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Marcos Paulo Campos

ESSA GENTE, DE CHICO BUARQUE


Gosto mais da música do que da literatura de Chico é uma frase clichê do circuito cult. A afirmação supõe um indivíduo que conhece em profundidade a produção musical e literária do filho de Sérgio Buarque de Holanda a ponto de escolher identificar-se com o que seria o seu melhor, a música. De tão repetida, a frase mais confirma o caráter social dos gostos, como bem demonstrou Pierre Bourdieu [1], do que o saber apurado sobre a obra de Chico Buarque. Quem repete o clichê considera os textos de Roda Viva, Gota d'Água e Ópera do Malandro como literatura ou restringiu ao termo apenas os romances do carioca?



Chico não é o primeiro a passar por isso. Mais de uma vez ouvi de pós-graduados no mais importante programa de antropologia do país a afirmação de que Bourdieu, por lá, só era lido quando tratava da sociedade cabila. Isso se justificaria porque, nas obras sobre os berbere da Argélia, o sociólogo francês apresentaria um trabalho etnográfico vigoroso no qual o conceito de práticas sociais assume uma relevância não mais encontrada nos textos posteriores em que são centrais as noções de campo, habitus e capital. A afirmação pode ser interessante se vier da boca de um especialista em Bourdieu que pode estabelecer uma pequena parte de sua obra, estruturada sem os conceitos com os quais mais trabalhou e difundiu, como a única digna de ser repassada às novas gerações de cientistas sociais. Isso se não se colocar a seguinte pergunta: é possível um autor assumir a relevância creditada a Bourdieu mesmo tendo como significativa a menor parte de sua obra?


Não tenho resposta para essas duas indagações. Elas que fiquem para os sabidos ou para a crítica roedora dos ratos. Isso porque experimento a urgência de falar sobre o mais novo romance de Chico Buarque, lido em poucas horas e com uma emoção há muito não vivida no contato com uma escrita ficcional. Essa Gente narra uma sociabilidade do Brasil bolsonarista sem nem citar o nome do nosso algoz. Confesso que me surpreendi positivamente com o caráter não panfletário da obra. Em certa medida, a notícia de que Chico tinha escrito um romance ambientado na virada de 2018 para 2019, e tendo acompanhado sua intensa militância no período, fez esquecer sua capacidade de criticar as relações sociais internas a um tempo político sem se render à mesmice. Esqueci o Creonte de Gota d’Água, construído por Chico e Paulo Pontes, cujo império econômico se assenta em imóveis numa composição de capital típica do Brasil com pouca mobilidade social dos anos de 1970. Esse Creonte cônscio de sua posição privilegiada e da necessidade de defendê-la era tão 70 quanto o Silvio Santos de 17 em sua sanha de construir um empreendimento que ameaça o Teatro Oficina e o caráter público de uma importante área da região do Bixiga na cidade de São Paulo. Enquanto escrevo chega a notícia da aprovação, pela unanimidade dos vereadores paulistanos, do projeto que cria um parque público e preserva a edificação onde trabalha o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa. Falta a sanção do prefeito para dar fim a uma disputa de quarenta anos. Em bem menos tempo e tendo como cenário outra cidade brasileira que também sufragou o bolsonarismo, Chico Buarque condensa quem nos tornamos ou quem sempre fomos. Essa Gente se passa no Rio de Janeiro e começa em 30 de novembro de 2018 quando as urnas já estavam fechadas e o futuro também.


Manuel Duarte, o escritor-personagem da obra de Chico, pede adiantamentos a seu editor mesmo sabendo que a crise econômica não arrefeceu como se esperava e que o mercado editorial passa por dificuldades. Duarte alega ter sido difícil organizar as ideias de seu novo romance devido a intempéries pessoais como sua separação conjugal e a mudança de domicílio no Leblon. Também teve peso em sua desorganização intelectual os acontecimentos recentes do país. Em certo sentido, a circunstância de Duarte lembra as muitas teses e dissertações que tiveram defesas postergadas por estudantes em plena confusão de sujeito e perspectivas com a ascensão autoritária dos nossos dias.


Os dramas de Duarte são entrelaçados à história de um jovem negro, morador de um morro carioca e cantor lírico de um projeto social que acaba sendo castrado pela ação criminosa de um pastor evangélico e de um maestro mancomunados para abastecer o mercado internacional de óperas. A mãe do castrado nada percebe ou finge não perceber na medida em que não desconfiaria de seu líder religioso, tendo se convertido já adulta e com passado na macumba. O autor de Geni e o Zepelim parece reunir em narração o tema da conversão do Brasil ao evangelismo, mais evidente quanto mais se chega à nossa periferia negra, e um drama semelhante à notícia chocante de um garoto que teve sua genitália mutilada por duas lésbicas pastoras em Brasília no ano passado. A conversão neopentecostal como capa protetora para práticas criminosas se apresenta na violação ao fraco com a cumplicidade maternal. O risco que o conservadorismo representa para a infância brota a olho nu, outra nuance que Essa Gente não deixa passar.


A crítica à moral conservadora mais ou menos estrutura os subdramas da obra, lembrando o interessante elemento de ser um eunuco o personagem central do romance mais famoso de Duarte, aquele que fez do escritor-personagem um autor reconhecido. Isso tudo pode fazer do livro de Chico Buarque um texto que mobiliza criativamente certa falência da dominação masculina cuja maior e grotesca tentativa de reprodução é o bolsonarismo. A crise do macho se mostra tanto na incapacidade do escritor-personagem concluir o romance que diz estar escrevendo como pelo fato dele ter um filho adolescente com quem não consegue se comunicar. Em certa medida, a obra recupera radicalmente a distante relação entre pai e filho, tantas vezes experimentada pela tradicional família brasileira, na vida de um homem não tradicionalista, mas não necessariamente desfeito das sobrevivências profundas da moral masculinista na conformação de suas personalidade e escolhas. Há também suas ex-mulheres e os fracassos de relacionamentos que Duarte coleciona, junto ao empobrecimento e às dívidas, configurando o homem de meia idade em ruínas econômicas e de afeto em decomposição, que pode encontrar em um líder autoritário sua remissão. O personagem, contudo, não segue necessariamente nesse sentido, se incomoda com os acontecimentos políticos, tem pesadelos com a possibilidade de ter uma arma em casa e promete ao editor escrever um romance tão potente quanto aquele que lhe rendeu glórias no passado. As páginas de Chico se encerram sem que as de Duarte apareçam. O que vem à luz mesmo é a dependência do escritor-personagem em relação à sua ex-mulher revisora (e autora?) de seus textos.


A fraqueza do homem errante, embriagado e fracassado, contrasta com os perfis femininos em Essa Gente que são mais firmes ou que, pelo menos, seguem a vida sem se deteriorar nos redemoinhos do tempo mesmo quando arrebatadas pelo fundamentalismo religioso ou político. Essa conformação, contudo, não retira o confuso Duarte dos manejos da sedução, demonstrando como a vida social é permissiva ao homem mesmo derrotado ou em crise absoluta, e também não se aplica à Denise, esposa de Fúlvio, amigo abastado de Duarte, mulher de trajetória mais linear e entregue ao casamento, à depressão e às pílulas tarja preta. Seria por acaso que a obra de Chico retrata a esposa de um homem rico, bem localizada no quadro da família tradicional brasileira, como sendo a mais precisada de remédios psiquiátricos para viver? Essa Gente traz ainda um Fúlvio leitor de best-sellers, manuais de direito e autoajuda. Para completar a imagem do setor mais alto da classe média do Leblon, tão carioca e brasileira, há uma cena em que Fúlvio interrompe uma carona dada a Duarte para chutar um mendigo com cara de índio que ousou dormir encostado ao muro do clube que o advogado frequenta. Nada mais brasileiro que a violência de classe. Nada mais bolsonarista que a enfermeira evangélica de Maria Clara, uma das ex-mulheres de Duarte, relatar com alegria a expulsão a pontapés de dois rapazes que estavam de mãos dadas no trem. Ela ainda diz que lê mais a Bíblia porque a recebe de graça do pastor enquanto Maria Clara cobra caro para traduzir Shakespeare, não distribui seus livros e ainda paga pouco pela diária de cuidados em saúde.


A narrativa de Chico Buarque nos reapresenta a moral frouxa dos guardas civis que, apesar da proibição, fazem vista grossa para cães de raça na praia porque os donos têm pedigree. Seria essa uma atitude molecular dos fardados que, em escala nacional, se apresenta na complacência dos generais diante da relação entre Bolsonaro e as milícias? E mais, quando Duarte toma ciência que Maria Clara consegue comprar drogas em farmácias clandestinas desde que assegurado o sobrepreço, a obra expõe o poder do dinheiro acima de qualquer regramento que, em última instância, é o conflito atual das sociedades mundiais com os bilionários. Estaria na obra de Chico Buarque a capacidade de capturar consciente ou inconscientemente o embate societal e ainda sem solução entre mercado regulado, capitalismo autoritário e anarcocapitalismo típica de nosso início de século por meio de uma narrativa ambientada na hostil zona sul carioca? Essa Gente dirá.



NOTAS


[1] Na obra A Distinção (1979), Bourdieu demonstra como os gostos culturais não são escolhas individuais voluntárias, mas construções sociais em que pesam a instrução escolar, a herança familiar e a condição econômica. Os gostos são preferências que têm o poder de reunir aqueles que são forjados em condições sociais semelhantes, promovendo a intolerância em relação a quem não compartilha de percepções de mundo parecidas.




Como citar esse texto: CAMPOS, Marcos Paulo. (2020), "Essa gente, de Chico Buarque". Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/03/02/ESSA-GENTE-DE-CHICO-BUARQUE



Marcos Paulo Campos é Doutor em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj). Professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA).


Editora Responsável: Simone Gomes



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