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TRANSTORNOS MENTAIS, EMPATIA E INJUSTIÇA EPISTÊMICA: UMA RELAÇÃO IMPROVÁVEL COM O TEMPO

Ana Beatriz Martins

O relatório divulgado em Fevereiro de 2017 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) mostra dados alarmantes acerca da saúde mental no Brasil. Dos 207 milhões de brasileiros que vivem no país, 7% sofrem de ansiedade ou depressão. Esta é a maior prevalência desses transtornos na América Latina[1]. Os números de suicídio seguem aumento similar. As informações mais recentes veiculadas em 2016 pelo Ministério da Saúde mostram o registro de 11.433 mortes por suicídio em território nacional, o que significa um acréscimo de 2,3% de casos em relação ao ano anterior. Há ainda uma subnotificação dos registros, o que sugere que esse número pode ser bem maior [2].

Especialistas questionam as causas desse fenômeno, uma vez que o Brasil – especialmente – é conhecido como um país de “gente alegre e feliz”. Alguns sugerem que os transtornos mentais entre os brasileiros estão sendo amplificados pela prolongada crise política e econômica.

O que parece ser consenso, no entanto, é que a empatia – por parte tanto dos profissionais de saúde quanto dos familiares e amigos – pode colaborar positivamente na vivência desses momentos. Será que somos empáticos? Havi Carel, uma filósofa que sofreu de uma doença intratável no sistema respiratório, argumentou que a dor é exacerbada pela apatia que você encontra quando está doente. Segundo ela, há muitas coisas terríveis na doença, mas a maior delas é a falta de empatia (Carel, 2007).

Seisuke Hayakawa, professor na Universidade de Tóquio, argumenta que, na verdade, não há falta de empatia, mas excesso. Somos excessivamente empáticos em relação a uma narrativa positiva de recuperação (Hayakawa, 2019). Isso se dá de tal maneira que nós não conseguimos ser empáticos diante de uma narrativa mais caótica de sofrimento.

Aqui é importante pontuarmos uma conceituação elaborada por Arthur Frank, um importante sociólogo da saúde. Nela, Frank pensa em dois tipos de narrativas: (1) narrativas de restituição e (2) narrativas de caos. A primeira delas é elaborada, basicamente, dentro da lógica: doença, tratamento, reabilitação, vida normal. O sofrimento é temporário: “dentro de duas semanas, João estará de volta ao trabalho”; “hoje, Maria voltou a suas atividades, e à sua vida produtiva”. A segunda delas não pode propriamente ser contada, apenas vivida: “é difícil imaginar uma vida em que nunca se melhora”.

Observei que há um aspecto temporal nessas perspectivas. As narrativas de restituição, em geral, se relacionam com uma visão linear do tempo e contam com uma recuperação progressiva, que supera dia a dia as adversidades. Há uma previsibilidade nessa narrativa, um horizonte de expectativa, e ela é socialmente preferível e dominante, hoje, nas sociedades Ocidentais.

As narrativas de caos, por sua vez, são anti-narrativas - no sentido ocidental moderno -, pois não há um horizonte de futuro e nem esperança de recuperação previsível. Elas se aproximam, no caso dos transtornos mentais, a uma narrativa circular em que, muitas vezes, se vivencia uma melhora e/ou piora no mesmo dia ou semana. Essas narrativas são socialmente inaceitáveis.

Argumento que a aceitabilidade - ou não – nas narrativas de transtornos possui estreita relação com a concepção de tempo dominante em determinado grupo ou sociedade, tendo como consequência direta a empatia ou apatia.

Barbara Adam inicia um dos seus principais livros afirmando que o tempo é algo tão inegável quanto invisível (Adam, 1990). Diante disso, não damos atenção a ele e nem pensamos em como ele é organizado. No entanto, ele cobra seu preço. Há vários autores que caracterizaram sistematicamente o tempo ocidental moderno: horizonte de expectativa, previsibilidade, melhora e aperfeiçoamento ao longo do tempo, evolução, entre outras características.

É possível enxergarmos afinidade entre o tempo ocidental moderno e a preferência clara por narrativas de restituição. O resultado disso é uma empatia significativa em relação às doenças que podem ser contadas através das narrativas de restituição, e uma falta de empatia notável com as doenças crônicas ou transtornos mentais, que se aproximam mais de uma narrativa caótica.

Tolstói, ao descrever a experiência da doença vivida por Ivan Ilitch, afirma que

o que mais atormentava Ivan era o fingimento, a mentira, que por alguma razão eles todos mantinham, de que ele estava apenas doente e não morrendo e que bastava que ficasse quieto e seguisse as ordens médicas que ocorreria uma grande mudança para melhor. Mas ele sabia que nada do que eles fizessem teria outro resultado que não mais agonia, mais sofrimento e a morte.

Pacientes caóticos, segundo Miranda Fricker, ou são forçados ao silêncio pelo fato de terem que fingir uma positividade em relação ao futuro, ou seja, forçados a forjar uma narrativa linear quando a mesma não existe; ou falam sobre as dificuldades da doença, mas a severidade de suas experiências são substancialmente subestimadas. A esse fenômeno, ela chama injustiça epistêmica, uma vez que seus testemunhos de sofrimento severo são tratados erroneamente ou injustamente.

Há uma opressão ou injustiça epistêmica, fruto de uma notável falta de empatia em relação a doentes crônicos ou a pessoas acometidas por transtornos mentais. Alego que essa falta de empatia descrita acima é uma tendência da sociedade ocidental moderna. Há uma pressão generalizada em relação a breve restituição dos doentes, e isso se dá em virtude da nossa própria elaboração social do tempo.

Duas concepções de tempo distintas (linear e circular) se conectam a duas narrativas (restituição e caos) e tornam a empatia mais ou menos possível dependendo do contexto, da sociedade, da concepção de tempo, e do tipo de doença. Isso não significa que a responsabilidade não seja nossa. A maioria de nós segue com a concepção de tempo ensinada pra nós, e, como consequência disso, adere mais facilmente a convencional narrativa da restituição, contribuindo para a perpetuação da opressão e injustiça epistêmica contra aqueles dotados de sofrimento caótico.

É preciso levar a sério essa injustiça empática massiva, pois ela está tão intrinsecamente estruturada na sociedade leiga quanto na medicina ocidental. Ela perpassa desde a formação do profissional da saúde e a elaboração e desenvolvimento de tratamentos médicos, até a vivência de cada um de nós. A solução? Talvez o velho exercício da alteridade ajude e seja uma opção: olhar para outras culturas dotadas de outras concepções de tempo, perceber como elas lidam com o caos e o sofrimento, onde residem suas injustiças epistêmicas, como se sentem seus doentes, e como podemos aprender com elas.

NOTAS

[1] Brasil sofre de epidemia de ansiedade e depressão. Humanista. Jornalismo e Direitos Humano, nov., 2017. Disponível em: https://www.ufrgs.br/humanista/2017/11/27/brasil-sofre-com-epidemia-de-ansiedade-e-depressao/

[2] Violência e depressão, a ponta do iceberg de um país em constante sobressalto. El País, dez., 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/14/politica/1544814550_512096.html

REFERÊNCIAS

ADAM, Barbara. (1990). Time and Social Theory. Polity Press.

CAREL, Havi. (2007). Illness: The Cry of the Flesh. Routledge.

FRANK, Arthur. (1995). The Wounded Storyteller: Body, Illness & Ethics. Chicago University Press.

FRICKER, Miranda. (2007). Epistemic Injustice: Power & the Ethics of knowing. Oxford University Press.

HAYAKAWA, Seisuke. (2019). Talk: Rethinking Empathy as Shared Epistemic Responsibility in the Context of Illness. 5th East West Philosopher´s Forum. 15-17 May 2009. Sydney, Au.

TOLSTÓI, Liev. (2009 [1886]). A morte de Ivan Ilitch. Editora 34.

Ana Beatriz Martins é Doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), tendo atuado como pesquisadora visitante no Departamento de Sociologia da Universidade de Cambridge, com bolsa CNPq . Atualmente é pesquisadora na University of Sydney, Austrália. É especialista em Teoria Social, com interesse específico em debates sobre as concepções de tempo na modernidade.

 

Editora responsável: Marcia Rangel Candido

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