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  • Ricardo Campello

VÍRUS E VERMES: COVID-19, POLÍTICA PENITENCIÁRIA E A REATUALIZAÇÃO DO LEPROSÁRIO


Sérgio Moro, Ministro da Justiça e da Segurança Pública, 2020 *



Profundissimamente hipocondríaco,

Este ambiente me causa repugnância…

Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia

Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —

Que o sangue podre das carnificinas

Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,

E há-de deixar-me apenas os cabelos,

Na frialdade inorgânica da terra!

(Augusto dos Anjos, Psicologia de um vencido)

Ao doente não era dada outra alternativa para seu tratamento senão submeter-se ao confinamento na colônia, não porque não existissem outras formas de tratamento, mas porque foi considerada a forma mais eficaz de obter seus fins, ainda que isso representasse uma espécie de morte para o leproso e para sua família.

(Débora Michels Mattos e Sandro Kobol Fornazari, A lepra no Brasil: representações e práticas de poder)



De alguns anos pra cá, movimentos sociais e pesquisadores têm se dado conta de uma das funções não anunciadas do sistema prisional: a produção da morte. [1] Se a prisão ainda é um mecanismo político fundamental de adestramento da vida, sua dimensão letal tem adquirido centralidade no interior de uma penalogia que já não se atém à fábula reabilitadora, passando a concentrar-se na eliminação social e biológica do sujeito considerado criminoso. Basta verificar os índices de mortalidade nos cárceres brasileiros, a frequência de suicídios nas unidades prisionais europeias e estadunidenses ou os níveis de disseminação de doenças altamente letais nos presídios africanos. Nos mais diferentes contextos político-penais, a prisão se estabelece como máquina de fazer morrer.


A resposta política ao avanço da pandemia de Covid-19 e à sua penetração nas prisões brasileiras é a expressão declarada da funcionalidade mortal conferida ao aparato carcerário por seus atuais gestores. A manutenção do confinamento de mais de 800 mil pessoas em instituições prisionais superlotadas, em pleno contexto pandêmico, recupera e atualiza uma das mais antigas técnicas de contenção epidemiológica: não o sistema de controle da peste, baseado no isolamento em quarentena, mas o modelo de exclusão da lepra, centrado na segregação orientada à morte. [2] As medidas até aqui adotadas pelos poderes Executivo e Judiciário em reação à proliferação do coronavírus no sistema prisional reafirmam o poder seletivo das autoridades de Justiça e Segurança Pública em decidir sobre aqueles que devem viver e os que podem morrer.


Chega a ser desnecessário elucidar as implicações da entrada do vírus Sars CoV-2 nas unidades prisionais do país. Entidades como a Pastoral Carcerária e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) sublinham a fragilidade particular à qual estão sujeitas as pessoas presas em um cenário de pandemia, uma vez que essas populações já possuem imunidade baixa, dadas as condições de encarceramento. Efeito disso é o fato de doenças como a tuberculose possuírem incidência 30 vezes maior nas unidades prisionais do que na sociedade em geral. [2] Como se sabe, as prisões brasileiras são espaços de aglomeração drástica, ventilação nula, insalubridade completa e atendimento médico precário. Ou seja, são verdadeiros pólos de disseminação do coronavírus, por dentro e para fora dos muros.


Frente à urgência de redução da população carcerária, o ministro Sergio Moro restringiu-se a editar normas de suspensão de visitas e posicionou-se contrário à soltura de presos e presas que não tenham sido condenados por violência ou grave ameaça. [4] Além disso, emitiu portarias definindo medidas como o isolamento de detentos com confirmação ou suspeita de Covid-19; a utilização de cortinas e marcações no chão das unidades para delimitar distância mínima entre os internos e a suspensão ou redução de reuniões religiosas ou de grupos de assistência. [5]


Para além da irônica instrução de distanciamento social no interior de presídios hiperlotados, qualquer gestor penitenciário teria ciência clara da inefetividade das medidas adotadas como método preventivo, uma vez que não implicam na redução dos contingentes populacionais encarcerados em instituições cuja taxa de ocupação varia de 150% a 500%. [6] A estratégia deliberada consiste, portanto, na pronta resignação ao contágio confinado.


No mesmo sentido, o poder Judiciário recusou-se a atuar de maneira sistemática para conter a transmissão do coronavírus nas prisões do país. O Supremo Tribunal Federal (STF) revogou um pedido de Amicus Curiae [7] realizado pelo IDDD, no qual a organização não governamental solicitava medidas específicas de desencarceramento em caráter emergencial. Alegando que a entidade não era um polo da ação, os ministros do STF ativeram-se a um formalismo frágil e derrubaram a liminar que previa a redução dos níveis de contaminação no sistema prisional.


Mas o modelo funesto de política profilático-penitenciária em reação ao vírus não é exclusividade das instâncias federais, sendo replicado por administrações estaduais. Conforme o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), 97% das unidades federativas adotaram como medida principal a suspensão total das visitas. [8] Em algumas delas, já há notícias de casos confirmados de Covid-19 nas cadeias. [9]


O Rio de Janeiro foi o primeiro estado a notificar a suspeita da doença no sistema prisional. Já no dia 16 de março, conforme publicado pelo Intercept Brasil, a direção da Cadeia Pública Milton Dias Moreira, na baixada fluminense, enviou um comunicado à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, informando a suspeita de quatro casos de coronavírus em detentos da unidade. Em resposta, o governo Witzel determinou que os internos que apresentavam os sintomas fossem isolados, mas permanecessem na unidade mais superlotada do estado. [10]


No mesmo dia 16, em São Paulo, a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP-SP) e a Corregedoria Geral da Justiça (CGJ-SP) suspenderam a saída temporária do regime semiaberto. [11] A decisão desencadeou a fuga de mais de mil presos dos Centros de Progressão Penitenciária (CPP) de Mongaguá, Tremembé, Mirandópolis, Porto Feliz e Sumaré. Após as fugas, uma série de denúncias realizadas por moradores de Mongaguá reportaram corpos encontrados nos arredores do CPP. Ao que indicam as denúncias, parte dos presos foragidos foram executados pelas forças de Segurança Pública. [12]


Em 24 de março, a Frente Estadual pelo Desencarceramento do Estado de São Paulo (FED-SP), a Associação de Amigos e Familiares de Presos (AMPARAR) e o Movimento Mães do Cárcere oficiaram a Defensoria Pública do estado, denunciando o desaparecimento de presos, além de práticas de violência e tortura em diversas unidades prisionais paulistas nos dias subsequentes às fugas. A tônica da gestão penitenciária em São Paulo nas semanas iniciais de pandemia assentou-se sobre a tranca e o abate.


Nota da FED-SP



Nos tribunais de justiça estaduais, algumas esparsas iniciativas têm sido realizadas por juízes de execução penal, determinando a soltura de presos e presas enquadrados nos grupos de risco. Todavia, as medidas adotadas às vésperas do auge da crise não abrangem mais do que 0,8% da população prisional do país. A vasta maioria das pessoas encarceradas permanece sujeita à contaminação em larga escala, cujas consequências epidêmicas já se pode prever.


Costuma-se dizer que as catástrofes trazem consigo a vantagem trágica de desnudar o poder e seu exercício; fazer com que cada traço de sua crueldade mórbida seja exposta sem rodeios. O sonho do extermínio eugênico que imunizaria o corpo-espécie é finalmente revelado sem disfarce ou dissimulação. Nesse sentido, a interface sobreposta entre o encerramento que segrega e a morte que contagia não foi inaugurada pelo novo vírus. Longe disso, teve seu lugar marcado e bem definido na agenda de políticas públicas elaborada pelo Estado brasileiro no decorrer de sua história.


Até meados do século XX, a política médico-sanitária de tratamento da hanseníase (a lepra bíblica) no Brasil fundamentou-se na exclusão de doentes em instituições fechadas, de preferência distantes das áreas populosas, no interior das quais a doença poderia se propagar e evoluir sem maiores ameaças à população sadia. Era a morte antecipada pela gestão da saúde pública. Entre as décadas de 1920 e 1940, a Campanha Nacional de Combate à Lepra estabeleceu-se no bojo do Estado Novo, fundamentada em princípios de caráter desenvolvimentista, nacionalista e higienista. O preço médico e social da saúde e do progresso era pago no pátio dos leprosários. [13]


Hoje, autoridades penitenciárias federais e estaduais não hesitam em recuperar a técnica básica da morte-por-rejeição como estratégia central de combate ao coronavírus nas prisões. É sabido que existem outras formas tanto mais efetivas quanto mais indulgentes de prevenção à transmissão da Covid-19 no cárcere. Recentemente, a Organização das Nações Unidas (ONU) exortou os governos a trabalharem rapidamente para reduzir a quantidade de pessoas presas. [14] O próprio Conselho Nacional de Justiça apresentou recomendações nesse sentido aos juízes e tribunais, propondo medidas como a reavaliação das prisões provisórias; a concessão de saídas antecipadas e a determinação de regimes domiciliares a mulheres gestantes, lactantes, mães, assim como idosos e demais pessoas classificadas no grupo de risco. [15] Mais precisa e mais direta, a Frente Estadual pelo Desencarceramento do Estado de São Paulo solicitou a imediata soltura de todas as pessoas em prisão provisória; a proibição do ingresso de novas pessoas presas em unidades que já estejam operando acima da capacidade; a concessão de prisão domiciliar para pessoas em cumprimento de pena em regime fechado e a antecipação da progressão de pena das pessoas em regime semiaberto para o regime aberto. Não são poucas, portanto, as vozes que apontam caminhos mais sensatos para atravessar esse momento e evitar que as prisões se tornem epicentros descontrolados de transmissão viral.


Todavia, estamos tendo que lidar com gestores que parecem se regozijar com seu direito soberano de matar e de deixar morrer. Administradores públicos que se colocam na iminência de confeccionar com o novo vírus uma bomba infecciosa chamada prisão. Vermes que declaram guerra à vida pelo estranho apetite que nutrem com a carniça que produzem.



NOTAS


* Imagem de autoria desconhecida. Caso reconheça a autoria da foto, entre em contato conosco: horizontesaosul@gmail.com


[1] Refiro-me, em especial, aos relatórios produzidos pela Pastoral Carcerária, às notas divulgadas pela Frente Estadual pelo Desencarceramento do Estado de São Paulo e, particularmente, à tese de doutorado de Fábio Mallart (2019), intitulada "Findas linhas: circulações e confinamentos pelos subterrâneos de São Paulo".


[2] A respeito das práticas médico-sanitárias de exclusão da lepra, ver: Foucault, 2001; Mattos e Fornazari, 2005 e Witter, 2009.





[7] A figura do amicus curiae, ou “amigo da corte”, designa uma instituição cuja finalidade é fornecer informações e subsídios às decisões dos tribunais.

[12] Para ver na íntegra a nota publicada pela Frente Estadual pelo Desencarceramento do Estado de São Paulo, acesse: encurtador.com.br/jnTY7


[13] Mattos e Fornazari, 2005 e Witter, 2009.



REFERÊNCIAS


FOUCAULT, Michel. (2001), Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

MALLART, Fábio. (2019), Findas linhas: circulações confinamentos pelos subterrâneos de São Paulo. Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.


MATTOS, Débora Michels; FORNAZARI, Sandro Kobol. (2005), "A lepra no Brasil: representações e práticas de poder". Cadernos de Ética e Filosofia Política, v. 6, n. 1, p. 45-57.

WITTER, Nikelen Acosta. (2009), "Lepra: experiência e memória de exclusão". Aedos, v. 2, n. 5, p. 118-123.




Como citar esse texto: CAMPELLO, Ricardo Urquizas. (2020), "Vírus e vermes: Covid-19, política penitenciária e a reatualização do leprosário". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/03/27/VIRUS-E-VERMES-COVID-19-POLITICA-PENITENCIARIA-E-A-REATUALIZACAO-DO-LEPROSARIO



Ricardo Urquizas Campello é doutor em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu recentemente a tese intitulada Faces e interfaces de um dispositivo tecnopenal: o monitoramento eletrônico de presos e presas no Brasil.



Editora Responsável: Luna Ribeiro Campos










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