YOU SHOULDN'T BE SEEING THIS: UM RELATO SOBRE O CORONAVÍRUS NO MALAWI

Acervo pessoal dos autores. Lilongwe, Malawi, 2020.
Há pouco mais de sete meses, nossa família deixou o Brasil para morar no pequeno e pouco conhecido Malawi, país localizado no sul da África, entre Moçambique, Zâmbia e Tanzânia. Viemos trabalhar como voluntários da ONG brasileira Fraternidade Sem Fronteiras, para apoiar um dos projetos mais recentes da organização, denominado Nação Ubuntu. Nossa função: dirigir uma pré-escola fundamentada nos princípios filosóficos UBUNTU, os quais, alinhados a propostas pedagógicas libertárias e transformadoras no âmbito da Educação Infantil, deram origem à recém-nascida UBUNTU NATION SCHOOL. Inaugurada em 17 de fevereiro de 2020, atendemos um universo de 184 crianças de 3 a 5 anos, a maioria das quais residentes no campo de refugiados de Dzaleka, existente há 26 anos no distrito de Dowa, Malawi. A escola estava alçando seus primeiros voos, enquanto o mundo todo fechava portas e suspendia a vida que conhecemos a nossa volta. Tardou, mas a pandemia finalmente mostrou os seus primeiros efeitos aqui no Malawi. Esse é o relato de nossas percepções sobre sua chegada, que vinha se anunciando devagarinho há alguns meses.
O Malawi foi um dos últimos países africanos e do mundo a anunciarem a presença (a esse ponto já inexorável) do famigerado COVID-19. O anúncio oficial, pronunciado pelo presidente Peter Mutharika, foi feito em 03 de abril, confirmando 3 casos na capital do país, Lilongwe. No dia seguinte, um novo caso foi confirmado na cidade de Blantyre, distante aproximadamente 300 km da capital, em um morador que havia retornado recentemente da Inglaterra. Transcorridos 4 dias do anúncio do primeiro caso, já tínhamos 9 confirmações de COVID-19 e a primeira morte, números inalterados até o dia em que escrevemos esse relato (10/04/20). Apesar da primeira notificação de casos ter ocorrido apenas no início de abril, o governo malawiano já havia anunciado estado de desastre no país desde o dia 20 de março, antes mesmo de começarem a testar a população (o que vem acontecendo em ritmo e proporção bastante insignificantes). Nessa ocasião, o presidente determinou o fechamento de escolas e universidades, a suspensão de alguns voos internacionais, a proibição de aglomeração superior a 100 pessoas, dentre outras medidas no sentido de promover a conscientização da população para a gravidade do problema. Essas últimas medidas, apesar de apontarem a prudência e a antecipação do governo, se afiguraram bastante inócuas e aí reside o verdadeiro problema e particularidade dos países africanos no combate ao novo vírus (será mesmo que isso ocorre apenas aqui?).

O Malawi é um país majoritariamente rural, com mais de 90% da população vivendo fora das cidades. Sua economia depende quase exclusivamente da agricultura, o que faz com que a grande maioria dos malawianos viva à parte daquilo que chamamos modernidade - televisão, celulares, rádio, Internet, eletricidade, saneamento básico etc. As medidas de contenção da doença, que com sucesso estão evitando alguns países do colapso geral, não são, portanto, aplicáveis aqui. Os mercados de rua são abarrotados de pessoas e mercadorias espalhadas pelo chão, sem qualquer vigilância sanitária; as igrejas são hiper lotadas de fiéis; os transportes coletivos (leia-se pequenas vans mal-ventiladas e caindo aos pedaços) carregam pessoas saindo pelas janelas; as casas, em geral minúsculas, comportam uma grande família de 8,9, até mais de 10 pessoas; os hábitos de higiene são muito limitados, especialmente porque a maioria da população não dispõe de água encanada e corrente, dependendo de buscar água no poço para realizar todas as tarefas cotidianas, como cozinhar, se lavar, limpar a casa, utensílios e roupas; o sabão em barra é artigo caro e, diante da pobreza massiva - mais de 50 % da população vive abaixo da linha da pobreza -, é comum dispensar o sabão nas rotinas de higiene. Cientes dos desafios locais, muitos dirigentes africanos têm adotado medidas bastante restritivas para tentar conter a crise em seus países, pois uma certeza todos têm: em caso de epidemia aqui, os sistemas de saúde - incipientes e desprovidos de recursos - não têm a menor condição de atender à demanda hospitalar dela decorrente. Em resumo, não há como prevenir eficazmente, tampouco há como tratar a população adoecida na proporção das experiências que temos visto mundo afora. Trata-se de um beco sem saída.
Por muito tempo, quiseram crer que a doença não estava aqui e que o país talvez fosse poupado, por um milagre qualquer, da grave crise que assola o mundo. "Graças a Deus, o vírus não chegou aqui" tornou-se uma frase corriqueira entre a população. Como se sabe, o problema da subnotificação é uma realidade de muitos países em outros continentes, não apenas na África, e o efeitos nocivos no psicológico coletivo são facilmente percebidos - sem notícias do vírus, muitos negligenciam as medidas preventivas e até denunciam certo exagero da parte de quem está levando o problema a sério. Refiro-me aqui apenas àqueles que poderiam se precaver adequadamente e ajudar a orientar os demais; de fato, para a maioria, sem o apoio do governo e de instituições sociais, esta não é sequer uma opção e isso se reflete nas ruas e vilarejos do país. Mesmo após o anúncio oficial do estado de desastre, as ruas de Lilongwe, mercados de rua, transportes, restaurantes, igrejas e zonas rurais estavam absolutamente como antes. Com o anúncio oficial de casos confirmados no Malawi, pouca mudança pôde ser notada no cotidiano das ruas. Apesar de uma série de novas medidas terem sido implementadas pelos governos, tanto a nível nacional quanto municipal, a disposição coletiva ainda permanece desconectada da urgência da prevenção. Por quê?

Ivanovitch Fotografias - Tuesday Market em Dzaleka, Malawi.
Bom, a principal razão reside nos severos impactos socioeconômicos de um lockdown e da imposição do isolamento social. O setor privado (aqui me refiro especialmente à maioria do setor, composta de uma economia informal de ambulantes de rua e de pequenos agricultores de subsistência) não pode se privar de trabalhar e ir à rua, por motivos elementares: a fome já é uma realidade antiga do país, e não apenas uma ameaça - as pessoas simplesmente não têm como escolher entre a fome ou a doença. Da doença, talvez se obtenha a cura. Da fome, se morre na certa. O principal problema da doença não é ela em si. No âmbito particular, cada um pode avaliar se está exposto a maior ou menor risco, dependendo da sua condição física e etária; na dimensão coletiva da doença, porém, reside o maior perigo - o da contaminação rápida e desenfreada do restante da população, inclusive dos grupos de risco. Avaliar esses aspectos na hora de assumir riscos pede um esforço analítico que não tem espaço nos quadros sociais onde a fome comanda. A fome não tem ponderação. É individual e urgente. Ativa os instintos mais básicos do ser humano e descarta todo cartesianismo. Ver seus filhos com fome é algo com o que não se consegue lidar. Ninguém escolheria isso.
Mas não apenas nos aspectos econômicos encontram-se os desafios para a contenção da epidemia. Há também fatores socioculturais que não podem ser negligenciados. Um importante elemento da vida social malawiana, que agrega muitas pessoas de uma vez, são os eventos religiosos: os cultos de domingo, os casamentos, os funerais. A fé aqui - como em outros locais de contexto similar - é central na vida da esmagadora maioria da população, e os hábitos de participar ativa e assiduamente da igreja (em geral pentecostal) compõem grande parte do que se denomina a vida cristã. Nos contextos de muita pobreza, a religião dá sentido às agruras da vida e força para seguir. Em Dzaleka, por exemplo, onde a pobreza se soma à sensação de dignidade roubada e falta de perspectiva no futuro, os cultos e os pastores conduzem todas as dinâmicas da vida social. Declarar e aceitar a pandemia, isolando-se das igrejas, significa também arrancar boa parte do que sustenta uma pessoa, já que a comida e a dignidade faltam. Além disso, não celebrar uniões matrimoniais e não prestar homenagem aos mortos é uma ofensa cultural grave. Um funeral no Malawi mobiliza o vilarejo inteiro, pode durar até mesmo uma semana, ninguém trabalha e todos os outros compromissos são cancelados.
Na contramão do espírito que domina a população local, seja pela força da fé ou pela urgência da fome, é digna de nota a reação de muitos estrangeiros, especialmente europeus. Na medida em que a situação foi se agravando, uma quantidade considerável de estrangeiros retornou a seus países, principalmente após o anúncio do iminente fechamento do espaço aéreo. Nos dias que antecederam os últimos voos de saída do país, representantes consulares de várias nações desaconselharam a permanência no país preocupados com a imponderabilidade do futuro no caso de avanço mais agressivo no COVID-19 no Malawi. Seria uma ação bastante razoável, não fosse o peso histórico de tal tipo de política de evacuação e, mais importante, a situação atual calamitosa de alguns destes mesmos países. Soa irônico convocar estadunidenses, franceses e espanhóis, por exemplo, a retornarem a seus países na conjuntura atual. Nós optamos por ficar.
Apesar de não temermos tanto por nós, pois temos condições de seguir as medidas de prevenção como manda a cartilha e, ainda assim, continuar colaborando com o projeto Nação Ubuntu (que não pode parar: estamos distribuindo comida in natura para todos os voluntários e famílias de alunos do projeto, além de sabão em barra), tememos pelos nossos amigos, colegas de trabalho, alunos e famílias da escola, pelas mais de 40.000 pessoas que residem em Dzaleka e pelos 18 milhões de malawianos espalhados pelos país. Sabemos que o Malawi, assim como muitos outros países africanos, já enfrentou e ainda enfrenta graves epidemias: AIDS (a população com HIV no país é uma das mais elevadas do mundo), cólera, malária. São frequentes também os problemas respiratórios devido ao uso indiscriminado de lenha/carvão, além de muitos outros problemas de saúde que acometem a população precariamente assistida pelo sistema médico. A população imunodeficiente é, portanto, considerável, o que eleva o risco de morte no caso de contração do COVID-19. Por outro lado, o Malawi também exibe uma das expectativas de vida mais baixas do mundo (média de 60 anos), o que torna o grupo de risco idoso consideravelmente inferior em relação aos países onde a doença tem se mostrado mais fatal. Isso pode ser considerado um aspecto positivo?
O fato é que o governo malawiano parece ter consciência da precariedade do sistema de saúde e da impossibilidade real de fazer frente à doença, seja no controle sanitário, seja na capacidade de recuperação econômica diante dos potenciais estragos que se avizinham. Aventou-se, a esse respeito, um possível encobrimento de dados por parte do governo, mas isso está no campo das especulações, em um contexto em que o país ainda se encontra mergulhado em uma importante crise política.
É importante saber, a esse respeito, que o Malawi conheceu recentemente uma grave instabilidade política a nível nacional, deflagrada após as eleições de maio de 2019 que reelegeram o presidente Mutharika. Manifestações questionando a validade do pleito presidencial tomaram o país até bem recentemente, quando a Suprema Corte declarou a anulação das últimas eleições e a convocação de novo escrutínio para 2 de julho de 2020. O Malawi é visto por alguns analistas como um país peculiar, consideradas as tendências autoritárias dos países vizinhos e a avassaladora crise da democracia mundo afora. O surpreendente profissionalismo de seu Judiciário e de suas Forças Armadas vem garantindo, ao menos desde o fim da ditadura de Kamuzu Banda, que governou por 30 anos até 1994, a sobrevivência da ordem constitucional contra inúmeros episódios de assédio à democracia por praticamente todos os presidentes que exerceram mandatos presidenciais. Neste cenário de crise institucional, em meio a eleições anuladas e crise econômica e sanitária globais, o país mais uma vez sai da curva e, sob o argumento de que "precaução é sempre sabedoria"(precaution is always wisdom), Mutharika anunciou, em pronunciamento do dia 04/04/20, medidas contracíclicas ousadas e inesperadas, tais como redução imediata nos preços dos combustíveis para desonerar o custo dos transportes, redução de taxas e encargos de transações monetárias eletrônicas para estimular o uso do meio digital e até mesmo uma redução dos salários do presidente da república, de todo o gabinete de ministros e deputados em 10 %, a fim de redirecionar esses fundos para o combate ao corona vírus.
Poderíamos certamente acusar o presidente de estar usando este momento como uma oportunidade de alavancar sua popularidade para as novas eleições que acontecerão em 3 meses. Mas apenas se o contexto fosse outro. Queremos crer que o que move o governo nesse momento é a certeza de que uma catástrofe ronda o país. Pode ser que seja apenas mais uma catástrofe na dramática lista de tragédias que assolam o continente, mas do ponto de vista político, é uma catástrofe de alta visibilidade. Em geral, não se contam os mortos das tragédias africanas. Quantos morreram nos surtos de ebola? Quantos morrem anualmente pelas complicações causadas pela AIDS em contextos de saúde pública precária, comuns, ambas, a todos os países da África Subsaariana? Não será esse o caso atual - ou será?
Ao mesmo tempo em que a doença evolui no planeta, trazendo a mensagem cada vez mais urgente de que é preciso uma união visceral entre os indivíduos, os povos e as nações para vencer a pandemia, representantes do mundo ocidental seguem manifestando o mesmíssimo pensamento colonial do século passado, que considera a África a lixeira do mundo e as vidas africanas de menos valor do que as dos demais seres humanos. Há apenas alguns dias, o médico francês Jean-Paul Mira, responsável pelo setor de reanimação do hospital Cochin, em Paris, em diálogo televisionado com Camille Locht, diretor de pesquisa do INSERM (Instituto de Saúde e Pesquisa Médica francês), sugeriu que se testasse uma nova vacina contra o COVID-19 em populações de países africanos, já que aqui « não tem máscaras, nem tratamento, nem reanimação ». Nenhuma surpresa nisso, seu infeliz comentário foi recebido com o assentimento da parte do diretor do instituto de pesquisa francês. Em outras palavras, entre os mais vulneráveis no combate à pandemia, o melhor que se pode esperar é tornar-se rato de laboratório de um pesquisador francês. E agradecer.
Infelizmente essa prática não é nova, tampouco original (você por acaso já assistiu o filme O jardineiro fiel?). Em Dzaleka, cerca de dez dias atrás, corriam boatos de que aconteceria um mutirão de vacinação contra o corona vírus. Entramos em contato com a ACNUR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados), através do responsável pela saúde em Dzaleka, que nos informou desconhecer essa informação. Rumores ou não, uma intensa campanha via redes sociais tem sido realizada no sentido de alertar a população africana para o perigo de uma vacinação espúria como essa, apelando a todos, especialmente aos governantes, que se neguem a aceitar tal acordo. Personalidades africanas, como os jogadores de futebol Didier Drogba e Samuel Eto'o, também lançaram seu apelo e repúdio às propostas de vacinação na África. Daqui, estamos todos de olho.
Um prognóstico, diante das particularidades do Malawi, é difícil de fazer, sem ser muito pessimista. O país, conforme anúncio oficial, já passou para o estágio 3, da contaminação local, aquele em que o controle se perde quase completamente em um contexto como o nosso. Novas medidas restritivas são anunciadas a cada dia. Caminhamos progressivamente para um lockdown total. Até em Dzaleka, sabemos que a possibilidade de fechar o campo existe. Campo de concentração. Em reportagem publicada pela BBC News Mundo no início de abril [1] noticiou-se que o Malawi possui apenas 25 leitos de UTI para a população do país inteiro. Milhares de pacientes com tuberculose, AIDS, malária, entre outros, ficarão desamparados diante de tal cenário. Como o país sobreviverá à tamanha crise? É a fé humana posta à prova. Mas aqui, eu garanto, essa fé é inabalável. São as pessoas daqui que nos passam mais confiança de que tudo isso vai passar e de que em breve vamos respirar sossegados de novo o ar que nos é comum. Sem medo, façamos a nossa parte. Por nós e por quem está mais vulnerável do que nós.
NOTAS
Como citar esse texto: VILLANOVA, Lilian; VOGT, Gabriel. (2020), "You shouldn't be seeing this: um relato sobre o coronavírus no Malawi". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/04/11/RELATO-DO-CORONAVIRUS-NO-MALAWI
Lilian Villanova é formada em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É professora de francês e voluntária da ONG Fraternidade sem Fronteiras no Malawi desde setembro de 2019, onde dirige uma escola de Educação Infantil para crianças refugiadas e malawianas.
Gabriel Vogt é licenciado em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Trabalha como voluntário para a Fraternidade sem Fronteiras no Malawi desde setembro de 2019, como coordenador do projeto Nação Ubuntu.
Editora Responsável: Luna Ribeiro Campos