânea na Bolívia, por exemplo, Fernández e Solá foram contundentes ao afirmar que Evo Morales sofreu um golpe.


Direitos das Mulheres e Saúde Pública


A participação de mulheres na política institucional é tema importante na Argentina. O país foi um dos pioneiros mundiais na adoção de ações afirmativas em candidaturas ao congresso, assim como se uniu recentemente ao Equador, Costa Rica, Bolívia, Nicarágua, Honduras, Panamá e México na instauração de uma lei de paridade de gênero no âmbito da representação política. Tais medidas transformaram gradativamente o contexto nacional e o posicionaram como um dos líderes globais em inserção do grupo feminino entre senadoras e deputadas. As mudanças, contudo, não resultaram somente em alterações na composição de perfis sociais de eleitos, mas também na própria definição de agendas de trabalho, projetos debatidos pelos governos e repercussão das pautas de gênero (DEL COGLIANO & DEGIUSTTI, 2018; CAMINOTTI, 2013).

Apesar das evidências de que o incremento de mulheres nos espaços de poder modifica o modo de se fazer política, sobretudo em relação aos assuntos que são colocados em debate, sucessivas gestões presidenciais não fomentaram a igualdade na definição de lideranças de ministérios. Na última eleição, da direita à esquerda, ou seja, na passagem de Macri para Fernández, a dominação masculina na ocupação do cargo de ministro perdurou, indo de 82% para 81% (3). Em contrapartida, além da expansão atual na quantidade de pastas, os conteúdos alçados a desfrutar status de ministério apontam para divergências substantivas nos dois governos. A criação do Ministério de Mulheres, Gêneros e Diversidade (Ministerio de las Mujeres, Géneros y Diversidad), sob o comando de Elizabeth Gomes Alcorta, é um dos pontos destas incongruências.

Durante o governo Macri, as questões de gênero não foram legitimadas em uma pasta ministerial. A despeito disso, nos anos de mandato do político do PRO, a Argentina foi território de amplos protestos de mulheres, que ganharam escala transnacional com o movimento Ni Una Menos, contra a violência à mulher, e a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito (Campaña Nacional por el Derecho al Aborto Legal, Seguro y Gratuito, CNDALSG). O macrismo chegou a apoiar a abertura à deliberação sobre direitos reprodutivos no congresso e anunciou propostas de combate ao feminicídio, mas terminou a gestão com um marco negativo para cada uma das demandas: vetou a promulgação de uma atualização ao protocolo nacional de abortos (4) e testemunhou a elevação dos índices de assassinatos de mulheres por sua condição de gênero, que esteve aliada à contenção de gastos com políticas públicas para o problema (5).

O aborto, no entanto, trouxe uma das primeiras rupturas entre os modos de governar de Macri e Fernández: assim que assumiu o ministério da Saúde, Ginés González García levou à frente o protocolo para a Interrupção Legal da Gravidez (Interrupción Legal del Embarazo, IVE) que havia sido barrado por Macri ao final do seu mandato. Na gestão do político do PRO, a saúde era objeto de uma secretaria sob a responsabilidade de Adolfo Rubinstein, figura que renunciou após a tentativa malsucedida de efetivar o protocolo ainda na era macrista. As posições de Fernández e García, por seu turno, são bem claras em demarcar o aborto como uma questão de saúde pública e direito das mulheres, inclusive, esboçando o desejo de reconduzir um novo projeto de legalização a escrutínio no legislativo (6).

É importante pensar a questão do aborto a partir de uma conjuntura: em março de 2018, ainda durante o macrismo, a CNDALSG apresentou pela sétima vez o projeto de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE) (7), que chegou a ser aprovado entre os deputados (129 votos a favor, 125 votos contrários e uma abstenção), mas foi recusado em uma disputada votação no Senado (38 contrários, 31 favoráveis, duas abstenções e uma ausência). Na época, além das ruas terem sido tomadas pela “maré verde”, expressão usada para cunhar os protestos massivos a favor da legalização que tinham um pano verde como símbolo da campanha, uma pesquisa de opinião realizada pela UBA mostrou que 62% dos argentinos e argentinas eram favoráveis à despenalização (8).

As declarações de Fernández e García possuem, portanto, algum grau significativo de respaldo na sociedade argentina. No país, desde o Código Penal de 1921, o aborto é permitido nas ocasiões em que a gravidez ponha em risco a vida da mulher ou que seja fruto de estupro. O exercício deste direito, não obstante, nem sempre é alcançado, e varia de acordo com diretrizes adotadas nas diferentes províncias nacionais. O protocolo instituído no começo da gestão Fernández/ Kirchner procura delimitar marcos legais que garantam o acesso ao aborto nos termos da legislação vigente.

García é um dos ministros mais experientes do novo governo e foi responsável pela pasta de saúde de outros presidentes, como Eduardo Duhalde (2002-2003) e - ao lado de Fernández que era chefe de Gabinete - Néstor Kirchner (2003-2007). A eleição de Cristina Kirchner lhe rendeu a mudança de função e a indicação para ser ministro no Chile, cargo que exerceu até 2015. Gínes é também professor e, em 2019, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Faculdade de Medicina da UBA, laureado pelo comprometimento na promoção da saúde pública (9).

Ainda que a pauta do aborto seja cara às lutas feministas, Alcorta, ministra encarregada pela pasta da área, afirma que um dos pontos centrais da sua atuação vai consistir em tornar a perspectiva de gênero transversal a todos os ministérios e fortalecer o federalismo. Este argumento é um dos mais promissores do governo que está começando, pois tenta deslocar a atenção às desigualdades de uma esfera segregada e particularista a uma preocupação coletiva e territorialmente abrangente (10). O primeiro movimento nesse sentido foi realizado no dia 10 de janeiro de 2020, quando Alcorta, junto à socióloga Dora Barrancos, que é sua assessora, promoveu uma capacitação em políticas de gênero para a totalidade do gabinete de Fernández (11).

A estrutura do Ministério de Mulheres, Gêneros e Diversidade está dividida em duas secretarias que enfocam a promoção da igualdade, conduzida por Cecilia Merchán, e o combate à violência por razões de gênero, a cargo de Josefina Kelly Neira. A proximidade da pasta com movimentos sociais atravessa a trajetória de inúmeras de suas integrantes, mas é simbólica no trabalho de Alcorta, que além de exercer a docência há mais de duas décadas na Faculdade de Direito da UBA, atuou na defesa de Milagro Sala e da liderança mapuche Moira Millán. A ministra é ativista da causa indígena, sendo parte da Associação de Advogados de Direitos Indígenas (Asociación de Abogados de Derechos Indígenas) e da Rede “Mario Bosch”, que reúne advogados mobilizados em causas humanitárias.



Cultura, Educação, Ciência e Tecnologia

Os ministérios da Educação, da Ciência, Tecnologia & Inovação e da Cultura, embora não figurem entre os mais prestigiosos, assumem papel central na transição de governo. A mudança do estatuto das duas últimas pastas salta aos olhos: destes ministérios, apenas o de Educação se manteve com o status de ministério ao longo do governo Macri; os outros dois foram rebaixados à condição de secretaria e vinculados à Educação, retomando agora sua condição original.

A indicação de Nicolás Trotta (PJ) para o Ministério da Educação (Ministerio de Educación) aponta para possíveis mudanças na condução da política educacional do país, mesmo que o novo ministro tenha se posicionado de forma cautelosa com relação às críticas ao seu antecessor e ainda não tenha dado respostas claras sobre as fontes de financiamento, um dos pontos críticos do país que vem de uma grave crise econômica. Trotta é advogado, jornalista, professor universitário e protagoniza o programa de televisão “Latinoamérica Piensa”, em que entrevista personagens de destaque no campo político progressista, dentre eles Lula e Mujica.

Pouco depois de completar trinta anos de idade, Trotta chegou a ocupar, entre 2007 e 2009, o cargo de Subsecretário de Tecnologias de Gestão no governo de Cristina Kirchner. Foi reitor da Universidad Metropolitana para la Educación y el Trabajo (UMET), fundada em 2013 a partir de uma coligação de sindicatos, dentre os quais o Sindicato Único de Trabajadores de Edificios de Renta y Propiedad Horizontal (Suterh). O Suterh é um dos sindicatos mais fortes do país, central na construção de coalizões políticas e proprietário do grupo Editorial Octubre, à frente de um dos jornais de esquerda com maior repercussão nacional, o Pagina 12.

Trotta substituiu Alejandro Finocchiaro, advogado e professor universitário com passagens pela UBA e pela Universidad Nacional de la Matanza. A gestão de Finocchiaro foi marcada por embates com organizações sindicais, dentre elas a Confederación de Trabajadores de la Educación de la República Argentina (CTERA). Algumas atitudes, como a diminuição nos investimentos na educação, o corte no programa Nuestra Escuela - que estimulava a formação de docentes em nível de pós-graduação -, além do anúncio de que iria deixar de cumprir, via decreto, a lei de paridade que igualava os salários docentes nas diferentes províncias do país, atraíram para si uma série de críticas ao longo da sua administração.

No ministério da Ciência, Tecnologia & Inovação (Ministerio de Ciencia, Tecnología e Innovación), o nome indicado foi o de Roberto Salvarezza, da coligação Frente de Todos, mesma de Fernández e Kirchner. Bioquímico com formação de graduação e pós-graduação pela UBA, Salvarezza ganhou destaque na carreira com pesquisas voltadas para a área de nanotecnologia. Em 2012 foi designado pelo então ministro da Ciência, Lino Barañao, como presidente do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet) – órgão nacional de financiamento de pesquisas -, de onde renunciou em 2015 por discordar do governo Macri.

Em 2016, Salvarezza foi designado diretor do Conicet na área de Ciências Exatas e Naturais, mas, de forma inédita, teve a indicação rejeitada pelo governo. Foi eleito deputado federal em 2017, concorrendo pela tendência Unidade Cidadã (Unidad Ciudadana), a mesma de Cristina Kirchner. Embora ainda seja cedo para se fazer alguma avaliação, é notório que o discurso do novo ministro se distancia do anterior, Lino Barañao, comprometendo-se, por exemplo, com o aumento das bolsas de pesquisa e a regularização de direitos trabalhistas dos pesquisadores e pesquisadoras.

Atitudes pregressas do atual ministro, entretanto, fazem pairar dúvidas quanto às prioridades da atual gestão. Um caso controverso envolvendo Salvarezza esteve relacionado ao pesquisador do Conicet Andrés Carrasco, que publicou estudos com advertências sobre o uso do pesticida glifosato – produzido pela multinacional Monsanto - na produção agrícola. Carrasco posteriormente teve sua promoção negada pelo Conicet quando Salvarezza era presidente do órgão, levantando suspeitas de que tenha sido uma forma de retaliação por contrariar interesses da empresa no país (12).

Dentre esses três ministérios, o da Cultura é, de toda forma, o que provoca maior dissenso. A indicação de Tristán Bauer tem sido compreendida como parte da cota de Cristina Kirchner na composição ministerial. Bauer é cineasta e criou canais de televisão como o Encuentro, ligado ao Ministério da Cultura e a TV Pública. Foi diretor do Sistema Nacional de Medios Públicos (2008-2013) e propôs em 2009 o decreto 943/09 que autoriza a Radio y Televisión Argentina (RTA) a instalar e operar um sistema de televisão por satélite em todo o país (satélite ARTSAT). Trate-se da abertura a canais de cultura, educação e informação acessíveis com a compra de uma antena parabólica (que custa cerca de 15 dólares).

A jornalista brasileira especializada em pautas internacionais, Silvya Colombo, em coluna na Folha de São Paulo no dia 11 de dezembro de 2019, classificou Bauer como um “kirshnerista extremamente engajado e militante” (13). Destacou o fato de a TV Publica ter, segunda ela, virado um instrumento de propaganda do governo sob a sua atuação e de Bauer estar finalizando o filme “Tierra Arrasada”, sobre o que o diretor considera os erros do governo Macri. A interpretação proposta pela jornalista brasileira deixa claro o sinal lançado pelo atual governo ao escolher um nome tão marcadamente kirchnerista para o Ministério da Cultura, em substituição ao ministro do governo Macri, Pablo Avelluto.

Pablo Avelluto já era figura conhecida dos meios culturais argentinos quando foi designado por Macri como ministro. Com uma longa trajetória no mercado editorial, se destacou como diretor da filial local do grupo editorial Randon House-Sudamericana, maior player do país. Entre os anos de 2005 e 2012 protagonizou mudanças significativas no mercado editorial portenho, tendo como destaque a publicação de best-sellers críticos aos governos kirchneristas e às políticas voltadas para os direitos humanos, incluindo livros com proposições heterodoxas com relação à interpretação do período autoritário no país nos anos 1970 (SAFERSTEIN, 2017). As relações que estabeleceu como diretor editorial, tendo sido vice-presidente da Cámara Argentina de Publicaciones, o fizeram vincular-se ao PRO, partido de Maurício Macri, e ser escolhido coordenador do Sistema de Medios Públicos do governo da Cidade de Buenos Aires em 2014.

As atuações distintas e, por vezes, antagônicas em termos de alinhamentos políticos, de Pablo Avelluto e Tristán Bauer, dão conta da ruptura que esse novo governo promete promover. Em entrevista ao jornal Pagina 12, Bauer afirmou: “O nosso é um modelo cultural que não tem nada a ver com a meritocracia, [é] um modelo que defende a democracia, a solidariedade, a diversidade cultural e a proximidade à América Latina. Muito distante do modelo cultural que se quis implementar a partir deste mesmo lugar [no antigo Ministério da Cultura]” (14).



Considerações finais

O pouco tempo percorrido entre o fim do governo de Maurício Macri e a atual gestão de Alberto Fernandéz impossibilita a realização de análises mais delimitadas em execução de políticas públicas e suas consequências para a sociedade, mas a formação ministerial, os perfis escolhidos para os cargos de liderança e os contrastes com o governo anterior permitem compreender as possibilidades que estão em jogo na alternância de poder na Argentina. Fora as pastas mencionadas, o gabinete da nova gestão é formado por Eduardo de Pedro (Ministerio del Interior), Agustín Rossi (Ministerio de Defensa), Luis Basterra (Ministerio de Agricultura, Ganadería y Pesca), Mario Meoni (Ministerio de Transporte), Gabriel Katopodis (Ministerio de Obras Públicas), Marcela Losardo (Ministerio de Justicia y Derechos Humanos), Sabina Federic (Ministerio de Seguridad), Daniel Arroyo (Ministerio de Desarrollo Social), Claudio Moroni, (Ministerio de Trabajo, Empleo y Seguridad Social), Juan Cabandié (Ministerio de Ambiente y Desarrollo Sostenible), Matías Lammens (Ministerio de Turismo y Deportes) e María Eugenia Bielsa (Ministerio de Desarrollo Territorial y Hábitat).


NOTAS

[1] Disponível em: https://es.wikipedia.org/wiki/Anexo:Gabinete_de_Ministros_de_Mauricio_Macri (acesso em 9 de janeiro de 2020).

[2] Disponível em:https://www.pagina12.com.ar/239737-felipe-sola-ratifico-la-legitima-e-imprescriptible-soberania (acesso em 9 de janeiro de 2020).

[3] Disponível em: https://www.infobae.com/sociedad/2019/12/06/lejos-de-la-paridad-alberto-fernandez-anuncio-su-gabinete-hay-17-ministros-hombres-y-solo-4-ministras-mujeres/ (acesso em 9 de janeiro de 2020).

[4] Disponível em: https://www.pagina12.com.ar/232261-macri-revocara-el-protocolo-de-aborto-no-punible (acesso em 9 de janeiro de 2020).

[5] Disponível em: https://www.filo.news/genero/Un-2019-para-el-olvido-327-mujeres-asesinadas-y-un-triste-record-de-femicidios--20200103-0023.html (acesso em 9 de janeiro de 2020).

Disponível em: https://www.clarin.com/sociedad/fin-ano-femicidios-record-dia-diciembre_0_RC2fo4lA.html (acesso em 9 de janeiro de 2020).

[6] Disponível em: https://www.lanacion.com.ar/politica/el-gobierno-activa-el-protocolo-para-los-abortos-legales-nid2315361(acesso em 9 de janeiro de 2020).

[7] Disponível em: http://www.abortolegal.com.ar/proyecto-de-ley-presentado-por-la-campana/ (acesso em 9 de janeiro de 2020).

[8] Disponível em: http://www.sociales.uba.ar/wp-content/blogs.dir/219/files/2018/07/Encuesta-aborto-COPES-FSOC-UBA-Junio-2018-.pdf (acesso em 9 de janeiro de 2020).

[9] Disponível em: http://www.uba.ar/noticia/19705 (acesso em 9 de janeiro de 2020).

[10] Disponível em: https://www.pagina12.com.ar/236597-las-pautas-que-guiaran-la-gestion-de-elizabeth-gomez-alcorta (acesso em 9 de janeiro de 2020).

[11] A iniciativa ocorreu no âmbito da Lei Micaela (n.27.499/18). Ver: https://www.pagina12.com.ar/241160-genero-y-violencia-contra-las-mujeres-la-capacitacion-de-alb (acesso em 9 de janeiro de 2020).

[12] Disponível em: https://www.laizquierdadiario.com/Ciencia-y-Tecnica-en-el-post-macrismo-De-donde-venimos-y-a-hacia-donde-vamos?fbclid=IwAR3qmc2952tBt9tqiYX6v3_CTVVXDF4YG96qLuT2HkXFPQytq9bRmUiPUcM (acesso em 9 de janeiro de 2020).

[13] Disponível em: https://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2019/12/11/apesar-do-discurso-conciliatorio-ministerio-da-cultura-vai-para-um-militante/ (acesso em 9 de janeiro de 2020).

[14] Disponível em: https://www.pagina12.com.ar/237354-tristan-bauer-todo-lo-que-es-cultura-es-ganancia-para-la-soc?fbclid=IwAR2mWLM7_JEmBwl4y8I9R6_pciiW_PmGtPaiTHzo4c42z3T_wUQnvrC5XFU (acesso em 9 de janeiro de 2020).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CAMINOTTI, Mariana. (2013). “La representación política de las mujeres en el período democrático”. Revista SAAP, v.7, n.2, p.329-337.


DEL COGLIANO, Natalia. DEGIUSTTI, Danilo. (2018). “La nueva ley de paridad de género en Argentina: antecedentes y desafíos”. Observatorio Político Electoral - Documento de Trabajo, n.1.


DOMINGUES, José Maurício. (2013). “Imaginário e política na modernidade: a trajetória do peronismo”. Cadernos de trabalho NETSAL. v.1, n.2, p.1-23.


SAFERSTEIN, Ezequiel. (2017). “La edición como intervención cultural, comercial y política: best-sellers políticos del director de Random House-Sudamericana en el kirchnerismo”. MILLCAYAC - Revista Digital de Ciencias Sociales, v. IV, n. 7, p. 141–164.


Leonardo Nóbrega é professor do Instituto Federal de Pernambuco e pesquisador de Pós-Doutorado no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), com estágio sanduíche realizado no Centro de História Intelectual da Universidad Nacional de Quilmes. É editor da Horizontes ao Sul. E-mail: leonobrega.s@gmail.com

Marcia Rangel Candido é doutoranda em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-Brasil (Capes) – Código de Financiamento 001. Em 2018, foi pesquisadora visitante na Universidad Nacional de San Martín (UNSAM) e na Universidad Nacional de Cuyo (UNCuyo). É editora da Horizontes ao Sul. E-mail: marciarangelcandido@gmail.com

Rafael Rezende é doutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Bolsista do Programa Bolsa Nota 10 da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Em 2019, foi pesquisador visitante no Instituto de Estudios de América Latina y el Caribe (IEALC) da Universidad de Buenos Aires (UBA). É editor da Horizontes ao Sul. E-mail: brozrezende@gmail.com

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Esta publicação é fruto de parceria de divulgação científica da Horizontes ao Sul (HaoS) e do Observatório Político Sul-Americano (OPSA). O OPSA é um grupo de pesquisa de referência nas Relações Internacionais e na Ciência Política destinado à análise, ao monitoramento e ao registro de eventos políticos na América do Sul. O núcleo, coordenado por Maria Regina Soares de Lima, Letícia Pinheiro e Marianna Restum Albuquerque (coordenadora adjunta), tem sede no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj).








Veja a edição completa do Boletim OPSA, n.4, out./dez., 2019:


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