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  • Ábia Marpin

OS CATIVEIROS DE UMA HISTÓRIA MAL CONTADA: ABOLIÇÃO, EXCLUSÃO E OUTRAS TECNOLOGIAS DO RACISMO


Ilustração: FreePik



Hoje, 132 anos depois da lei imperial que aboliu a escravidão como regime de produção legítimo e legal no Brasil, a relação entre o Estado e a população descendente daquelas pessoas sequestradas em África e “libertas” do outro lado do Atlântico no gesto oficializado pela princesa regente segue como uma dança perversa. Um passo pra frente e dois passos pra trás na direção do reconhecimento da dignidade e da efetivação da cidadania das pessoas negras do país.


E é nesse momento também que estamos sendo acometidos por uma doença com virulência fatal e de amplitude global, até aqui inéditas aos olhos do terceiro milênio e da grande maioria de nossos contemporâneos. A situação universal de despreparo e readaptação das rotinas cotidianas, tanto na vida pública quanto na vida privada, ganha contornos nacionais a cada escolha política de gestão da crise, que não esconde nem seu escárnio generalizado nem suas inclinações particularistas no cuidado com a vida.


Diante desses dois fatos que reclamam seu lugar na história, um do passado e o outro do presente, é oportuno pensar sobre o futuro das promessas de liberdade, igualdade e fraternidade no que parece ser um tempo promissor para a reconfiguração da modernidade. Há algumas perspectivas por meio das quais se pode analisar o impacto da violência racista na sobredeterminação das vítimas da pandemia da contaminação de um vírus que, a priori, seria transmitido indiscriminadamente.


A primeira perspectiva é a dos números oficiais, que paulatinamente vêm demonstrando haver uma variável incontornável na intersecção entre (ao menos) classe e raça. Concordando com a informação destacada pelo ministério da saúde de que não há indícios técnicos de uma vulnerabilidade à contaminação específica para pessoas negras [1], mas discordando com seu argumento de que isso seria o suficiente para sustentar que estaríamos todos e todas expostas ao mesmo risco e à mesma mortalidade diante do Coronavírus, os registros da evolução dos efeitos nocivos do COVID-19 demonstram uma concentração em perfis demográficos muito específicos. Há ainda, segundo instituições de pesquisa e de cuidado com a saúde pública do país [2], uma patente e perigosa subnotificação e, segundo o comparativo com outros países [3], uma cobertura insuficiente dos testes - especialmente restrita para as pessoas com esses mesmos perfis. Com o Sistema Único de Saúde (SUS) especialmente sucateado nos últimos anos [4], sobrecarregada e despreparada para lidar com a urgência e a gravidade da situação e afetada por inclinações liberais e negacionistas diante de problemas sociais estruturais, a cobertura de saúde não tem priorizado o registro e divulgação sistemática de dados sobre raça/cor nos boletins epidemiológicos [5]. Ainda assim, com o avanço da doença, fica cada vez mais evidente que o racismo faz diferença aqui também.


Outra perspectiva é a do avanço do fascismo requentado no calor dos trópicos. Personificado na eleição do atual presidente da república, o sucesso do populismo da “nova” direita, que decalca modelos de supremacia descartando as implicações do eugenismo biológico e o transplantando para uma espécie de eugenismo expresso em posturas moralmente conservadoras, não pode ser compreendido sem a influência da mentira deliberada (fake news) e da omissão calculada (gestão algorítmica do conhecimento e da sensibilidade). Esse par e sua disseminação massiva e segmentada em redes de comunicação digitais têm alterado as percepções de mundo de todos e todas nós.


Para quem concorda e/ou é capturado por essa moralidade, a lógica parece bem simples, ainda que desafie reflexões mais racionais, pois faz com que as maiores vítimas dessas práticas subscrevam os danos “colaterais” da violência fascista como um mal necessário para alcançar um bem maior e aparentemente mais importante que o bem-estar comum, como a salvaguarda da família e o progresso da nação - ou melhor, de modelos muito restritos e excludentes de família e nação. O intelectual estadunidense Richard Wright, que viveu entre os anos de 1908 e 1960 e lutou contra o racismo, desde lá pedia cautela em deduzir que pessoas violentadas seriam compulsoriamente defensoras de ideais mais pacifistas e igualitários:


Não sustente uma atitude moderada em relação às favelas do South Side de Chicago. Lembre-se que Hitler saiu de uma favela. Lembre-se que Chicago poderia ser a Viena do fascismo americano! Dessas favelas lamacentas podem sair ideias que impulsionam a vida ou precipitam a morte, dando-nos paz ou nos conduzindo para outra guerra. (Richard Wright, citação em Gilroy, 2001:311)


Já para quem questiona, problematiza e/ou rejeita em algum grau a (anti)ética fascista, além de assistir a uma polarização que simplifica e vulgariza a arena política, a defesa da democracia, tanto em suas instituições tradicionais quanto em suas novas formas de debate e disputa virtual tem sido cada vez mais difícil e menos efetiva.


Uma terceira perspectiva pode ser melhor entendida se analisada através das lentes do conceito de necropolítica. Apresentando o conceito como uma tecnologia prioritária e típica para o governo de pessoas negras e para a deliberação sobre a dignidade e a vida como direitos humanos universalmente extensivo a elas, o filósofo camaronês Achille Mbembe defende que os limites da soberania política pode ser delineado nos contornos do poder e da capacidade de decidir quem pode viver e quem deve morrer (2017). A partir desse enquadramento o “e daí?” [6] do presidente e outras posturas de desprezo pela vida, ao passo que a morte aumenta entre grupos sociais específicos (aqueles dos pobres, das pessoas negras, moradoras de regiões suburbanizadas, em situação de rua, mulheres, idosos e outras condições degradadas e degredadas na nossa sociedade), podem ser mais inteligíveis, ainda que igualmente intragáveis.


Creio, contudo, que há significados que só podemos compreender se olharmos um tanto à diante da situação imediata. Pensando sobre a importância da data de hoje mas também sobre o que aconteceu depois do fato histórico, especificamente nos dias que se seguiram à sanção da Lei Áurea, outra perspectiva para entender a relação entre o racismo e a pandemia é a partir da tensão entre história e historiografia, naquilo que há de cíclico em seus encobrimentos e reiterações - e como isso afeta nossas interpretações e mobilizações diante de uma crise.


A extinção da escravatura, mesmo se considerarmos os atos estritamente legais, foi um processo gradual. Antes da abolição da escravidão enquanto sistema, houve restrições da escravização com a Lei Eusébio de Queirós (1850), a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885), que criminalizou o tráfico e o ingresso de africanos e africanas escravizadas, alforriou os filhos de mulheres escravizadas e os escravizados com 60 anos ou mais de idade, respectivamente.


A principal motivação para a abolição era um hoje mal disfarçado interesse em favorecer as negociações entre o império britânico e o brasileiro, que a exigia como condição para fazer trocas comerciais com o Brasil. Talvez por isso ela tenha sido batizada de Áurea, a lei do ouro. Louvada por uma determinada historiografia como uma redentora dos cativeiros e dos cativos do Brasil, a princesa regente assinou a lei junto de seu equivalente a ministro da agricultura e das relações exteriores [7], que acompanhou de perto os expressivos cinco dias de tramitação na câmara geral e no senado imperial, um prazo muito abaixo da média também para aquela época.


Entre 8 e 13 de maio de 1888, o projeto de lei foi apresentado, votado entre deputados, votado entre senadores, sancionado e publicado, mesmo que sob protestos de fazendeiros e de seus representantes, que reclamavam indenização por prejuízos e um investimento público para a importação de uma nova [8] mão de obra para as lavouras. O barão de Cotejipe, único senador publicamente contrário à lei, derrotado, disparou no plenário: “Portanto, a extinção da escravidão que ora vem neste projeto não é mais que o reconhecimento de um fato já existente. [...] Eis como considero a vantagem do projeto [9].” - e diretamente à Isabel: “A senhora acabou de redimir uma raça e perder o trono”.


Antes da ameaça se concretizar, uma das consequências do documento que determinou a abolição da escravização foi a criação de uma marca para estigmatizar as pessoas recém-alforriadas, que passaram a ser chamadas de os “13 de maio”, ao passo que as pessoas que legalmente estavam autorizadas a lhes escravizar, fazendeiros oligarcas ressentidos com o prejuízo de seu poder de exploração, passaram a ser chamadas de “republicanos de 14 de maio”.


No ano seguinte, o espírito republicano assombrou e derrubou a coroa, sem ter com aquelas pessoas anteriormente escravizadas nem com os ideais de cuidado da coisa pública (inscritos na etimologia do termo – res publica), de modo que a proclamação da república brasileira foi muito mais um gesto reacionário de insurgência contra a corte imperial do que uma sinal de indulgência com as vítimas da escravização. O debate girou em torno da proteção da elite econômica, que conquistou subsídios dos cofres públicos para a imigração de europeus, que seriam recebidos como colonos. A pressão para indenização foi tamanha que a saída encontrada para evitar o saque aos cofres públicos foi a queima dos arquivos em que estavam registrados os preços pelos quais os escravos tinham sido adquiridos por seus donos, de modo que se perdeu o poder de mensuração, fundamental para a compreensão do que a escravatura significa para nós. Rui Barbosa, à época ministro da fazenda do governo Deodoro da Fonseca, com aprovação do congresso nacional, foi quem ordenou a eliminação dos "vestígios", realizada, contudo, após sua saída do ministério já republicano, em 13 de maio de 1891. Hoje os governantes sequer querem se dar ao trabalho de queimar arquivos: evitam o dano futuro cortando a ameaça pela raiz, mal contabilizando as evidências da violência racista na pandemia.


Diante de algumas similaridades, talvez já expressas acima, uma forma de articular esse passado com o nosso presente é a partir do efeito que a pandemia tem causado no aviltamento da dignidade das pessoas negras e na supervalorização da economia como produtora de bens mais valiosos que a própria vida. Enquanto o auxílio emergencial - medida que visa proteger as pessoas mais vulneráveis socialmente ao isolamento, em sua maioria negras e pobres - é pago à conta gotas e desmoralizado publicamente - como se recebê-lo fosse sinal não de marginalidade, mas de malandragem -, um subsídio da ordem de trilhões de reais foi concedido como “ajuda” aos bancos e a grandes empresas de modo imediato, antes mesmo do acirramento da crise.


Segundo registro em ata, já em 1885 o Conselho de Estado insistia em eleger como prioridade um argumento muito parecido:


Os produtores deste país vivem na incerteza do dia de amanhã, não sabem com que elementos de trabalhos contém, nem até onde ser-lhes restringido o direito de uma propriedade, de que dimana a riqueza única do Brasil, consideram-se desprotegidos dos poderes públicos, precisam, antes de tudo, ter uma lei em que vivam para voltarem à segurança de ânimo indispensável a quem trabalha. (Paulino José Soares de Sousa, em reunião do dia 27 de agosto de 1885) [10]


Uma cena icônica dessa espécie de looping histórico, foi a visita do presidente da república, acompanhado de uma comitiva de empresários e ministros, entre os quais o da Casa Civil, da Defesa e da Economia, ao Supremo Tribunal Federal (STF), no último dia 7. Diante de uma mortandade que faz do Brasil o novo epicentro da pandemia, lá também a maior preocupação era proteger e salvar a economia. Enquanto em alguns estados até o sistema funerário entra em colapso [11], o problema prioritário para a equipe de governo era a morte de pessoas jurídicas [12].


O favorecimento dos mais fortes e o prejuízo dos mais fracos seria insustentável sem o uso da força. Não que o Estado já não tenha dado sinais muito explícitos de que está disposto à contenção da oposição por meio da violência física [13], contudo o poder de violências simbólicas e as ameaças das constantes intimidações até aqui tem sido o suficiente para evitar reações mais efetivas, enclausurando a mobilização política da maioria da população, seja por uma espécie de estarrecimento letárgico diante da sua crueldade em escalada vertiginosa, seja por ignorância ou má fé ao acreditar que essa violência é um sacrifício necessário e típico de situações extraordinárias em que é preciso fazer o mal para alcançar o bem.


É preciso considerar que há tempos distintos, mas sobrepostos:


Há no colonialismo uma função muito peculiar para as palavras: as palavras não designam, mas encobrem, e isto é particularmente evidente na fase republicana, quando tiveram que adotar ideologias igualitárias e ao mesmo tempo escamotear os direitos cidadãos a uma maioria da população. Deste modo, as palavras se converteram em um registro ficcional, torturado por eufemismos que velam a realidade no lugar de designá-la (Cusicanqui, 2010:19).


Não nos deixemos enclausurar pelo sentido da palavra inscrita em letra morta. Se os tempos são outros e o cenário mudou, a vacina e a chave para a libertação do cativeiro histórico segue sendo a defesa indiscriminada da vida humana e o zelo de guardar e bem contar as nossas memórias.





NOTAS


[1] Em nota, o ministério, já sob a gestão de Nelson Teich, chegou a afirmar que não há “estudos técnicos ou científicos que apontem cor ou raça como fator de risco da doença”. Fonte: <https://apublica.org/2020/05/em-duas-semanas-numero-de-negros-mortos-por-coronavirus-e-cinco-vezes-maior-no-brasil/>, acesso em 10 de maio de 2020.


[2] O COVID-19 BRASIL, grupo de pesquisadores brasileiros de mais dez instituições, tem feito o monitoramento e as análises da situação do Coronavírus no país. Investigações do grupo chegaram a estimar que o número de casos era 14 vezes maior do que o registro oficial, comparando dados referentes ao dia 4 de maio. Para mais informações: <https://ciis.fmrp.usp.br/covid19/>, acesso em 10 de maio de 2020.


[3] O número de testes por 1 milhão de habitantes é de 52.781 na Espanha, 26.969 nos Estados Unidos e aproximadamente 14.000 nos vizinhos Peru e Chile. No Brasil a taxa é de apenas 1.597. Compilação disponibilizada pelo COVID-19 BRASIL, com dados do Worldometers, em 10 de Maio de 2020, às 11 horas.


[4] O principal ataque foi a emenda constitucional conhecida como a PEC da Morte (PEC 241/2016, quando em tramitação na Câmara dos Deputados e PEC 55/2016, no Senado Federal), que congelou gastos públicos por 20 anos.


[5] Houve reações e mobilizações para incluir dados sobre raça/cor. Em 5 de maio a Justiça Federal do Rio de Janeiro determinou que os dados incluíssem obrigatoriamente a variável racial nos boletins epidemiológicos.


[6] Frase proferida pelo presidente da república em coletiva de imprensa dado no dia 28 de abril, quando uma jornalista o questionou sobre o Brasil ter ultrapassado o número de mortos da China. O país somava àquela altura um total de 5.017 pessoas mortas vítimas da pandemia, segundo dados do próprio ministério da saúde.


[7] Além de secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e secretário interino dos Negócios Estrangeiros, Rodrigo Augusto da Silva foi do Conselho do Imperador.


[8] Mais um indício da descartabilidade que era imputada às pessoas negras escravizadas.


[9] Annaes do Parlamento Brazileiro. Câmara dos Srs. Deputados. Terceira sessão da vigésima legislatura de 1888. Volume I. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1888 - página 34.



[11] Já desde 21 de abril, vítimas do Coronavírus em Manaus (AM) têm sido sepultadas em valas coletivas.


[12] Fala de um dos empresários presente na reunião, ainda não identificado.


[13] A atual gestão federal constantemente faz menções e ameaças de uma reedição ao Ato Institucional nº 5 (1969), o mais violento da ditadura instaurada em 1964 e que cassou direitos políticos da oposição, desmantelou o poder legislativo, recrudesceu a censura e os toques de recolher e inaugurou uma escalada de pessoas mortas e desaparecidas sob custódia do regime.



REFERÊNCIAS


CUSICANQUI, S. R. (2010). Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón.


GILROY, P. (2001). O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34.


GOMES, F. dos S. (2005). Negros e política (1888-1937). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.


MBEMBE, A. (2017). "Necropolítica. arte e ensaios", 2(32). Recuperado de https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169.







Ábia Marpin é pesquisadora da Escola de Direito da FGV-RJ. Doutora em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), mestra em sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e autora do livro “Luzes para uma face no escuro : emergência de uma rede afroalagoana” (2018).

Como citar esse texto: MARPIN, Ábia. (2020), "Os cativeiros de uma história mal contada: abolição, exclusão e outras tecnologias do racismo". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/05/13/OS-CATIVEIROS-DE-UMA-HISTORIA-MAL-CONTADA


Editor Responsável: Leonardo Nóbrega











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