top of page
  • André Amud Botelho

AMAZÔNIA: NOTAS SOBRE PESQUISA E SOBRE OS TEMPOS


Tanimbuca com idade estimada em mais de 600 anos localizada na sede do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, em Manaus.

Foto de André Amud Botelho



Se o leitor das linhas que seguem desenvolve uma tese ou se já desenvolveu, sabe como os processos de trabalho – pesquisa e escrita – são tomados por uma certa angústia que é comum àqueles que, de modo geral, se envolvem com um trabalho de longo termo, anseiam por terminá-lo, mas também têm clareza sobre a importância de seguir burilando seus achados e formulações. A tensão entre o tempo dos fazeres acadêmicos e o da busca por sínteses quanto às urgências impostas pela realidade possui contornos particulares a cada estudo. Pretendo aqui tratar de como a relação com meu tema de pesquisa no doutorado, a Amazônia como objeto do pensamento, vem sendo interpelada pela realidade de ataques por que passa a região. A meu ver, a produção intelectual sobre a Amazônia oferece elementos essenciais para a interpretação da conjuntura atual.


Na minha tese – cujo título provisório é "A Amazônia no pensamento social: mapeamento da produção contemporânea" – trato de inventariar e mapear a produção da área acadêmica do pensamento social cujo tema seja Amazônia para testar hipóteses quanto à existência de estilos(1) intelectuais e correntes de pensamento em tal produção. A intenção é a de identificar os modos pelos quais os trabalhos dos acadêmicos da área podem revelar a persistência de agendas de problemas, de formulação de hipóteses e de cristalização de algumas categorias de explicação sobre a Amazônia pelos intelectuais que voltaram suas lupas de análise àquela realidade.


O primeiro destaque que o material de pesquisa com o qual venho lidando permite apontar é o de que, apesar de atualmente terem retomado ritmo e audácia, são antigas as brutalidades cometidas na Amazônia em prol de modelos de desenvolvimento, modernização e integração insensíveis às particularidades históricas, sociais e culturais dos povos da região. Indiferente às vozes que argumentam quanto aos riscos e limites de um modelo insustentável e predador, o atual governo repõe uma ofensiva semelhante àquelas armadas nos períodos sob governos autoritários em nosso país.


Nesse longuíssimo ano de 2019, a Amazônia foi tema candente dos debates no Brasil e no mundo. Uma conjunção particular de fatores engendrou a onda de ataques que põem em risco a diversidade cultural dos povos da Amazônia e a sustentabilidade do uso dos recursos naturais por suas populações. De uma lista já grande, e infelizmente em processo de construção, é possível citar alguns exemplos: o desmonte dos órgãos de implementação do Sistema Nacional do Meio Ambiente, a desestruturação institucional da Fundação Nacional do Índio, a ofensiva jurídica do Governo Federal a princípios fundamentais dos processos de demarcação das terras indígenas e o apoio governista e entusiasmado aos planos de grandes corporações para projetos de extração de minérios e para a expansão sem freios das fronteiras agropecuárias. As ações, os discursos, as ideias – mas também os silenciamentos – do atual governo sobre a região, bem como de seus apoiadores, parecem mesmo compor o arquétipo de modernização autoritária.


Tendo em vista a atual conjuntura, é fundamental compreender os sentidos da modernização a partir de sua mobilização pela produção da área do pensamento social sobre a Amazônia. Tenho constatado que a problematização sobre tais sentidos é um dos temas mais presentes nas teses, dissertações e artigos sobre a região. Foi a partir do exame de seis teses de doutorado(2) que pude primeiro pensar no alcance de uma oposição dialética que me parece fazer sentido na crítica aos processos de modernização na Amazônia. Em que pese as diferenças entre as teses e os objetos de atenção de seus autores, pareceram a mim centrais para a interpretação dos trabalhos dois tópicos que também podem iluminar uma certa compreensão a respeito dos tempos em que vivemos e sua eventual superação: esquecimento e desenvolvimento. A articulação entre esses dois tópicos assumiu papel de chave teórica para meu entendimento quanto à questão que me pareceu subjazer em todas as teses: os debates sobre os projetos e processos de modernização e integração da região.


Os temas da propalada urgência do desenvolvimento da região pari passu ao do seu suposto esquecimento, isolamento, atraso, invisibilidade compõem a teia que integra os objetos, imagens e representações articulados pelos autores e parece seguir contemporaneamente engendrando parte das ideias sobre a Amazônia. Não são poucas as ocasiões em que os discursos governistas parecem reiterar esse mecanismo.


Refletir sobre modos distintos de interpretar os sentidos da modernização na Amazônia identificáveis nas teses examinadas permitiu vislumbrar dois modos típicos, dois estilos ao menos: um comprometido com a crítica aos projetos de integração e modernização planejados pelo Estado brasileiro com apoio das elites locais; outro formado por estudos sobre as elaborações e olhares de intelectuais e movimentos que se propuseram a imaginar a região a partir de suas particularidades. Chamo a atenção ainda para o entrecruzamento desses dois polos típicos. É assim que podemos entendê-los identificando um continuum recorrente: trata-se de problematizar os projetos de desenvolvimento que tentam se impor de fora para dentro e de destacar a mobilização dos discursos e das resistências de atores locais. Assim, de um lado, nota-se o peso do compósito região-nação sobre a vida social e, de outro, o alcance da imaginação dos amazônidas que reelaboram e ressignificam a Amazônia.


O tema do esquecimento atravessa as teses estudadas de, ao menos, dois modos. Um é aquele em que o sentido de sua mobilização é percebido pelos autores das teses como mote retórico-político dos projetos de desenvolvimento e de integração da Amazônia, à semelhança do que constitui a base dos argumentos governistas para a defesa de teses questionadoras dos marcos legais de demarcação de terras e conservação ambiental. Outra interpretação é aquela em que o esquecimento é visitado pelos autores para ser municiado de substância e iluminado. Nessa chave, os segmentos sociais que representam resistência ou realizam problematizações ao modelo de modernização e desenvolvimento mais correntes são o ponto de partida das pesquisas. Os estudos incorporam às suas análises as vozes alternativas presentes nos movimentos de resistência em uma chave mais marcadamente política, como no caso dos movimentos e lutas de indígenas, seringueiros, operários, mas também a intelectualidade que tomou a Amazônia, não apenas como uma questão regional, mas o lugar a partir do qual é possível reimaginar o país.


O estudo desse conjunto de teses nos deixa entrever a constituição das variadas teias de resistência – políticas, sociais e intelectuais – e revela vozes alternativas aos processos homogeneizantes e autoritários dos projetos de integração e “desenvolvimento” da região. Apontam, ainda, que a articulação dessas vozes – como nos empates promovidos pelos seringueiros ante às ameaças de invasão das florestas nas quais trabalham e vivem – sempre foi fundamental para as contraposições quanto ao que se quer ou o que se pode imaginar para a vida na Amazônia.



NOTAS


(1) Nos termos de Gildo Marçal Brandão. A esse respeito: BRANDÃO, Gildo Marçal. “Linhagens do pensamento político brasileiro”. Dados, v. 48, n. 2, 2005, p. 231-269.


(2) Todas as teses merecem a atenção e leitura de quem se interessa pelo tema. Não pude me deter aqui a cada uma delas em razão do espaço. São elas: ANDRADE, Rômulo de Paula. A Amazônia na Era do Desenvolvimento: Saúde, Alimentação e Meio Ambiente (1946-1966). Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 2012.; FREITAS, Marilene Corrêa da Silva. Metamorfoses da Amazônia. Tese de doutorado. Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 1997.; MELLO, Vanessa Pereira da Silva. A Embrapa na Amazônia Oriental: pesquisa científica para o desenvolvimento? (1972-2002). Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 2017.; PAIVA, Marco Aurélio Coelho de. O papagaio e o fonógrafo: a Amazônia nos prosadores de ficção (1908-1931). Manaus, Editora Valer, 2010.; RIBEIRO, Odenei de Souza. Tradição e Modernidade no Pensamento de Leandro Tocantins. Tese de doutorado. Manaus, Universidade Federal do Amazonas, 2012.; SANTOS, Luiz Fernando de Souza. Entre o mágico e o cruel: a Amazônia no pensamento marxista brasileiro. Tese de doutorado. Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 2018.




André Amud Botelho é doutorando em história, política e bens culturais na Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV CPDOC) e pesquisador do Museu Histórico Nacional.

Editora responsável: Leonardo Nóbrega

Relacionados
bottom of page