UM CATÁLOGO SUBJETIVO DE LEITURA: INDICAÇÕES DE ESCRITORAS BRASILEIRAS CONTEMPORÂNEAS
Foto: Fernanda Gomes
Tenho a sensação que uma das coisas marcantes da minha geração é o fato de que boa parte das meninas de classe média eventualmente dão de cara com o feminismo. E o feminismo traz inquietações e pequenos incômodos. Esses incômodos, que começam como sussurros desagradáveis, perturbam, porque tocam no que entendemos, como entendemos, o que somos e o que fazemos. Interfere no nosso senso de certo ou errado. Fala sobre controle das nossas ações e da falta dele. E, acima de tudo, desafia a mudanças.
A depender de como você conhece o feminismo, esse incômodo vem junto de raiva, frustração. Porém, ele também vem com um certo alívio. Você descobre que em alguns casos os acontecimentos realmente não são sua culpa. Não, você não era maluca por se sentir mal com o que seu ex fez, ou seu chefe ou seu tio. Quando esse tipo de coisa faz sentido para você, é muito provável que você comece a se interessar mais pelo assunto. Que converse com as pessoas, leia textos em blogs, artigos acadêmicos, procure as feministas mais famosas, se anime e depois desista de ler O Segundo Sexo, para só então descobrir que, caramba, é uma questão estrutural, então? E como se muda uma estrutura? Você olha para trás e a história te mostra que muita coisa mudou sim, mas muita coisa permaneceu. Mulheres negras continuam cuidando dos filhos de mulheres brancas, mulheres brancas continuam sendo criadas para serem princesas, homens negros continuam sendo acusados de estupro e roubo, enquanto os homens brancos estupram, roubam e continuam mandando e ditando as regras do mundo. E “mundo”, nessa sentença, tanto faz se em sentido literal ou figurado.
É aí que você é provavelmente invadida por um mar de desesperança: você realiza que sozinha não vai mudar nada. Pior! Você entende que acabou de brigar com uma das suas melhores amigas por causa de um cara. Você lembra que, noite passada, você ficou muito ofendida porque seu namorado não quis transar com você. Você sabe que já fingiu orgasmo, e fingiria de novo para agradar ou só para se livrar dessa ou daquela transa. Então isso é estrutura, você pensa. Então, junto da desesperança, vem a sensação de impotência. Desânimo, abatimento, derrotismo, letargia, inércia. Às vezes esse sentimento te domina e você desiste dessa história toda de feminismo, às vezes você só segue a vida, sendo legal com uma mulher aqui, outra ali, brigando com um parente machista ou outro nos almoços de família. Mas às vezes, também, ou paralelo a tudo isso, você se organiza e/ou começa e fazer pequenas mudanças na sua rotina, no seu modo de estar no mundo. Você começa também a querer mudar suas referências, suas influências.
Foi assim que resolvi, por um ano, ler apenas mulheres. E foi um ano que mudou meu jeito de ler e, principalmente, meu critério ao escolher livros. Podemos dizer que fiquei viciada nesse “novo ponto de vista”. Viciada! Nada mais fazia sentido. O presente ensaio, que chamei de um catálogo subjetivo de leituras, é sobre minha atual obsessão: escritoras brasileiras e contemporâneas (ou quase). Antes de tudo, vale fazer um mea culpa, pois a maioria das autoras citadas são brancas. Acho que usar o termo “racismo estrutural” já me salva dessa falta política, mas também vale ressaltar meu desejo por escrever um texto só sobre minhas autoras negras preferidas. O que é particularmente mais difícil para mim, pela proximidade autor-objeto.
O texto vai seguir a estrutura que o título propõe: um catálogo subjetivo. Vou misturar minhas histórias e reflexões pessoais a comentários sobre os livros em si - com um pouco de sinopse talvez. Talvez. O formato foi escolhido pelo entendimento que algumas leituras podiam ser naturalmente conectadas e outras não. Queria, também, ressaltar meu desejo de incluir mais autoras. Quanto mais escritoras eu escolhia para comentar, mais pensava que outras eram indispensáveis. Tenho uma lista ainda maior de sugestões que precisei ignorar para simular um fim para esse ensaio.
Espero que gostem.
Maria Valéria Rezende
Quarenta dias
A Maria Valéria Rezende me conquistou com Quarenta dias. O livro é sobre a Alice, uma mulher de meia idade que, para fugir da relação frustrada com a filha, vai dar um passeio pelas ruas de Porto Alegre e permanece nelas até completar quarenta dias. Durante esse tempo, ela conta suas experiências, explica onde dormia, descreve os outros moradores de rua e as ocorrências do passado que “levaram ela até ali”. Tudo com uma visão muito bem humorada que é registrada pela personagem em um caderno da Barbie. Aliás, a Barbie é a principal interlocutora de Alice. Às vezes, inclusive, Alice inveja alguns atributos da Barbie. Para além disso, o livro, como tantos que têm uma protagonista Alice, faz uma brincadeira com Alice no país das maravilhas de Lewis Carroll.
Talvez, o maior defeito de Quarenta Dias seja um tico de glamourização da vida de quem mora na rua. Mas, apesar disso, eu gostei muito. É daquele tipo de obra que dá dó de terminar e que você fica querendo ler as referências ou outros livros da mesma autora. No meu caso, segui as referências. No começo de cada capítulo, Rezende apresenta uma ou mais citações de escritoras variadas. Uma das que mais me chamou atenção foi a de Elvira Vigna: “... é assim. você quer alguma coisa e vai. mesmo que não faça o menor sentido. mesmo se você para no meio, espantada, repetindo na cabeça tudo que existe para não continuar. e mesmo se estiver chovendo.” (p. 175) Desse jeito mesmo, tudo em letra minúscula. Por causa dessa frase, digitei “Elvira Vigna” em um site de busca e li praticamente todos os livros não infantis dela. Escolhia os livros pelos títulos (os mais legais do mundo!), imaginando em qual deles estaria o trecho que tanto me incitou. Assim começou minha fixação pela Vigna.
Elvira Vigna
Nada a dizer
Por escrito
O que deu para fazer em matéria de história de amor
Coisas que os homens não entendem
Deixei ele lá e vim
Como se estivéssemos em um palimpsesto de putas
Sete anos e um dia
O assassinato de Bebê Martê
Às seis em ponto
A um passo
Acho que comecei por Nada a dizer ou Por escrito, depois me encantei com o título (e o texto) de O que deu para fazer em matéria de história de amor. Afinal, relacionamentos são sempre sobre “o que deu para fazer”, né? Aí vieram Coisas que os homens não entendem, Deixei ele lá e vim e Como se estivéssemos em um palimpsesto de putas, que foi lançado nesse meio tempo e até hoje lamento porque não fui em nenhum evento dele. Por último, li uns mais difíceis de achar, na verdade, só encontráveis em sebo: Sete anos e um dia, O assassinato de Bebê Martê, Às seis em ponto e A um passo.
Eu tenho um problema com a Vigna. É aquela coisa de quando você encasqueta com uma escritora: tudo dela me interessa, me move, me anima. Eu li tanto que já não sei qual livro fala exatamente de qual assunto, mas não consigo não enumerar todos os que têm na minha estante (acabei de dar o click final na compra do Kafkianas, o único que me faltava). As narrativas das obras têm uma semelhança e mais ou menos o mesmo tipo de protagonista e cenário. Assim, só consigo tratar da autora de maneira geral, até chegar o momento de reler todos os livros atenta aos detalhes, comparando aos pouquinhos. A exceção disso é Palimpsesto, que não foi o último dos que li, mas me marcou por ter uma personagem viciada em Magic (sabe, o joguinho) e que trabalha como prostituta. Ela, o filho e o protagonista do livro moram em um prédio desses sem elevadores em Botafogo. A personagem encontra o protagonista e eles conversam pelos corredores, compondo diálogos que são sempre muito interessantes. Apesar da mulher ser uma personagem secundária, suas características ajudam a dar ideia do tipo de universo que Vigna cria. A autora transita entre São Paulo e Rio de Janeiro, com seus personagens de meia idade, às vezes até idosos, com filhos adultos e netos. Todos meio de classe média, mas sem orgulho ou vergonha disso. Os personagens da Vigna não têm lá muita vergonha. Eles são complexos em suas questões, ainda que não façam julgamento moral sobre si.
Para além disso, tem uma coisa que eu gosto muito no jeito que a Vigna constrói as narrativas: ela vai e volta. Afirma, depois nega, conta a mesma coisa duas vezes de maneiras diferentes. Os fatos não são estáticos porque ela usa a percepção e a memória dos personagens – coisas que estão sempre em movimento né? Em uma entrevista ao blog da Companhia das Letras, a autora explica como ela gosta de montar “estruturas narrativas encavaladas” que enunciam uma história para ver se você entende a própria história do narrador. Esse por sua vez, a conta duvidando, às vezes, da própria história. Esse é um formato que inclui o público, faz o leitor trabalhar para entender o que está acontecendo, sobretudo porque os livros sempre começam um pouco caóticos.
Dou três dicas sobre como ler Elvira Vigna. A primeira é começar pelos livros mais novos, que eu particularmente acho mais interessantes e ousados nos temas e no estilo de escrita. A segunda é não desistir da obra nos primeiros capítulos, porque pode demorar um pouco para a narrativa fazer sentido (mas nada muito alternativo como Hilda Hilst, relaxem). A terceira é assistir as entrevistas dela. Essa última não é sobre lê-la, na realidade. É sobre amá-la.
Carola Saavedra
Flores azuis
O inventário das coisas ausentes
Toda terça
Paisagem com dromedário
Com armas sonolentas
Carola, meu Deus, a Carola.
Ela chegou na minha vida pela própria Vigna. Em uma entrevista, Vigna comentou que uma das coisas mais delicadas que ela tinha lido naquele ano era Flores azuis da Carola. Elvira frisou a doçura que Saavedra narra a relação entre pai (divorciado da mãe) e filha (cada vez mais distante desse pai). Eu tinha que ler esse livro, pensei. E li umas duas ou três vezes. O tal pai é uma espécie de protagonista. Ele tem uma relação complicada com todas as mulheres da vida dele, incluindo a filha de uns 6 anos. Ao mesmo tempo que não entende, esse homem tem medo delas. Uma certa implicância talvez. Ele começa, então, a receber cartas escritas por uma mulher desconhecida, direcionadas a um homem que ele também desconhece e falando da relação conturbada deles. O que impressiona no livro é a vulnerabilidade da autora das cartas, e não posso deixar de comentar, como é triste ser uma mulher heterossexual.
Flores Azuis, com um feminismo que não considero bem um feminismo, me deixou alucinada e fui procurar outros. O inventário das coisas ausentes, Toda terça e Paisagem com dromedário são livros sobre ausências. Tratam do que as pessoas fazem consigo mesmas em momentos de perda ou nos quais estão perdidas, mas também se achando. Já o Com armas sonolentas, último a ser publicado, tem outra pegada. Ele conta a história de 3 mulheres, 3 gerações de mulheres que estão em situações e lugares do mundo completamente diferentes, conquanto se complementam e contam a história uma das outras, a partir das próprias trajetórias. Em uma entrevista do Bondelê, canal no Youtube que só entrevista escritoras mulheres, Carola relata para a entrevistadora/escritora Anna Monteiro que o livro pretende, primeiro, falar sobre a relação entre mães e filhas, que tem pouca representação nos cânones da literatura, das heranças deixadas por e para cada geração. Nas palavras dela, o livro é “Um romance de formação a partir do tornar-se mulher.”
Veronica Stigger
Opisanie swiata
Até onde eu sei, a Veronica Stigger é mais conhecida por escrever contos, mas resolvi ler o romance dela, porque não gosto tanto de contos e porque, bom, estava na promoção. É a segunda vez que pego um romance de um “autor contista” e me arrependo (o primeiro foi A Narrativa de Arthur Gordon Pym do Allan Poe). Opisanie swiata é um livro que beira o surrealismo, beira as histórias de pescadores. É a história de uma viagem que um pai polonês faz para encontrar o filho doente no Brasil, na Amazônia. Como um praxe nos livros de viagens, tem personagem que aparece de maneira quase aleatória e histórias um pouco esquisitas. A trama é ambientada principalmente dentro de um navio e tem várias vozes. A narrativa também se alterna, às vezes em carta, às vezes em primeira pessoa, e às vezes com narrador externo e imparcial.
Giovana Madalosso
A Teta Racional
Embora eu não goste muito de contos, A Teta Racional, de Giovana Madalosso, já me agradou pelo título. Eu tenho essa coisa com títulos. O deste livro também dá nome a um conto igualmente interessante sobre uma mulher que voltou a trabalhar amamentando. Uma das características que amei na obra inteira é que a maternidade aparece de maneira natural e sagaz. Já no primeiro conto, a autora narra a rotina de uma puérpera intercalando as ondas de emoção do período com as lembranças do modo que aquela criança foi concebida. Todos os demais textos seguem essa linha: uma subjetividade feminina muito atual, que entendeu aquele pontinho crítico, extremo, dos pequenos, grandes, explanados e escondidos desesperos do dia a dia. A impressão que eu tive é que Madalosso é aquela amiga que entendeu tudo e vem conversar com você no mood sincera e bem humorada, falando tudo que você precisa ouvir, ao mesmo tempo que te faz rir dela e de si mesma.
Ana Maria Gonçalves
Um Defeito de cor
A Ana Maria Gonçalves conta grandes fatos da história do Brasil sem perder a dimensão do interior das personagens e das casas, sem deixar de lado o aprofundamento nas existências pessoais. E é exatamente isso que me encanta no modo como ela narra. Um Defeito de Cor entrou na minha trajetória em um momento em que eu estava em negação em relação a muitas questões. Como vivi sempre em uma realidade de classe média, cercada apenas de pessoas brancas, não falar sobre racismo era um modo de estar fora do conflito e junto aos meus amigos de infância. Quando ganhei o livro (de um homem branco, padrasto do meu ex namorado), pensei “que clichê”, uma obra sobre escravidão para uma menina negra. E claro que não podemos negar que foi um clichê, mas também foi um presente bastante carinhoso de um progressista que via muitas falhas em meu discurso pouco politizado. No momento em que ganhei Um defeito de cor, então, o deixei de lado. O click para lê-lo veio do que já contei aqui: a promessa de ler apenas mulheres por algum tempo. E, claro, me recusei a ler apenas mulheres brancas. Assim, depois da Clarice, Woolf e Beauvoir, iniciei a leitura de Gonçalves.
Um defeito de cor é um livro complexo, com muitas e muitas nuances e possibilidades. Ele conta uma história que é baseada, ou inspirada, na trajetória de Luísa Mahin. Luisa, a dona da porra toda, tão difícil de descrever. Uma mulher que foi escrava, abolicionista, quituteira, escrava de ganho e mãe de Luiz Gama, também importante abolicionista. A obra, porém, não é uma biografia. Ela se faz de autobiografia, diário e epístola ao filho, mas, ao mesmo tempo ela é romance e relato histórico. Ana, na voz de Luisa, conta parte da história do Brasil. Uma versão, contudo, pouco divulgada que não começa em Portugal, nem como uma aventura de homens brancos. A narrativa começa com uma das marcas mais significativas da formação nacional do país: a violência. Essa violência é contra uma comunidade africana, representando tantas outras, contra as mulheres: estupro, rapto, assassinato. O texto já começa pesado. Lembro que chorei muito lendo esse início. Mas Um defeito de cor é muito mais que uma reunião de sofrimentos tão conhecidos por muita gente. Ele é reflexão, memória sobre o passado e estratégia.
O livro começa banhado em sangue, assim como a história dos brasileiros, assim como qualquer história de colonização. Ana Maria não deixa de fora os momentos de alegria, paixão, de resistência. Nesse relato histórico entram também pequenos acordos ou desacordos, intimidades. Entram lutas de grande dimensão, como a Revolta dos Malês, ou os enfrentamentos cotidianos que uma escrava bonita e jovem às vezes tinha que travar com uma sinhá amargurada, cruel - psicopata, eu diria - e vingativa. O texto também traz questões muito atuais como as crises que uma mulher negra, a própria Luísa, protagonista, pode ter quando tem um relacionamento afetivo/romântico com um homem branco (no popular, sobre palmitagem - ou mulher negra não palmita?). Uma crise minha também, devo confessar.
Eliana Alves Cruz
O Crime do Cais do Valongo
Água de Barrela
Aproveitando o mote “história do Brasil contada a partir da ótica de uma mulher negra”, precisamos lembrar da Eliana Alves Cruz que escreveu O Crime do Cais do Valongo (que não gostei tanto) e Água de Barrela. Ambos romances históricos. O Crime, é um romance histórico-policial que gira em torno de um assassinato. Ele conta com elementos como recortes de jornal ou personagens com características bastante progressistas, como a de uma mulher escravizada que sabia ler, mas escondia isso dos brancos, também um “mulato”, que circula entre o mundo dos senhores e dos trabalhadores, pois ele é “quase branco”, como disse um personagem. Já no Água, Eliana escreve com base, principalmente, em casos que ouvia de uma tia esquizofrênica. Ela conta, no final do livro, que as coisas que a tia contava eram, no geral, ignoradas pela família. Porém, quando Cruz começou a remexer alguns fatos e lugares verificáveis, constatou a veracidade de muita coisa dita nessas conversas. Assim, a autora iniciou uma pesquisa histórica mais aprofundada para complementar a narrativa da tia sobre as várias gerações de mulheres da própria família - que se mistura a história da família branca Tosta e de alguns outros personagens que aparecem nos livros de história dos colégios - e consequentemente conta a história do país.
O bonito desse livro é que ele conta a história de um Brasil também dentro de casa, dentro das intimidades das duas famílias e das grandes e pequenas manipulações dos brancos para manterem os pretos sempre em um lugar de submissão, de sombra. Assim, ao mesmo tempo em que mostra a vida privada dos personagens, a narrativa consegue demonstrar como algumas estruturas sociais são tão difíceis de mudar, a partir e por causa de ações, posições e vontades daqueles que não querem que nada mude e têm poder para tal.
Estreantes/Super desconhecidas:
Ana Squilante
Costuras para fora
Uma coisa que me encanta nos dias de hoje é a possibilidade da proximidade com as autoras que gostamos. Já fui respondida em redes sociais, de maneira muito amigável e às vezes até quase íntima, por algumas escritoras. Uma das mais queridas foi a Ana. Eu soube da existência dela em uma mesa da Flip. Não era uma das principais, e ocorria em uma das casas de editoras, tendo a Jarid Arraes como mediadora. O tema da apresentação era “sair do armário”, e eu sou especialmente obcecada por livros com personagens lésbicas ou bissexuais.
Squilante começou o evento lendo um trecho do livro que ainda estava escrevendo, o Costuras para fora. Na mesma hora pensei que precisava dele. Seria mais uma exceção na minha falta de apreço por contos. Adicionei ela no Instagram para acompanhar a publicação. Na época dos eventos de estreia, perguntei se haveria algum lançamento no Rio e ela disse que ainda não sabia, mas depois me mandou uma mensagem falando que estava enviando livros para os leitores interessados com frete grátis. Eu, ansiosa que estava, já tinha lido o livro e comentei que adorei. Também li vários dos contos fazendo uma associação com a voz da Hannah, personagem da Lena Dunham, na série Girls, pois achava a autora e a atriz se parecidas fisicamente. Ela me mandou um áudio falando: essa aqui é minha voz. Me senti querida e especial. Isso parece besteira, mas acho que, quem gosta de literatura, pode gostar desse tipo de anedota.
Em relação ao livro em si, é aquela coisa especial sobre ler uma menina da sua idade, que tem as mesmas referências que você, tem um corpo fora do padrão do jeito que o seu é, etc. Ler Squilante foi um conforto. Mesmo sendo uma menina branca, a autora criou personagens, que, assim como eu, não tinham coxas que cabiam em qualquer calça jeans, e que as amigas usavam 36, enquanto elas usavam 40. Eu, novamente em semelhança a uma das personagens, já fui embebedada em festa por algum cara babaca e já beijei amigas no carnaval sem saber direito o que aquilo significava. Os contos da Ana falam desse dia-a-dia e/ou das lembranças tão típicas de meninas (de classe média, talvez) da minha idade e geração.
Sabina Anzuategui
Luciana e as mulheres
A protagonista da Sabina Anzuategui, por outro lado, é um pouco mais velha e já enfrenta a maturidade mais aflorada e as experiências dos 37 anos. O livro Luciana e as mulheres fala de relacionamentos, principalmente dois: um com uma mulher mais velha, outro com uma mais nova. Apesar da diferença de idade não ser tão grande, sou menos de dez anos mais nova, as questões colocadas na narrativa são bem diferentes das minhas, mas não menos interessantes. A Sabina escreveu esse livro com frases curtas e precisas, que funcionam e trazem um ritmo (talvez ritmo seja a coisa que eu mais valorize em um livro) calmo, ainda que de modo algum monótono. Não foi uma obra que me arrebatou, mas eu não conseguia largar a leitura. Antes de dormir, eu me pegava pensando em questões trazidas pelas personagens, como, por exemplo, o que eu faria no lugar da Luciana quando tal coisa aconteceu? Será que a Melissa era realmente abusada ou já era algum sintoma da depressão? Sim, o livro fala um pouco sobre depressão, do ponto de vista de quem está de fora e traz questionamentos de como se deve agir.
A última coisa que quero falar sobre a Sabina Anzuategui é algo que, de alguma forma, retoma a questão das proximidade que a internet permite ter com os autores vivos e que pode interessar a quem gosta de escrever: Sabina tem um canal no youtube sobre escrita. Ele foi batizado com o nome da própria autora e fala tanto de processos de criação, abordando temas específicos como a invenção de um personagem, passando por dicas de rotina de escrita, até explicações sobre o mercado editorial em si.
Anna Monteiro
Granulações
Para começar tocando ainda na faixa etária das protagonistas, a do livro de Anna Monteiro, a Nina, é uma mulher de meia idade cosmopolita, uma paulista que mora no Rio de Janeiro. Granulações, que alterna a voz dela com a de Pedro, conta a história do romance dos dois. Do fim ao começo. Como a obra oscila nas vozes dos narradores, a gente tem acesso a brincadeira que Woody Allen faz em Annie Hall, de entender como cada personagem processa a mesma situação.
Além disso, Anna traz questões muito atuais, de relacionamentos modernos entre pessoas sem filhos, e, por isso, para mim, foi muito fácil me identificar com os personagens. Os dois. Um pouco mais com Nina, por questões de gênero, porque as demandas dela já foram as minhas em alguns relacionamentos que já tive. Coisas como esperar um certo companheirismo do parceiro que vá para além de momentos de encantamento ou me pegar sendo maternal de maneira inconsciente. Lembro, inclusive, de ter obrigado um ex meu a ler esse livro. "Olha Igor, esse Pedro é igualzinho a você". E claro que Igor não se identificou.
Por fim, acho interessante dizer que a Anna também tem um blog, o Bartiannas (Bart, o cachorro dela + Anna). O blog está um pouco desatualizado, o último post foi em 2018, talvez porque Bart tenha morrido. Mas na página dá para ter uma noção de como a Anna escreve. Ainda sobre a relação da autora com cachorros, ela conta, em uma entrevista ao meu amado canal no YouTube Bondelê, que o momento de passear com os cachorro é uma etapa crucial para a escrita. Nesses pequenos passeios, Monteiro relata que deixa as ideias virem de maneira mais livre, para então transformá-las em texto.
Versos (e também estreantes):
Aline Bei
O peso do pássaro morto
&
Stephanie Borges
Talvez precisemos de um nome para isso
Não sou uma grande leitora de poesia, talvez exatamente por isso eu tenha separado uma sessão para versos; por ser uma estranheza para mim. No modo que eu vejo, a escrita em forma de verso tende a se configurar em textos pequenos e intensos. Isso me deixa um pouco nervosa justamente por eles serem pequenos e intensos. Cada poema, cada pequena junção de frases, as pouquíssimas frases, me bate como um pequeno tiro e me tira de órbita por alguns minutos - quando o poema é bom, claro. E nesse processo, perco o ritmo de leitura.
Eu gostei dessas duas autoras, estreantes aliás, Aline Bei e Stephanie Borges, porque são poemas maiores, com um ritmo próprio, que li de uma vez só. Nos dois casos. O Talvez precisemos de um nome para isso, da Stephanie, foi o último que eu li e é um poema sobre cabelo. Ele tem 79 páginas e vai desde a composição química dos fios, passando por rituais diários de cuidado e pequenas discussões e ações relacionadas ao mesmo, até ao que a bíblia fala sobre cabelo. O que me interessou no livro é que ele é uma experiência estética, tanto pelo conteúdo quanto pela forma. Borges não faz questão de rimar e não escolhe só palavras pomposas (como o tipo de poema que eu gosto), mas nada aí se perde. A impressão é que ela faz experimentos com a forma dos versos, com as palavras em si, e por causa disso, para leitores mais tradicionais como eu, causa certo estranhamento. Assim, entendo esse livro como desafiante, mas de modo algum desagradável.
Já O peso do pássaro morto (devo ressaltar, eu amei ambos os títulos), de Aline Bei, é um pouco mais tradicional, se comparado ao livro da Stephanie, e talvez por isso eu tenha gostado mais. Também gostei mais do tema. O peso é um grande poema sobre perda. E sendo sobre perda, eu acabei acessando as minhas e chorando junto com a protagonista. Assim, o livro foi uma grande catarse. Lembro que segui chorando quando fechei o livro, como acontece quando a gente vê aqueles filmes que destroçam tudo por dentro. O peso é lindo e delicado, mas também pesado e poderoso. Qualquer pessoa que sofreu com a partida de entes queridos se identifica com facilidade.
Nestas breves linhas busquei dividir com vocês um pouco das leituras que mais me tocaram nos últimos anos. Espero que as sugestões possam estimulá-los e que os livros tragam tanta paixão a vocês, quanto trazem pra mim. Em outra oportunidade, continuamos com mais indicações. Boa leitura.
Fernanda Gomes é mestranda em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e pesquisadora do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA).
Como citar esse texto: GOMES, Fernanda. (2020), "Um catálogo subjetivo de leitura: indicações de escritoras brasileiras contemporâneas". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/06/17/UM-CATALOGO-SUBJETIVO-DE-LEITURA-INDICACOES-DE-ESCRITORAS-BRASILEIRAS-CONTEMPORANEAS
Editora Responsável: Marcia Rangel Candido