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  • Juliana Vieira, Leonardo Campoy e Fabricio Forcato

AS CRIANÇAS NUNCA VÃO PARAR DE CANTAR: A HISTÓRIA DO NO MILK TODAY


Créditos:Eve Ramos


Em 2017, recebemos da produtora cultural Thereza Oliveira a proposta de escrever um livro em comemoração aos 25 anos da banda curitibana No Milk Today (NMT). Sua motivação foi retratar e celebrar a história da banda punk mais antiga da cidade ainda ativa, cuja trajetória se funde com a formação de um profuso underground entre os anos 1980 e 1990. A cena musical curitibana, apesar de ter sido bastante ativa e movimentada nestas décadas, foi bem menos abordada em livros e documentários do que as que se constituíram em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife. Assim, debruçando-se sobre a história do NMT, nosso livro (As crianças nunca vão parar de cantar: a história do No Milk Today, Editora Medusa, 2019) também contribui para preencher essa lacuna, jogando luz no underground curitibano em geral e oferecendo essa mirada aos interessados em punk no Brasil.


Viabilizado pelo Programa de Apoio e Incentivo à Cultura da Fundação Cultural de Curitiba e da Prefeitura Municipal de Curitiba, com incentivo da Celepar, a redação ficou sob encargo de um trio formado por uma redatora, Juliana Eloi Vieira, um antropólogo, Leonardo Carbonieri Campoy, e um historiador, Fabrício Forcato dos Santos. Já nas primeiras conversas para definir cronogramas e iniciar a pesquisa, surgiram algumas perguntas sobre como a cena punk de Curitiba se desenvolveu, com suas melodias cruas e sujas, suas roupas pretas e rodas daquela dança peculiar que congrega pelo atrito entre os corpos, na “cidade modelo” [1]. Em quais lugares as bandas – tanto as da primeira geração, dos anos 80, como Carne Podre, Beijo AA Força, Paz Armada, quanto as da segunda geração, já nos anos 90, da qual faz parte o NMT – se apresentavam? Quem eram os seus principais incentivadores e como esse pessoal se organizou para lançar fitas e mais fitas K7, discos, cds, e realizar dezenas de shows com diversas bandas nacionais e estrangeiras? Circulando por diversos bairros da capital paranaense e, especialmente pelo centro, como os punks da cidade definiam espaços de encontro?


A partir dessas questões, que buscavam traçar um pouco da história do punk em Curitiba e a própria história do NMT, sugiram outras perguntas intrigantes. Como seus integrantes, ao longo dos 25 anos da banda, se tonaram e mantiveram punks? Depois de anos tocando em botecos, com equipamentos muitas vezes toscos, sem roadies, sem pagamentos, com atrasos e imprevistos nas apresentações, o que incentiva a banda a continuar sua caminhada ainda hoje? A curtição? A resistência? A ideologia? A amizade?


Iniciamos uma série de entrevistas com os antigos e atuais integrantes do NMT, amigos e fãs desses velhos punks dos pinheirais. Ouvir as pessoas que fizeram parte da banda ou estiveram ao redor dela foi fundamental para recompor teias de relações sociais da cena punk/rock/hardcore curitibana. Sem as pessoas, a cena simplesmente não existe. Conversamos, por exemplo, com Geraldo Jair Ferreira Júnior, mais conhecido como JR. Desde 1991, parte significativa da cena underground curitibana acontece no seu 92 Graus The Underground Pub. JR entendeu que era preciso abrir espaço para as bandas independentes mostrarem seu trabalho, como deixou claro na conversa que tivemos com ele:


Bandas com apelo comercial fazem sucesso, mas o underground precisa ter espaço, porque não vão colocar uma banda punk pra fazer trilha da novela das 21h - o pessoal não iria entender! Quer fazer música de novela, vai pra novela; se quiser tocar punk, vem aqui.


JR e seu 92 se transformaram em verdadeiras instituições dos mundos punk curitibano, nacional e internacional, uma vez que ele já produzia shows com bandas de fora e aproveitava para botar o pessoal da cidade para abrir os eventos: Selecionava quem traria e já dizia: ‘vocês vão tocar com uma banda de São Paulo; vou trazer umas dos Estados Unidos e vocês vão abrir’. Já colocava os piás no mapa e mandava ensaiar. Nossa, a piazada ficava louca [3]!


O pessoal do NMT realmente ficou louco. Os caras tocaram no 92 mais de 80 vezes ao longo de sua carreira. O show de lançamento do livro, como não poderia deixar de ser, foi lá também. Mais do que contar uma história cronológica da banda, o livro procura costurar a trajetória do No Milk Today nos processos de formação da cena musical independente da cidade. Uma trajetória que, se teve no 92 uma espécie de referência, nasceu, contudo, nas escolas da cidade.


Os integrantes do NMT frequentaram colégios tradicionais da capital paranaense, parte de um grupo social que vivia uma realidade econômica bem diferente daquela dos primeiros punks brasileiros. Se, em São Paulo, o punk aparece no início da década de 1980 atrelado a uma identidade operária, em Curitiba ele surge como máquina de protesto e extravasamento de meninos e meninas da classe média que se conheceram nas salas de aula de escolas particulares da cidade. Foi assim que alguns dos integrantes se conheceram e foram nos festivais musicais desses colégios que a banda fez suas primeiras apresentações [4].


O espírito que anseia a liberdade está escancarado nas primeiras composições da banda. Em Liberdade Limitada, uma canção que tocam até hoje nos shows, observamos essa vontade de ser livre por meio de uma crítica ao sistema (que sistema é esse, o ouvinte decide), marca registrada do punk global:


O que é certo é certo o que é errado é proibido/Sensação infeliz de estar sendo controlado/Pelo que já está estabelecido/Faz-se alguma coisa diferente, mas é muito pouco/Se é pra controlar então bota lei em tudo/Atitude coordenada, ideia censurada/Manifestação contida, liberdade limitada.


Apesar da cena punk ter se multiplicado em Curitiba na década de 1990, a banda se apresentava esporadicamente, com seus integrantes dedicados a outros projetos. Porém, a situação muda em meados de 1997 quando Rodrigo, guitarrista e vocalista, assume o centro acadêmico de Engenharia Florestal da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e cria o evento Fim de Tarde na Floresta.


Com um casarão liberado para um público jovem que não tinha muitas opções de diversão nas redondezas do bairro Cabral, dentro do campus em que se situava o curso de engenharia florestal, o local virou um point anárquico na cidade. E o NMT aproveitou para fazer seus shows. Mauricião, baixista e vocalista, nos contou que nos shows na floresta: começou a surgir o som; não era ainda a formação que se solidificou depois de 2000, com o Neto, mas já era o No Milk.


Dudu Munhoz, baterista dos Pinheads, antológica banda de punk/hardcore de Curitiba e camarada do pessoal do NMT, comentou conosco que, nos eventos da floresta, “tava todo mundo em casa”. Nesse clima caseiro e familiar, a banda consolidou seu estilo musical e fincou seu nome no panorama do punk curitibano.


E assim, suas músicas tornaram-se hinos. Um feito que apenas 25 anos de história poderia propiciar. Uma trajetória que se deve a intensidade dos vínculos que o quarteto costurou ao longo dessa bodas de prata, amizades tão longas e fortes que desembocaram em uma vida que se fez pelo punk/rock/hardcore.


Depois da primeira demo, em 1998, intitulada 4 Years 4 That?!, distribuída em um saquinho de leite cheio de bolinhas de isopor, os membros do NMT foram convidados para participar da coletânea Lototol. Com 26 bandas do punk rock, a arte gráfica da Lototol remetia a uma caixa de remédio, como forma de sugerir que aquele som agressivo poderia ser uma alternativa ao mundo bundão do capitalismo pop.


Já em 2001 a banda realizou mais dois registros em CD. O primeiro foi a participação na Coletânea 92⁰, em comemoração aos 10 anos do boteco do JR, e o segundo foi o primeiro álbum da banda, Devolvam meu vinil.


Mandamos prensar o Devolvam meu vinil na Grande Garagem que Grava, e quando mandaram a prova para o Mauricião, ele decidiu aprovar sem mandar pra banda e, também, sem ouvir! Aí vieram as cópias prontas e “tesão, vamos ouvir antes de vender!”. Quando demos o play percebemos que Garota Junkie foi mixada errada em uma das pistas e perdemos todos os discos! [Rodrigo, guitarrista e vocalista].


O tempo entre os shows, o tempo entre as gravações dos álbuns - até hoje a banda tem apenas quatro trabalhos (4 Years 4 That?!, Devolvam Meu Vinil, Tormento e Coturno Bastardo) nunca os afastou. Pelo contrário, manteve a leveza da relação entre eles, que se tornaram cada vez mais amigos: A gente chega e escuta a ideia de alguém e pensa “isso vai ficar legal”, aí grava o trecho, tem um monte de começos gravados assim. [Cabelo, baterista].


Nesses anos, o tempo abrandou o som hardcore das primeiras músicas, deixando-o mais perto do punk rock tradicional. As letras começaram a ser escritas em português, gerando maior afinidade com o público. Aliás, uma das marcas do NMT é a passagem das músicas entre as gerações, pois as composições tratam das ruas da cidade, da insatisfação com o cotidiano, de ser você mesmo, assuntos que nunca perdem a validade e ainda contam com a identificação regional.


Mais do que uma música legal de se escutar, que pode dar um ânimo enquanto dirige pro trabalho, uma descarregada na volta pra casa e que se ambienta muito bem em botecos, a banda retrata uma cidade além do tempo. São lugares, situações, personagens que até hoje estão presentes em Curitiba.


A discografia do NMT é uma junção dos temas clássicos do punk com as singularidades curitibanas, na língua em que todos possam entender e cantar. E eles têm prazer em fazer isso, uma banda punk pra curtir o momento, a música, com coragem suficiente para deixar os poros do corpo abertos a tudo que vem de fora.


Créditos:Eve Ramos

Entre 2002 e 2003, a banda ganha projeção nacional e internacional. Participaram de uns 30 shows, da gravação do National Garage, tocaram com Replicantes, Inocentes, Misfits, Marky Ramone, Ratos do Porão, Garotos Podres, Beijo AA Força, Rasta Knast, até subir no palco da Pedreira Paulo Leminski.


Com o advento da internet e a consequente ampla distribuição de músicas via MP3 e streaming, muitas gravadoras e diversos selos menores viram sua receita diminuir sistematicamente, ao passo que o consumo de músicas crescia muito. Para a banda, o impacto foi positivo já que nunca foram comerciais, e também porque abriu mais um canal de divulgação do trabalho, permitindo alcançar novos ouvintes e renovar o público da banda.


“Os nossos shows mais legais são os que a gurizada vai, pois tem novos fãs. O público renovou. Os velhos não vão. A gente compreende, também não vamos nos shows das bandas deles.” [Mauricião, baixista e vocalista].


Ao completarem 20 anos de história, organizaram a No Milk Fest, um dia inteiro dedicado a celebrar as amizades, o punk rock e os encontros, com direito a uma cerveja especial, a Resistência, uma stout produzida com lactose e que foi o maior sucesso da festa. Desde os tempos da Floresta, se não há festa, então que se faça a festa. O No Milk já tocou com nomes internacionais e pequenas bandas, em bares, pubs, teatros e na Pedreira, e mantém em si o desejo de participar de uma cena underground: Minha saudade da banda é de confraternizar (...) um chega com uma frase, outro completa e isso ajuda, de certa forma, a ficar todos juntos. Não é trabalho, é diversão. [Neto, guitarrista].


Vida longa ao No Milk Today! Banda que mostra, quase involuntariamente, como um estilo estético tão ríspido como o punk também é, talvez sobretudo, gregário. O punk critica, e essa critica une quem a empunha.



NOTAS


[1] A ideia de Curitiba como uma “cidade modelo” para o restante do Brasil surgiu, conforme aponta Dennison de Oliveira, a partir dos supostos sucessos dos planos urbanísticos elaborados pela administração municipal desde a década de 1960. Para uma ampla discussão sobre o tema ver OLIVEIRA, Dennison. (2000), Curitiba e o mito da cidade modelo. Curitiba, Ed. da UFPR.


[2] A banda se autointitula de “punk rock dos pinheirais” [2] fazendo referência direta ao nome da cidade. No século XVIII, a então Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais passou a se chamar Curitiba, palavra indígena para a quantidade de pinheiros presentes na região.


[3] Piás são meninos no Paraná, especialmente em Curitiba. Piazada é a moçada. Expressões essas amplamente usadas por jovens urbanos ainda hoje.


[4] É importante salientar, contudo, que a cena musical punk e metal em Curitiba não se restringia aos colégios particulares. Entre o fim da década de 1980 e o início da seguinte, aconteciam muitas festas punk e metal em clubes e discotecas distantes do centro da cidade. Os bairros tinham cenas próprias que começaram a interagir por meio das possibilidades que o transporte público oferecia. É só aí que observa-se a constituição de pontos de encontro centrais dos punks e dos headbangers na cidade, como a Praça Afonso Botelho (mais conhecida como praça do Athletico), o TUC (Teatro Universitário de Curitiba), os bares Lino’s e 92º, e principalmente o Largo da Ordem e o Calçadão da rua XV.



Juliana Eloi Viera é formada em Publicidade e Propaganda, com especializações em: Comunicação e Estratégica para a Sustentabilidade Empresarial, e Transformação Digital de Negócios. É especialista em tendências e jornada do consumidor e atua como estrategista de conteúdo e planejamento de marketing e comunicação.

Contato: https://www.linkedin.com/in/julianaevieira

Leonardo Carbonieri Campoy é Doutor em Antropologia pela UFRJ e professor na PUC-PR.

Contato: leocampoy@gmail.com

Fabrício Forcato dos Santos é Graduado e Mestre em História pela UFPR.

Contato: fforcato@gmail.com

Como citar esse texto: VIEIRA, Juliana ; CAMPOI, Leonardo & SANTOS, Fabrício. (2020), "As crianças nunca vão parar de cantar: A história do No Milk Today". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/08/01/AS-CRIANCAS-NUNCA-VAO-PARAR-DE-CANTAR-A-HISTORIA-DO-NO-MILK-TODAY

Editora Responsável: Simone Gomes



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