CONTRAFOGOS: “PRODUTORES” VS. “AMBIENTALISTAS” NA BR-163 PARAENSE
Quadro do artista Natalino Santos, na exposição “Queimadas”, no Acre. Seu trabalho retrata questões ambientais, animais, plantas e o cotidiano do homem da floresta.
“Aqui se fica calado pra não morrer”, me disse em voz baixa um amigo de Novo Progresso (PA), município cortado pela rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém) no sudoeste paraense, uma semana antes do primeiro turno das eleições de 2018. Visitava pela quarta vez a região que tenho frequentado desde 2013 para realizar minha pesquisa de mestrado e, atualmente, de doutorado sobre conflitos territoriais. Não podia imaginar que ela se tornaria manchete pela realização de um “Dia do Fogo”, nome dado às queimadas planejadas que ocorreram esse mês e incendiaram o entorno dessa rodovia. [1]
Como tem viralizado em mídias sociais e veículos de comunicação nacionais e internacionais, nos últimos meses o Brasil apresentou um aumento exponencial de focos de queimadas em comparação com 2018, mesmo considerando-se que é época de seca (conhecida como verão amazônico, aproximadamente de julho a novembro). O aumento no registro das queimadas começou a ser verificado desde o mês passado em Mato Grosso e Rondônia e nos oito primeiros dias de agosto no Acre, Amazonas e Mato Grosso do Sul. Em alguns casos, demorou mais de duas semanas para controlar os incêndios decorrentes desses focos. Em outros, não há perspectiva de fim.
Em meio a notícias como essas, o “Dia do Fogo” foi anunciado dia 5 de agosto por um jornal local de Novo Progresso como ação coordenada de “produtores e entidades” para mostrarem, por meio de derrubadas e “limpeza de pastagens”, que querem “trabalhar”. Entre os dias 10 e 11 do mesmo mês, picos de incêndio foram observados nesse município e em seus vizinhos, Altamira, Itaituba e Jacareacanga. Em reportagem da Folha de São Paulo [2], muito citada por outras fontes, destaque foi dado tanto para o impacto na destruição de Unidades de Conservação (UCs) quanto para o caráter intencional e de apoio ao crescente desmantelamento da fiscalização ambiental pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL), que inviabilizou a atuação do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) na região.
Apesar da concentração das queimadas em um fim de semana, o fogo e a fumaça continuaram na BR-163 paraense. Percorrem não só o entorno de Progresso como de outras cidades cortadas pela rodovia: Castelo dos Sonhos, Cachoeira da Serra (distritos de Altamira) e o distrito mato-grossense de Guarantã do Norte. Em conversas de WhatsApp e postagens no Facebook e Twitter, leio que crianças e adultos estão tendo dificuldades de respirar. Algumas famílias tiveram perdas de até milhares de reais de uma semana para a outra. Poucos parecem querer falar publicamente sobre o que aconteceu.
Fogo contra fogo
Após comentar a importância de ficar calado, aquele meu amigo apreensivo complementou, desviando o olhar: “muito ongueiro ambientalista já morreu aqui”. Desconfiada dos seus exageros polêmicos e tendo ouvido contos épicos, por vezes hilários, sobre como os progressenses botaram jornalistas e ativistas de ONGs para correr, retorqui: "ah, foi expulso né, morrer não". Ao que ele respondeu seco me olhando, "não, morreu mesmo". Sua preocupação se dava, em suas palavras, porque eu fazia perguntas demais. Aliado a isso, provavelmente não ajudava a minha aparência e modo de agir serem semelhantes aos dos “ecoabestados”, que do conforto das grandes cidades, no sudeste brasileiro ou no estrangeiro, atuariam para reprimir os “produtores” e “trabalhadores” da Amazônia. Por mais que eu mesma nunca tivesse me visto como ambientalista, nada do que eu fazia contradizia a suspeita de que eu fosse do “lado de lá”.
De um lado, se tem aqueles inequivocamente posicionados como “ambientalistas”, em especial o IBAMA e ONGs como o Greenpeace, que incriminam o desmatamento, a venda de madeira e a extração de minérios quando irregulares; de outro lado, há os autodenominados pequenos a grandes produtores rurais, garimpeiros e madeireiros que associam essas atividades a trabalho, produção e meio de conseguir se tornar proprietário – daí a máxima “dono é quem desmata”, que intitula o livro de Torres, Doblas e Alarcon (2017). Junto com essa justificação da exploração de recursos naturais, caminha a defesa da regularização fundiária sobretudo no sentido de titulação privada, embora modalidades coletivas de posse, como assentamentos rurais sustentáveis, tenham sido alternativas de acesso à terra (CAMPBELL, 2015) e recursos naturais de forma legal ou menos facilmente criminalizáveis (TORRES, 2012). A isso se soma a crença de que “pequenos e grandes” devem andar juntos, pois todos seriam igualmente prejudicados pelo “ecoterrorismo” que teria passado a mandar no governo desde Lula.
Já na primeira viagem para a região em 2013, eu não conseguia compreender o que hoje se tornou o Twitter oficial de autoridades governamentais. Naquele ano, tentei controlar a perplexidade quando ouvi de um servidor da prefeitura que “quem grila terras é o MST”. E de um pequeno agricultor que o “governo atual do PT é comunista disfarçado (...) não quer que o pobre morra (...), mas ele não quer que o cara desenvolva, o cara só tem que viver, trabalhando na miséria” [3]. Fora as recorrentes acusações de que as ONGs internacionais não querem preservar a Amazônia, mas sim explorar seu subsolo. Ou ainda imagens viralizadas nas mídias sociais semelhantes a essa abaixo, com a legenda irônica “IBAMA destrói o meio ambiente”:
Servidor do IBAMA ateando fogo em equipamento usado para atividades ilegais, prática comum da autarquia até ser coibida por Bolsonaro. A imagem se segue a outras semelhantes em vídeo sobre o “terrorismo” do IBAMA com os “pequenos” de Progresso, embora os equipamentos mostrados muitas vezes custem dezenas ou centenas de milhões de reais [4].
Mas o que mais me intrigava era a recorrência de ações coletivas anunciadas publicamente pelas entidades de produtores, madeireiros e garimpeiros contra a fiscalização ambiental e pela redução de áreas protegidas. Em 2003, trancaram a BR-163 para reduzir a Terra Indígena Baú. Dois anos depois, a rodovia foi fechada contra a suspensão de planos de manejo. Em 2006, ameaçaram derrubar a mata contra a recém-instituição de UCs. [5] Em 2011, acorrentaram o helicóptero do Ibama e, de acordo com uma liderança, ele teria controlado os manifestantes para que não tacassem fogo na sede da autarquia. Em 2013 e 2017 voltaram a trancar por vários dias a Cuiabá-Santarém em defesa da revisão dos limites e da categorização de UCs do entorno, em especial a Floresta Nacional do Jamanxim.
Ainda em 2017, a população de Cachoeira da Serra incendiou o caminhão-cegonha que trazia novos veículos para postos de fiscalização, como a sede do IBAMA em Novo Progresso. Imagem: Folha do Progresso.
Fogo contra fogo. Parar a produção do Mato Grosso através do bloqueio da via de escoamento porque o governo paralisa a produção de Novo Progresso.
Dia a dia de fogo nas florestas, barracas, agricultores
Em conversas que tive com mulheres assentadas de um projeto de assentamento do município, me contaram suas vivências com o fogo na busca por terra em um projeto anterior, para onde haviam sido levadas pelo INCRA:
[...] aí deu confronto com fazendeiro. [...]. A gente era um grupo pequeno, umas 250 famílias. Aí a gente veio embora, veio passar o final de ano aqui na cidade, que era natal. Aí os guachebas [pistoleiros] das fazenda foram lá e largaram fogo nos barraco e não sobrou nem cinza [...] (entrevista dia 02/06/2017).
Transferidas para outro assentamento, o confronto não cessou, ainda que fossem outros os agressores que passavam em seus improvisados barracos de madeira para brigar. Em uma dessas vezes, um “fazendeirão” cuja família concentra milhares de hectares na área do projeto de assentamento e em Mato Grosso, empurrou uma assentada em direção ao seu fogão a lenha ainda um pouco quente. Deixou assim uma cicatriz em seu braço, que fitei quando arregaçou as mangas ao lembrar até mesmo do tecido da camisa que o agressor usava ao sacar sua arma, sendo por sorte “acalmado” por outro fazendeiro.
Em todos os anos desde criação do assentamento em 2006, fazendeiros “mansos” ou “brabos” não só desmataram diariamente a reserva legal, queimando as espécies não vendáveis, como atearam fogo nos barracos, nas roças e pertences de assentados, ameaçando-os constantemente de morte. Só em 2018, três assassinatos foram registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em decorrência dos conflitos nesse assentamento, o Terra Nossa. Entre o primeiro e o segundo turno que elegeu Jair Bolsonaro presidente, foi executado em sua própria casa Aluisio Sampaio, mais conhecido como Alenquer, reconhecida liderança de pequenos agricultores bastante próximo de muitas famílias que continuam lutando por terra na região da BR-163 [6].
Contrafogos
Contrafogo: s.m. Fogo ateado ao encontro de um incêndio florestal para impedir-lhe a propagação; fogo de encontro (BOURDIEU, 1998).
Se realmente o "Dia do Fogo" foi uma das muitas demonstrações que apoiam a flexibilização da fiscalização ambiental, finalmente levada a cabo por Bolsonaro – eleito pela grande maioria dos progressenses para que cumprisse promessas de campanha como essa [7] –, não é uma novidade na região em termos de ações coordenadas que impactam florestas. Estas, por sua vez, não existem num vazio social, sendo a desigualdade, a apropriação e a concentração privada de terras públicas, aliadas à violência contra quem se apresenta como obstáculo ou “do outro lado”, fatores que se retroalimentam na destruição da mata e da biodiversidade [8].
Respondendo à minha curiosidade sobre como está Progresso agora com tanto fogo, outro amigo que trabalha com produtores rurais me contou esses dias que muitos estão correndo atrás do prejuízo, abrindo as porteiras para animais se salvarem e fazendo aceiros – queimadas controladas que visam conter incêndios – para proteger seus sítios e fazendas. “Produtores”, ainda que opostos aos “ambientalistas”, correram para a delegacia para registrar boletins de ocorrência contra vizinhos que queimaram intencionalmente o mato [9].
Hoje, dia 23 de agosto, tem manifestações em todo o Brasil em defesa da Amazônia, integrando a Greve Global pelo Clima. Que a indignação contra as queimadas e a mudança climática nos torne, além de resistentes aceiros, brasa que permita nascer vida através de alternativas de trabalho e de acesso justo a recursos naturais.
NOTAS
[1] Para a reportagem que antecipou a ação de queimadas como “Dia do Fogo”, ver: https://bit.ly/33Ofc9E. Acesso em 21 ago. 2019.
[2] Link da reportagem da Folha de São Paulo: https://bit.ly/2KKUcZM. Acesso em: 21 ago. 2019.
[3] Para uma etnografia que analisa narrativas semelhantes em Cachoeira da Serra, também na BR-163, ver TARCA (2014).
[4] Link do vídeo intitulado “IBAMA destrói o meio ambiente ibama faz terrorismo contra os pequenos”, de novembro de 2017: https://bit.ly/2ZgSjNC. Acesso em: 21 ago. 2019.
[5] A série de reportagens “Tapajós sob Ataque” de Maurício Torres e Sue Branford lembra o episódio. Ver no link: https://bit.ly/2n6xstg. Acesso em: 21 ago. 2019.
[6] Sobre os assassinatos relacionados aos conflitos fundiários no PDS Terra Nossa, ver notícia da CPT: https://bit.ly/2TTP4FK. Acesso em: 20 ago. 2019.
[7] 72,75% dos eleitores progressenses votaram em Bolsonaro no primeiro turno (9.122 votos). E 78,18% no segundo turno (9.454 votos).
[8] Não é coincidência que um dos incêndios em Rondônia no fim de julho consumiu a área de reserva legal do assentamento Margarida Alves, palco de acirrados conflitos entre assentados e fazendeiros. Maiores informações no link: https://bit.ly/2L4A97s. Acesso em: 20 ago 2019.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
CAMPBELL, Jeremy M. Conjuring property: speculation and environmental futures in the Brazilian Amazon. Seattle: Univ. of Washington Press, 2015.
TARCA, Karina. “Entre tempos bons e ruins”. Processos de expansão e fechamento na fronteira amazônica: o caso de Cachoeira da Serra no sul do Pará. Dissertação (mestrado em Antropologia). PPGAS/UFF, Niterói, 2014.
TORRES, Maurício. Terra Privada Vida Devoluta: Ordenamento Fundiário e Destinação de Terras Públicas no oeste do Pará. Tese de Doutorado (Doutorado em Geografia). São Paulo: PPGGH/USP, 2012.
________________.; DOBLAS, Juan; ALARCON, Daniela Fernandes.Dono é quem desmata. Conexões entre grilagem e desmatamento no sudoeste paraense. São Paulo, Urutu-branco; Altamira, Instituto Agronômico da Amazônia, 2017.
Renata Lacerda é Doutoranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS/MN/UFRJ) e integra o Núcleo de Antropologia da Política (NuAP). Atualmente pesquisa as disputas em torno dos limites e da implementação da Floresta Nacional do Jamanxim e do assentamento Projeto de Desenvolvimento Sustentável Terra Nossa.
Contato: relacer@hotmail.com
Editora responsável: Luna Ribeiro Campos