SOL NA CABEÇA E CORRERIA SOB OS PÉS: VIDA E PRODUÇÃO DE LUIZ ANTONIO MACHADO DA SILVA*
Fotografia retirada do programa Caminhos[1]
O chamado “fenômeno urbano” se apresentou como ruptura das estruturas sociais, políticas e morais que marcaram a mudança de um tempo. A entrada da modernidade e das relações cada vez mais aceleradas suscitaram grandes questões para a Sociologia, ainda no tempo de sua consolidação. Hoje, na contemporaneidade, o mundo urbano ainda se apresenta em expansão, animando pesquisas que visam compreender a realidade social e suas transformações, nos mais diversos âmbitos. Neste contexto, trazemos o trabalho de Luiz Antonio Machado da Silva como referência fundamental no entendimento da vida contemporânea em uma escala desafiadora: seus fluxos cotidianos de relações, informações, representações, sociabilidades, temporalidades e correlações de força, através de um precioso olhar sobre as cidades brasileiras.
O autor, ao propor enquadramentos e olhares possíveis sobre o mundo popular por meio das numerosas facetas de seus "modos de vida", nos guia pelos enigmas dos acontecimentos diários, abrindo campos de possibilidade analítica que o tornaram um clássico vivo nas Ciências Sociais. Machado da Silva, carioca cuja vida e produção se entrecruzam, experiencia o sol na cabeça e a correria sob os pés. Graduado em Sociologia e Política pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em 1964, fez carreira desde cedo como pesquisador da Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (Codesco) do Governo do Estado da Guanabara, atuando, mais tarde, na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), o que lhe possibilitou uma imersão significativa no que já era seu campo de interesse: o mundo popular e suas relações cotidianas. Além disso, seu laço profundo com a sala de aula – e o contato aproximado com seus alunos e alunas – era, desde já, atenciosamente construído. Em 1969, ingressa na pós-graduação animado pelas questões pulsantes de sua época, que até hoje ressoam. No labiríntico universo da conjuntura de retrocessos políticos e sociais, a cidade já gritava, suscitava debates sobre segurança, moradia, trabalho e deslocamento. A produção de Luiz Antonio Machado da Silva, por sua vez, emerge como resposta ao grito urbano. Assertivo, direto e profundo, o teórico encarou o desafio de entender os multifocos dos indivíduos urbanos e suas relações com a vida material.
Nesta sua trajetória, a contribuição teórica – e metodológica – de Machado da Silva é pulsante desde seu primeiro clássico, publicado no ano de 1967, A política na favela. Ao buscar uma reflexão sobre alguns dos aspectos do problema do processo político e seus reflexos nas atitudes, no comportamento e na visão política do favelado, Machado da Silva descreve a vitalidade econômica das favelas, em suas formas de organização política e em suas economias cotidianas, rompendo com um imaginário, de um lado, homogêneo sobre o favelado e, de outro, assistencialista sobre a realidade das favelas, e problematizando, até mesmo, o que se entendia como "marginalidade".
O próprio fenômeno da marginalidade, tomado como agenda e conceito desde meados da década de 1960, a nível nacional e internacional, é tratado por Machado da Silva em seus trabalhos posteriores, sendo analisado, em diálogo crítico, na dissertação Mercados Metropolitanos de Trabalho Manual e Marginalidade, defendida por ele, em 1971, no Museu Nacional, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da UFRJ. O trabalho apresentado em sua dissertação teve como foco a elaboração de um modelo das situações concretas de trabalho e das condições de organização do mercado, assumindo como perspectiva inovadora a posição dos próprios trabalhadores das camadas marginais do mercado urbano.
Neste contexto, Machado busca retificar erros decorrentes do que considerou uma “distorção ótica” das teorias globais sobre marginalidade, em um novo modelo que enfatiza o consenso, a integração e a não-integração ao sistema, por exemplo, à desvalia do conflito, onde o protagonismo vinha sendo as relações de competição do mercado, e das perspectivas evolucionistas ou unilineares de análise do fenômeno. Com a intenção de afirmar que o trabalho não-formalizado é produtivo na produção de riquezas, com certa institucionalidade, organização e função na própria acumulação capitalista, Machado da Silva apresenta este subsistema invisível, que existe à revelia do aparato jurídico-legal e é formado também pela distribuição de riscos. Algumas das ocupações características deste subsistema são: os trabalhadores por conta própria, trabalhadores por conta própria com situação regularizada (autônomos) e os “biscateiros”.
Em um período em que era membro de programas de promoção social e melhorias habitacionais em populações de favelas, atuando no Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Recife – espaços que constantemente vinham sendo considerados como o “coração da marginalidade” –, por exemplo, o pesquisador leva em consideração a extensa bibliografia, apontando, porém, a enorme escassez de dados estatísticos fidedignos e investigações empíricas, para demonstrar que o problema das análises e dos modelos anteriores era, de fato, a completa falta de vivência da realidade estudada – ou seja, a falta da sensibilidade etnográfica.
Nestes modelos, segundo Machado da Silva, o fenômeno da marginalidade era pouco discutido empiricamente e, no caso, analisado apenas de forma teórica e quantitativa, sem relação direta com o que era vivenciado e operacionalizado na realidade social. De forma crítica aos modelos anteriores sobre marginalidade – e informalidade –, construídos como parte de esquemas e pressupostos em torno dos problemas globais de desenvolvimento em uma concepção ocidentalista de produtividade e equilíbrio setorial, por exemplo, Luiz Antonio Machado da Silva demonstra que as favelas – e, mais especificamente, as camadas marginais do mercado urbano ali localizadas – representam um papel decisivo na produção.
A partir, portanto, da sua perspectiva assumida, ou seja, a análise das representações coletivas dos próprios trabalhadores, empiricamente, seu modelo pretendeu contribuir para a correção de reificações, binarismos, formalismos, polaridades e do simplismo legalista dos problemas de emprego/ subemprego e estabilidade/instabilidade de mão-de-obra que pautavam as teorias da marginalidade da época. Luiz Antonio Machado da Silva, dessa forma, inaugura um repertório de análise da realidade social, que passou a ser sua grande marca enquanto contribuição às teorias sociológicas – e antropológicas. Ao compreender a realidade social a partir da rotina cotidiana dos atores como estrutura, Machado considera que o sentido das ações se constrói mais no cotidiano do que na institucionalidade, dando valor ao plano das práticas e à performance dos atores, em suas atividades. Tal caminho metodológico e sensibilidade analítica, portanto, reforçam a atualidade das contribuições de Machado aos mais diferentes campos de estudo que considerem a complexidade da vida urbana cotidiana como objeto.
Durante todo o seu caminho de contribuições teóricas e intelectuais, do mestrado ao pós-doutorado, e de participação em diversos programas e órgãos institucionais, o pesquisador e professor esteve atuante em relevantes centros acadêmicos. Sendo membro do INCT/Observatório das Metrópoles, do NECVU (Núcleo de Estudos sobre Cidadania e Violência – IFCS-UFRJ), líder do CEVIS (Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade - PPCISUERJ), e membro do Grupo CASA – estudos sobre trabalho e moradia (IESPUERJ), Machado da Silva mantém seus interesses de pesquisa na análise das representações coletivas, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, sob a perspectiva da violência urbana, como representação, e do que ele denominou de sociabilidade violenta (MACHADO DA SILVA, 2010).
Machado da Silva (2011) reconhece a violência urbana, no contexto atual brasileiro, como um dispositivo central de uma linguagem que articula, segundo uma gramática própria, uma série de enunciados que expressam um debate a respeito de um amplo conjunto de práticas ilícitas, as quais podem envolver desde a simples incivilidade até a extrema crueldade, passando por graus variáveis de violência física. As condutas de referência não remetem apenas às figuras jurídicas do crime, mas são recortadas, apreendidas e sintetizadas pelo efeito de afetar a continuidade das rotinas diárias, na medida em que são percebidas como ameaças à integridade física e/ou patrimonial individual.
É importante ressaltar que a noção de violência urbana, para Machado da Silva, não diz respeito a eventos violentos isolados ou ao percentual de atos criminosos em determinadas camadas da sociedade e/ou regiões da cidade, mas sim à sua articulação com a própria ordem social, como referência de modelos de conduta construídos simbolicamente no convívio social cotidiano (MACHADO DA SILVA, 2004). O crescimento da violência urbana passa a ser a gramática que articula um conjunto de práticas sociais e estrutura um padrão de sociabilidade que foi denominada como sociabilidade violenta, no qual a força física, com ou sem instrumentos e tecnologias, deixa de ser um meio de ação para se transformar em um regime de ação (MACHADO DA SILVA, 2010).
A disputa discursiva sobre o caráter ordinário ou extraordinário do conflito anima trabalhos como o de Machado da Silva (2011), em que o autor demonstra como a ilustração da violência como quebra essencial das unidades cotidianas é capaz de gerar estigmatizações e ações institucionais turvas. Ao observar as dinâmicas da violência urbana no Rio de Janeiro, reconhece que na cidade em questão “a interpretação coletiva da experiência da ameaça às rotinas cotidianas [...] fundamenta fortes sentimentos de medo e insegurança levou à ‘metáfora da guerra’ (LEITE 2001 apud MACHADO, 2011: 74). É, enfim, necessário admitir tais interações como aspectos da vida em sociedade. É o reducionismo essencial da linguagem da “violência urbana”, com seu foco nas rotinas cotidianas e sua delegação do controle social – entendido na chave exclusiva da repressão – na polícia, que explica a inviabilidade dos programas de recomposição do tecido social nela baseadas (MACHADO, 2011: 76).
Sua intensa atuação nos centros acadêmicos de estudos e pesquisa, e seu engajamento afetivo e ético-político, por exemplo, ampliaram seus debates e influenciaram diferentes gerações de pesquisadores a partir de seus métodos de análise e seus marcadores conceituais, compartilhados com afinco com seus alunos, alunas e professores colaboradores. Como parte deste reconhecimento, por exemplo, diversas parcerias foram realizadas na produção de coletâneas, como o livro Vida sob cerco, publicado em 2008, com artigos relacionados à violência e à rotina nas favelas do Rio de Janeiro, através – como é sua marca – das representações dos próprios moradores. Além deste, em seu penúltimo livro, resultado de uma pesquisa coletiva, Fazendo a cidade – trabalho, moradia e vida local entre as classes populares urbanas, de 2016, Machado da Silva retoma a questão dos territórios periféricos, suas representações e cenários, ao investigar os “ambientes políticos-culturais” (MACHADO, 2016) que influenciaram seu trabalho intelectual. Desenvolve em sua obra uma visão compromissada com a realidade material de suas observações, de resultado não moralizante, tampouco romantizado do que são e das transformações dos espaços de favela na cidade do Rio de Janeiro, voltando sua atenção principalmente aos “dilemas da integração social que produzem a cidade” (MACHADO, 2016:17).
O seu último lançamento, O mundo popular: trabalho e condições de vida, de 2019, tem organização de Mariana Cavalcanti (IESP-UERJ), Eugênia Motta (IESP-UERJ) e Marcella Araujo (IFCS-UFRJ), e conta com uma seleção cuidadosa de seus célebres trabalhos que, desde o início de sua carreira, nos abrem as portas para o mundo popular e a tessitura das relações entre trabalho e condições de vida nas camadas urbanas subalternas, além de nos atentar, mais uma vez, para o cotidiano das camadas populares. Ao se propor a valorizar a rotina dos indivíduos em toda a complexidade da realidade social, em suas atividades, estratégias, representações, experiências e práticas concretas no capitalismo, Luiz Antonio Machado da Silva traça não só os caminhos de uma sociologia brasileira do urbano, mas de uma sociologia do trabalho e da vida econômica, combinando sensibilidade etnográfica e análise sociológica, em amplitude, e contribuindo, em específico, para a compreensão da sociabilidade metropolitana brasileira.
A cidade afeta e é produzida por diversos afetos. Nas obras do autor visitamos becos, vielas, bares, morros e asfaltos. Ao voltar seu olhar aos desafios cotidianos da vida urbana, nos proporciona sentir a cidade através da leitura, a mesma que nos tira o ar e também nos proporciona o sorriso. O trabalho de Machado da Silva se apresenta como uma coletânea crônica das metrópoles brasileiras, tendo como cenário as diversas faces, articulações e negociações presentes no mundo popular. Sua leitura é plural, como os seus espaços investigativos, despertando inquietações de extrema relevância em cada passo de sua trajetória.
A produção de Machado da Silva se revela inesgotável, inspirando seus orientandos e interlocutores que seguem desvendando os caminhos do fazer a cidade. Pesquisadoras e pesquisadores que beberam de sua fonte e fazem arder ebulições urbanas na contemporaneidade das Ciências Sociais. Destaca-se a continuidade do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU – PGGSA/IFCS) e do Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade (CEVIS – PPCIS/UERJ).
Por fim, faz-se referência a emergência do Grupo de Estudos sobre Moradia e Cidade - CASA (IESP/UERJ), coordenado por Mariana Cavalcanti e Eugênia Motta, que em constante diálogo com Machado da Silva, seja em disciplinas ministradas no IESP-UERJ, seja em suas produções, mantêm o compromisso com a ciência e as questões de primeira ordem na vida social urbana, a nível nacional e internacional. Reside neste legado o retrato de um clássico vivo, visto que observar a cidade sob o prisma de Machado da Silva trata-se de um privilégio e de uma grande responsabilidade.
NOTAS
[1] O programa Caminhos é uma série de memória oral do Iesp-Uerj. Para conferir a entrevista completa de Machado, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=vMJTW1ff9_k&feature=emb_title
REFERÊNCIAS
FREIRE, Jussara. ROCHA, Lia. (2010), “Para uma sociografia da sociologia urbana brasileira: a obra de Luiz Antonio Machado da Silva”. Revista Antropolítica, n. 28, p. 69-91.
MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. (1967), “A política na favela”. Cadernos Brasileiros, ano IX, nº 41, p. 35-47.
______. (1971), Mercados Metropolitanos de Trabalho Manual, Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
______. “Sociabilidade violenta: por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil”. Sociedade e Estado, Brasília, v. 19, n. 1, p. 53-84, jan./jun. 2004.
______. Vida sob cerco. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2008.
______. “Violência urbana”, segurança pública e favelas – o caso do Rio de Janeiro. Caderno CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 288-300,.2010.
______. (2011), “Polícia e violência urbana em uma cidade brasileira”. Etnográfica, v. 15, n. 1, p. 67-82.
______. (2013), “O controle do crime violento no Rio de Janeiro”. Le Monde Diplomatique Brasil.
______. (2016), Fazendo a Cidade – Trabalho, Moradia e Vida Local Entre as Camadas Populares Urbanas. Coleção Engrenagens Urbanas, Editora Mórula: Rio de Janeiro.
______. (2018), O mundo popular: trabalho e condições de vida. CAVALCANTI, Mariana; MOTTA, Eugênia; ARAÚJO, Marcela (Orgs.). Rio de Janeiro: Papéis Selvagens.
POLYCARPO, Clara. (2018), Os “inimigos urbanos” de um novo projeto de cidade: atualizando as representações coletivas das camadas médias do Leme “pós-pacificação”. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense.
Clara Polycarpo é Doutoranda em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).
Hellen Oliveira é Doutoranda em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).
*Este texto foi originalmente publicado no Dossiê 50 anos de Produção e Transmissão de Conhecimento: a tradição do IESP UERJ por seus estudantes, divulgado pela Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, revista dos discentes do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ. Para consultar o volume completo, clique na imagem abaixo:
Como citar esse texto: POLYCARPO, Clara; OLIVEIRA, Hellen. (2020), "Sol na cabeça e correria sob os pés: vida e produção e Luiz Antonio Machado da Silva". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/08/07/SOL-NA-CABECA-E-CORRERIA-SOB-OS-PES-VIDA-E-PRODUCAO-DE-LUIZ-ANTONIO-MACHADO-DA-SILVA
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