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Igor Acácio

OS MILITARES PODEM RESPONDER À PRESENTE CRISE?


General, obra de Fernando Botero, 2006.



A função precípua das forças armadas é a da defesa contra ameaças externas. Em casos de emergência, elas também servem como reserva estratégica de capacidade estatal. Em diversos momentos, são instadas por governos a atuarem na repressão de protestos, combate ao crime, restabelecimento da ordem pública e ajuda humanitária em caso de em desastres naturais. O que é recomendável que os militares façam na presente emergência de resposta ao novo Corona Vírus (Covid-19)? Este ensaio tem com objetivo argumentar que governos precisam ser enormemente cuidadosos com o que pedem de seus militares, sob pena de ordenar que executem tarefas em que serão absolutamente ineficientes e que podem gerar consequências perniciosas. O ensaio lista algumas das tarefas que governos podem eventualmente ordenar a seus militares e, à luz do instrumental teórico que à analisa a efetividade das missões dos militares, as ranqueia em termos de potencial efetividade.



As demandas sobre os militares na presente crise


O cenário de respostas à pandemia global de Covid-19 é potencialmente catastrófico e requer ação imediata e efetiva dos governos, sob pena de aumentar enormemente as taxas de letalidade causadas por essa doença. Nos Estados Unidos, diversas autoridades já têm demonstrado clamor pela presença dos militares na gestão da presente crise. Do candidato à nomeação democrata para a eleição presidencial Joe Biden [1] ao prefeito de Nova Iorque, Bill de Blasio [2], políticos têm pedido que os militares sejam utilizados, nos esforços contra o Covid-19, por sua expertise em emergências e sua eficiência administrativa. Na América Latina, onde o vírus já está causando efeitos e forçando os governos a decidirem rapidamente [3], em breve observaremos a mesma tendência. Em 18 de Março, o governo brasileiro, por intermédio do Ministério da Defesa, publicou no Diário Oficial uma portaria colocando os militares em prontidão [4]. Ainda, o Presidente Jair Bolsonaro, enquanto este ensaio é escrito, considera a decretação de estado de sítio [5], que certamente envolverá a presença dos militares para enforcement, em tarefas de policiamento para que as pessoas não saiam às ruas, não violando protocolos de quarentena e distanciamento social.


É possível que os militares sejam ordenados a realizarem uma série de tarefas para remediar efeitos da Covid-19. São elas: 1 – Segurança de fronteiras, 2 - Transporte e distribuição de suprimentos para hospitais e indivíduos, 3 - Montar hospitais de campanha e triagem, 4 – Ativar indústrias militares para produção de medicamentos e suprimentos, 5 - Cuidados médicos de alta complexidade, 6 - Missões de Policiamento em caso de toques de recolher em estados de sítio.


Insights da literatura sobre missões militares


Parte da literatura que se dedica ao estudo de missões dos militares considera os usos do braço armado do estado para executar tarefas subsidiárias, e utiliza como inspiração a teoria organizacional. A mais recente contribuição ao debate acadêmico nessa vertente é o livro Military Missions in Democratic Latin America [6]. Em específico, explicita-se as vantagens oferecidas pelo uso dos militares e sua efetividade em potencial.


Então, quais seriam as vantagens oferecidas pelo uso dos militares? Sob certas circunstâncias, os militares são destacados para missões domésticas, de não-guerra, sem abusos aos direitos humanos, agindo com profissionalismo e, principalmente, sob o controle de governos democraticamente eleitos. A literatura aponta, não sem controvérsias, que os governos da América Latina, chegaram a um momento em que podem confiar em suas forças armadas como uma ferramenta de capacidade estatal, sem o medo constante de golpes militares.


Partido do pressuposto de que há controle governamental e que os militares cumprirão as ordens dadas pelo governo, as forças armadas contam com quatro grandes vantagens quando o assunto é sua utilização como reserva de capacidade estatal. Dada a necessidade de abordar a lacuna de capacidade estatal numa crise como a atual, os governos tem em mãos um instrumento político com valiosos pontos fortes da organização: eles são um (1) grande contingente de servidores públicos distribuídos em todo o território nacional, (2) operando em formações de combate, (3) com enorme capacidade logística, envolvendo planejamento e distribuição de suprimentos e materiais e, (4) operando e sob um rígido sistema de comando e controle, regido pelos princípios da hierarquia e disciplina [7].


E sua efetividade nas execuções de tais missões? Por efetividade, aqui, entenda-se parâmetros para evitar abusos aos direitos humanos e com uso eficiente dos recursos públicos. Quando as forças armadas são incumbidas de operações que não as de defesa, aumenta a probabilidade de sucesso quando as novas missões se baseiam em capacidades organizacionais e estruturais compatíveis com tarefas precipuamente militares. Em outras palavras, sempre que a liderança política pede dos militares algo que já faz parte de seu conjunto de ferramentas já existente, eles tendem a ter um bom desempenho. Por outro lado, será baixa a efetividade quando os militares tiverem que ir muito longe de seu treinamento, doutrina e experiência prévia, não sendo, portanto, recomendado seu emprego [8].

Que tarefas o governo deve pedir dos militares nesta crise?


Seguem, portanto, alguns apontamentos preditivos sobre a efetividade de potenciais missões atribuídas aos militares nessa crise. A segurança de fronteiras, dado o histórico de raros conflitos interestatais na América Latina já é considerada não somente tradicional função das forças armadas, mas o que há de mais próximo de defesas contra ameaças externas [9]. Assim sendo, a efetividade prevista em tais missões, no contexto de prevenção de fluxos migratórios que possam impedir esforços de quarentena é alto. A montagem de hospitais de campanha é algo para que as forças armadas não somente são treinadas e equipadas para realizar, mas conseguem fazê-lo aproveitando-se de enorme memória organizacional. Logo, projeta-se que haja alta efetividade nesse tipo de tarefa. O transporte e distribuição de suprimentos para hospitais e indivíduos apresenta um cenário curioso: os militares possuem grande capacidade logística, afinal é com logística eficiente que modernos conflitos armados são vencidos. No entanto, a distribuição de suprimentos será tanto mais eficiente quanto mais centralizada em hospitais e grandes armazéns. Pode não ser uma boa ideia ordenar que soldados distribuam suprimentos diretamente a indivíduos, o que não significa que governos não sejam tentados a fazê-lo em momentos de crise. O governo da Califórnia, por exemplo, já utiliza a Guarda Nacional para tais tarefas [10]. As três tarefas seguintes são as que consideramos serem as mais distantes de atividades tradicionalmente militares e, portanto, tendem a produzir menor efetividade. É prerrogativa governamental ordenar que indústrias militares produzam determinados medicamentos. Enquanto esta nota é escrita, o governo Bolsonaro ordenou que químicos do Exército Brasileiro passem a produzir estoques da droga Cloroquina [11].

Para além de a Cloroquina ainda não ter efeito científico comprovado contra o vírus em questão, o uso de indústrias militares para produtos não eminentemente militares pode produzir problemas como ineficiência nos gastos públicos, perversão de função e empoderamento indevido dos militares [12]. Militares podem ser ordenados a prestar cuidados médicos a indivíduos no contexto da crise. Aqui, cabe uma distinção. As forças armadas possuem profissionais de saúde de altíssimo nível, mas sua função precípua é exercer a medicina em combate. Assim, e por isso a predição de maior eficiência quanto a montar hospitais de campanha e exercer triagem de pacientes, não é recomendável que estes estejam envolvidos nos cuidados médicos de alta complexidade.


Por último, há a possibilidade do uso dos militares em missões de policiamento no caso do decreto de missões de garantia de lei e da ordem e decretação de estado de sítio. Essas missões estão previstas no ordenamento jurídico e são frequentemente exercidas, em especial no Rio de Janeiro – em missões de combate ao crime – e quando há, por exemplo, greves de polícias militares em diversos estados. Aqui, parte da literatura sobre missões militares prevê que há enorme possibilidade para violações de direitos humanos, uma vez que policiamento e tarefas de combate, em especial numa democracia, devem ser diferentes. Policiais devem proteger e servir, usar gradualmente a força e de forma limitada, os militares têm como atividade-fim a eliminação de inimigos sob a direção política do governo. Tais atividades são fundamentalmente incompatíveis e devem ser ordenadas pelo governo somente em casos extremos e sabendo dos riscos aí envolvidos [13]. A última coisa que se quer, nesse momento, é que os militares repliquem algumas falhas atrozes cometidas quando instados a policiar as ruas das comunidades no Rio de Janeiro, enquanto a população adoecida e encastelada em suas casas padece de desamparo.


Fonte: Bruno Kelly/ Reuters.

À guisa de conclusão: cuidado com o que pedes de teus soldados


Neste breve ensaio, o objetivo foi contribuir com algumas ideias que a literatura sobre missões militares tem a oferecer sobre quais tarefas são recomendáveis para os militares no contexto da crise do Covid-19. Governos que podem contar com uma corporação profissional e disciplinada com as vantagens logísticas que as forças armadas possuem estão tentados a, em momentos de crise, usá-las como reserva de capacidade estatal, determinado que estas ajam em diversas tarefas que não à sua função precípua. Mas isso não deve ser uma panaceia e há importantes tradeoffs de efetividade, com algumas tarefas podendo gerar consequências perniciosas para os indivíduos e para o erário. A literatura sobre missões militares prevê que tarefas mais próximas das atividades que já são função precípua das forças armadas serão mais efetivamente executadas e que, quanto mais distante do tool-kit operacional menos recomendáveis serão tais missões. Assim, missões de segurança de fronteiras, construção de hospitais de campanha e triagem médica e transporte, além da distribuição de suprimentos são tarefas mais recomendáveis a se pedir dos militares nessa crise. Por outro lado, há que ter cuidado em ordenar que os militares expandam sua capacidade industrial de defesa, cuidados médicos de alta complexidade e enorme cuidado em pedir para que exerçam missões de policiamento num eventual decreto de Garantia da Lei e da Ordem ou decretação de um Estado de Sítio que envolva a presença ostensiva de militares nas ruas.


Há pelo menos duas limitações das quais não tratamos neste ensaio, devido à limitação de espaço e escopo, ambas relacionadas a um pressuposto fundamental nas relações entre forças armadas e governo: o do controle civil sobre os militares. Primeiro, o cenário de controle civil sobre as forças armadas pode não ser perfeito e raramente o é em democracias em consolidação. Assim, militares relativamente influentes podem condicionar o cumprimento de determinadas missões a regras de engajamento ou mesmo benefícios materiais. Podem, também, simplesmente rejeitar a execução de determinadas missões. Segundo, os militares, ao exercer certas missões com efetividade, podem ganhar ainda mais relevância na vida nacional, fenômeno que se pensava extinto no Brasil.



NOTAS

[1] Jonathan Easley, ‘Biden Says He Would Mobilize the Military to Address Coronavirus | TheHill’, The Hill, 15 March 2020, https://thehill.com/homenews/campaign/487710-biden-says-he-would-mobilize-the-military-to-address-coronavirus.


[2] Rebecca Klar, ‘De Blasio Calls on Trump to Deploy Military to Set up Hospitals in New York | TheHill’, The Hill, 18 March 2020, https://thehill.com/homenews/sunday-talk-shows/488366-de-blasio-calls-on-trump-to-deploy-military-to-set-up-hospitals-in.


[3] Miguel Lago, ‘América Latina Puede Convertirse En La Mayor Víctima Del COVID-19’, New York Times, 19 March 2020, https://www.nytimes.com/es/2020/03/19/espanol/opinion/coronavirus-america-latina-gobiernos.html?fbclid=IwAR0Bs39TxYvtFJCE2QpjVB7jW0kmORJiCWXeC2HIt_JFEKH5uihYrRSrd6k.


[4] Ministério da Defesa do Brasil, ‘Portaria No 1.232/GM-MD, de 18 de Março de 2020’, Diário Oficial Da União 1, no. 54 (19 March 2020): 18, http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-1.232/gm-md-de-18-de-marco-de-2020-248808643.


[5] Lucas Rocha, ‘Bolsonaro Diz Que Seria “Fácil” Decretar Estado de Sítio’, Revista Forum, 20 March 2020, https://revistaforum.com.br/politica/bolsonaro-diz-que-seria-facil-decretar-estado-de-sitio/.


[6] David Pion-Berlin, Military Missions in Democratic Latin America (New York: Palgrave Macmillan US, 2016), https://doi.org/10.1057/978-1-137-59270-5.


[7] Pion-Berlin.


[8] Pion-Berlin.


[9] Pion-Berlin.


[10] Sara Zendehnam, ‘California National Guard Deployed to Assist Food Banks during Virus Pandemic’, KTVU FOX 2, 21 March 2020, https://www.ktvu.com/news/california-national-guard-deployed-to-assist-food-banks-during-virus-pandemic.


[11] Douglas Rodrigues, ‘Sem Ter Certeza de Eficácia, Bolsonaro Manda Exército Fazer Mais Cloroquina’, Poder 360, 21 March 2020, https://www.poder360.com.br/coronavirus/sem-ter-certeza-de-eficacia-bolsonaro-manda-exercito-fazer-mais-cloroquina/.


[12] Kristina Mani, ‘Militaries in Business: State-Making and Entrepreneurship in the Developing World’, Armed Forces and Society 33, no. 4 (2007): 591–611, https://doi.org/10.1177/0095327X06291348; Collin Grimes and David Pion-Berlin, ‘Power Relations, Coalitions, and Rent Control: Reforming The Military’s Natural Resource Levies’, Comparative Politics 51, no. 4 (2019): 625–43.


[13] Rut Diamint, ‘A New Militarism in Latin America’, Journal of Democracy 26, no. 4 (2015): 155–68, https://doi.org/10.1353/jod.2015.0066.


REFERÊNCIAS


DIAMINT, Rut. “A New Militarism in Latin America”. Journal of Democracy, n. 4, pp.155–68, 2015. https://doi.org/10.1353/jod.2015.0066.


EASLEY, Jonathan. “Biden Says He Would Mobilize the Military to Address Coronavirus”. The Hill, 15 March 2020.

https://thehill.com/homenews/campaign/487710-biden-says-he-would-mobilize-the-military-to-address-coronavirus.


GRIMES, Collin; PION-BERLIN, David. “Power Relations, Coalitions, and Rent Control: Reforming The Military’s Natural Resource Levies”. Comparative Politics, n. 4 : 625–43, 2019.


KLAR, Rebecca. “De Blasio Calls on Trump to Deploy Military to Set up Hospitals in New York”. The Hill, 18 March 2020. https://thehill.com/homenews/sunday-talk-shows/488366-de-blasio-calls-on-trump-to-deploy-military-to-set-up-hospitals-in.


LAGO, Miguel. “América Latina Puede Convertirse En La Mayor Víctima Del COVID-19”. New York Times, 19 March 2020. https://www.nytimes.com/es/2020/03/19/espanol/opinion/coronavirus-america-latina-

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MANI, Kristina. “Militaries in Business: State-Making and Entrepreneurship in the Developing World”. Armed Forces and Society, n.4, pp. 591–611, 2007. ttps://doi.org/10.1177/0095327X06291348.


Ministério da Defesa do Brasil. ‘Portaria No 1.232/GM-MD, de 18 de Março de 2020. Diário Oficial Da União 1, no. 54 (19 March 2020): 18. http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-1.232/gm-md-de-18-de-marco-de-2020-248808643.


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__________________. Military Missions in Democratic Latin America. New York: Palgrave Macmillan, 2016. https://doi.org/10.1057/978-1-137-59270-5.


ROCHA, Lucas. “Bolsonaro Diz Que Seria “Fácil” Decretar Estado de Sítio”. Revista Forum, 20 de março de 2020.

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RODRIGUES, Douglas. “Sem Ter Certeza de Eficácia, Bolsonaro Manda Exército Fazer Mais Cloroquina”. Poder 360, 21 de março de 2020.

https://www.poder360.com.br/coronavirus/sem-ter-certeza-de-eficacia-bolsonaro-manda-exercito-fazer-mais-cloroquina/.




Como citar esse texto: ACACIO, Igor. (2020), "Os militares podem responder à presente crise?". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/03/26/OS-MILITARES-PODEM-RESPONDER-%C3%80-PRESENTE-CRISE



Igor Acácio é Doutorando em Ciência Política pela Universidade da Califórnia em Riverside e Mestre na mesma área pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Em sua tese de doutorado estuda as missões aos militares na América Latina.

Editora Responsável: Simone Gomes

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