ELEIÇÕES ARGENTINAS: O PROMETIDO RETORNO DO PERONISMO
No último domingo, dia 28 de outubro, os argentinos foram às urnas e elegeram Alberto Fernández Presidente da República. Ele é o sétimo chefe de Estado eleito pelo voto popular desde a redemocratização, em 1983. Com 48% dos votos, Fernández derrotou o atual presidente Mauricio Macri, que concorria à reeleição e obteve 40% dos votos [1]. A vitória do candidato de centro-esquerda sobre o de direita e os outros quatro candidatos nanicos (Espert, Del Caño, Lavagna e Gómez Centurión), ainda no primeiro turno, levanta algumas questões: de onde veio e para onde foi Macri? De onde surgiu Fernández, figura até pouco tempo desconhecida internacionalmente? Quais são os desafios que o novo presidente precisará encarar? Este ensaio discute essas indagações e contextualiza o resultado do pleito.
Fonte: Domínio Público
Desafiando um gigante
Em 2015, pouco tempo antes de Macri assumir o cargo que recém havia conquistado por uma pequena margem de diferença em relação ao seu adversário, uma multidão de peronistas cercou a Casa Rosada, sede da Presidência da República, e aos gritos afirmaram: “vamos a volver” (vamos voltar). O Peronismo talvez seja o mais interessante e complexo fenômeno político e social da América Latina. Nas suas mais variadas manifestações práticas e ideológicas, há mais de 70 anos os peronistas estão no centro da política argentina. Não por acaso, uma famosa anedota afirma: “na Argentina existem pessoas de direita, de centro e de esquerda. E os peronistas? Peronistas são todos”. Exageros à parte, é esse o gigante que Macri resolveu desafiar.
A estratégia do milionário empresário para chegar ao poder envolvia calma, persistência e senso de oportunidade. Macri adentrou à vida pública presidindo o Boca Juniors, a equipe de futebol mais popular do país, o que o transformou em um personagem conhecido. Sabendo que dificilmente conseguiria crescer dentro dos dois mais tradicionais partidos do país, a centenária União Cívica Radical e o poderoso Partido Justicialista (popularmente conhecido como Partido Peronista), Macri, em um gesto arriscado, criou sua própria sigla, o Compromisso pela Mudança, posteriormente transformado em Proposta Republicana. Em 2003, ele concorreu ao governo da Cidade Autônoma de Buenos Aires (CABA) e perdeu. Após a tentativa frustrada, foi eleito deputado federal (2005 - 2007), governador de CABA (2007 -2015) e, por fim, presidente (2015 - 2019); tendo voltado a perder uma eleição apenas no último domingo.
Para ser eleito presidente, Macri formou uma chapa de direita chamada Cambiemos (Mudemos) e atraiu para o seu lado a União Cívica Radical, que passava por um período de desgaste, mas seguia bastante influente em algumas regiões do país. Dessa forma, ele logrou interiorizar uma chapa que, até então, era considerada demasiadamente portenha. Ao Cambiemos, Macri deu uma imagem de direita moderna, empresarial, técnica, com algum grau de consciência social e ambiental, além de compromisso com os direitos humanos, tema caro aos argentinos. Finalmente, ele soube esperar a hora certa: em 2015, a então presidenta Kirchner, segundo as regras eleitorais, não poderia tentar o terceiro mandato. Ademais, os peronistas estavam desgastados pelos seguidos governos e acusações de corrupção, a economia começava a dar sinais de crise e o Partido Justicialista estava dividido e com contendas internas para ver quem poderia ser o candidato que tentaria substituir Kirchner.
Macri promoveu sua campanha baseando-a em duas promessas: uma gestão republicana contra o que ele chamava de “populismo kirchnerista” e a estabilização econômica. Quando candidato, inclusive, ele chegou a afirmar que “baixar a inflação é a coisa mais simples que tenho que fazer se sou presidente”. Alguns anos depois, com a inflação ultrapassando 50% ao ano, assumiu: “fui demasiado otimista”.
Jogada de mestra
Em maio deste ano as pesquisas eleitorais apontavam que a ex-presidenta Cristina Kirchner estava liderando a disputa pela Casa Rosada. As mesmas pesquisas também apontavam que sua taxa de rejeição era bastante alta. Muitos eram os que identificavam seu governo como demagogo e a associavam a escândalos de corrupção. Assim como o Partido dos Trabalhadores, no Brasil, na última eleição presidencial, Kirchner largava na frente pois tinha um piso de votos alto, mas corria o risco de perder as eleições pois tinha um teto de votos relativamente baixo.
No dia 18 de maio, primeiro dia da semana da pátria, Kirchner surpreendeu a todos ao postar um vídeo, em suas redes sociais, anunciando que não seria candidata à presidência. No filme muito bem produzido, com diversas imagens de símbolos pátrios, a ex-presidenta afirmava que seria candidata à vice-presidência em uma chapa peronista encabeçada por Alberto Fernández, com quem, outrora, teve números desentendimentos. A notícia ,movimentou a Argentina e caiu como uma bomba no quartel-general da campanha macrista.
A jogada de mestra tinha alguns objetivos: romper o teto de votos que estava imposto a Kirchner utilizando, para isso, uma figura cuja a imagem era mais associada à moderação do que ao radicalismo; unificar o sempre indômito peronismo; adentrar às eleições com um efeito surpresa; criar condições de governabilidade caso a chapa fosse eleita. Em uma tacada só, Kirchner alcançou todos esses objetivos.
Alberto Fernandez é advogado, professor da Universidade de Buenos Aires (UBA) e peronista. Desde o governo Menem, nos anos 1990, ele ocupa cargos de confiança nos governos peronistas tendo sido, inclusive, chefe de gabinete - o equivalente a Ministro da Casa Civil - nos governos do casal Kirchner. Entretanto, sua principal função foi a de operador, que organiza a política sem necessariamente mostrar a cara. A escolha de Alberto Fernández certamente não foi fácil para Kirchner. A partir de 2008, Fernández se afasta do kirchnerismo e passa a direcionar duras criticas à presidenta. Como hábil política que é, Kirchner apaziguou os antigos rancores e recentemente Fernández afirmou: “nunca mais brigarei com Cristina”.
Não é só a economia, estúpido
"The economy, stupid" (A economia, idiota), é uma famosa frase cunhada em 1992 por James Carville, estrategista da campanha presidencial de Bill Clinton. Muitos são os analistas que apresentam o fracasso econômico de Macri como o único motivo para o seu malogro eleitoral. Sem dúvida alguma, a crise na qual está envolvida a Argentina, que levou 30% da população à pobreza, é sim o fator explicativo central para a perda de apoio popular do presidente. Entretanto, existem outras questões, fundamentalmente políticas, que devem ser observadas.
Em primeiro lugar, Macri falhou ao não apresentar um projeto de futuro para o país. O presidente costumava justificar suas medidas neoliberais impopulares como um mal necessário para futuramente a Argentina colher os louros de uma economia estabilizada - que nunca chegou. Seu lema de campanha era uma apelo pela continuidade das mudanças, em que pese que, boa parte dos argentinos se perguntam quais seriam essas.
Em segundo lugar, em um país onde há uma forte cultura de manifestações de rua, o trato violento dispensado aos movimentos sociais gerou um considerável incômodo em parte dos setores médios e baixos. O auge desse incômodo teria sido o assassinato do ativista Santiago Maldonado, na província de Chubut, pelas forças policias comandadas pela ministra mão de ferro Patricia Bullrich[2]. O desaparecimento do corpo do jovem ativista, posteriormente encontrado em uma situação obtusa, trouxe rapidamente à memória dos argentinos o brutal período da última ditadura militar, um trauma jamais cicatrizado nessa sociedade.
Por último, muitos são aqueles que entendem que as figuras de presidente e empresário muitas vezes se confundiram e que Macri utilizou sua posição privilegiada para favorecer amigos, familiares e ele mesmo. O crescimento exponencial da fortuna do presidente, durante o seu mandato, parece confirmar tal suspeita. Ademais, para piorar as suspeitas, Macri esteve envolvido no escândalo internacional conhecido como Panama Papers[3].
Perspectivas
Tanto na Argentina quanto no resto da América Latina, engana-se quem pensa que tudo poderá voltar a ser como antes. Kirchner e seus aliados regionais governaram em uma conjuntura específica muito distinta da atual. Se naqueles tempos os altos preços das commodities permitiam que os países exportadores fizessem os investimentos que bem entendessem, agora, com a queda daqueles preços, isso já não mais é possível. Inclusive, o que se avizinha é um ciclo de recessão global que afetará especialmente aqueles países que, como a Argentina, possuem economias dependentes.
Fernández assumirá uma Argentina empobrecida, endividada e, portanto, com pouquíssima margem de manobra para algum giro à esquerda que não seja extremamente moderado. Sua tarefa central será colocar a economia em ordem, o que não sabemos quanto tempo pode levar. Além disso, o novo presidente terá que lidar, ao mesmo tempo, com as grandes expectativas criadas pelos seus eleitores e com uma oposição que não vacilará na tentativa de minar os esforços de recuperação do país que não sigam o corolário liberal.
Ao contrário dos governos Kirchner, Fernández não contará com a simpatia dos vizinhos. Se outrora, durante a chamada onda rosa, os Kirchner olhavam para os lados e encontrava parceiros, o novo presidente estará ilhado em meio a governos de orientação ideológica bastante distinta, com exceção da Bolívia. Tal isolamento poderá ser mais uma dificuldade para a retomada do crescimento econômico, uma vez que a economia argentina é bastante vinculada à economia brasileira e Jair Bolsonaro já demonstrou, seguidas vezes, não ter nenhuma inclinação para negociar com os peronistas.
Por fim e não menos importante, fica a dúvida: quem governará de fato? Fernández trabalhará tendo por trás nada menos do que uma das figuras políticas mais destacadas da história recente argentina. Se por um lado é verdade que a quantidade de votos obtidos por Fernández lhe oferece um pouco mais de liberdade em relação à sua vice, por outro lado sabemos que Kirchner é uma jogadora extremamente habilidosa, que controla uma parcela importante do partido e da militância e que não se deixará ser posta de lado facilmente.
Em suma, a tarefa de Fernández será hercúlea e ingrata, porém ele é um político experiente, possui um partido forte e, inicialmente, conta com um parcial apoio popular. Recordemos também que, quando se trata da Argentina, tudo pode acontecer, inclusive um presidente ser eleito com uma plataforma e adotar outra completamente diferente. Foi assim com o peronista Carlos Menem, que repetia o jargão “no los voy a defraudar” (não irei decepcionar vocês), proferido por Fernández, recentemente, em um ato político. Esperemos que o novo presidente consiga colocar a economia em ordem, afastar o quase sempre presente fantasma da crise e guiar a Argentina para o caminho do crescimento econômico e da justiça social, as duas maiores bandeiras da sua campanha.
NOTAS
[1] Na Argentina, diferentemente do Brasil, a eleição termina no primeiro turno caso algum candidato alcance 45% dos votos válidos ou 40% dos votos válidos possuindo mais de 10 pontos de distância do segundo colocado.
[2] Santiago Maldonado participava de um bloqueio de uma estrada na província de Chubut quando foi desaparecido pela Gendarmería Nacional, força policial vinculada ao Governo Federal. O protesto da comunidade mapuche denunciava o crescente avanço do Grupo Benetton sobre território indígena. Avanço esse que contou com a anuência de distintos governos. O desaparecimento forçado do ativista gerou uma onda de protestos na Argentina e no mundo. Atualmente o caso alimenta intensa batalha política e judicial.
[3] O escândalo dos Panama Papers foi a publicização de mais de 11 milhões de documentos que divulgavam os nomes de diretores e acionistas de um sem-número de empresas instaladas em paraísos fiscais off-shore. Muitas dessas empresas estavam ligadas à atividades de lavagem de dinheiro e evasão fiscal.
Rafael Rezende é editor associado da Horizontes ao Sul. Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador do Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (NETSAL).
Editoras responsáveis: Simone da Silva Ribeiro Gomes e Marcia Rangel Candido