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  • Marília Bernades Closs

DIMENSÕES DA VIOLÊNCIA NA AMÉRICA DO SUL: TRANSFORMAÇÕES NO NOVO CICLO CONSERVADOR?


A violência é uma constante na agenda política sul-americana. Ainda que sejam múltiplos os conceitos de violência – desde as concepções de violência simbólica até violência estrutural -, este ensaio pretende discutir especificamente a violência física, a manifestação concreta do conflito. Na história recente da América do Sul, com as ditaduras militares, o debate sobre a violência deu centralidade à construção dos Estados de Segurança Nacional e à mobilização da força tanto por parte dos aparatos de segurança e de repressão quanto dos grupos de libertação, que se valiam de estratégias de guerrilha para o combate aos governos autoritários.

A partir dos anos 1970 e 1980, no entanto, emergiu a principal e mais dramática questão ligada à violência na América do Sul. O subcontinente se consolidou como um dos mais violentos do mundo: 37% dos homicídios globais foram contabilizados na América Latina, onde estão somente 8% da população terrestre. Duas cidades sul-americanas estão entre as mais violentas das existentes e, desde 2000, mais de 2,5 milhões de latino-americanos foram assassinados, 66% dos quais com a utilização de armas de fogo (IGARAPÉ, 2019). Os números de homicídios, latrocínios, roubos, assaltos e sequestros são resultado de diversos processos sociais materializados na ascensão de variados fenômenos de criminalidade. Ao longo dos anos, tornou-se facilmente observável que o cenário iria se complexificar com o aparecimento do crime organizado, sobretudo ligado ao narcotráfico, bem como com o surgimento paulatino de cartéis e facções, principalmente em países como Brasil, Colômbia e Peru.

Por isso, a maior parte da agenda de violência na América do Sul esteve ligada ao desenvolvimento e à consolidação de atores ligados ao crime. Isso se deu também na agenda internacional da região: a guerra às drogas, promovida de forma absoluta pela política externa dos Estados Unidos para as zonas latino-americanas, foi a principal agenda securitária continental até o início dos anos 2000. Muitas vezes, a necessidade de construção de narrativas de combate ao inimigo por parte da política externa estadunidense se ampliou, assim como se alargou o conceito de tráfico/traficante, já que em diversas circunstâncias o termo foi derivado em outras concepções, como “narcoguerrilha” ou “narcoterrorismo”.

No entanto, em termos regionais e internacionais, a América do Sul é considerada uma área geográfica de paz. Entre os séculos XX e XXI, o subcontinente esteve entre as regiões que menos passaram guerras tradicionais. O último conflito interestatal de grande dimensão foi a Guerra do Chaco, entre 1932 e 1935, além do conflito interno entre o Estado e as guerrilhas na Colômbia. A partir dos anos 2000, inclusive, foi criada uma arquitetura institucional que buscava o fomento da mediação e do diálogo para a promoção da solução pacífica de controvérsias. O principal exemplo disso é a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e seu Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) que atuaram com frequência para que pequenas escaramuças não evoluíssem para conflitos maiores[1]. Alguns autores chegaram a classificar a América do Sul como “comunidade de segurança” (HURREL, 1998), “zona de paz híbrida” (BATTAGLINO, 2012) ou de “paz negativa” (MARES, 2001).

Mais que isto: o próprio entendimento sobre “ameaça” se transformou. Se até o fim dos anos 1990, o tráfico de drogas e o terrorismo estavam entre as principais agendas não apenas de segurança, mas também de defesa, a partir dos anos 2000 estes conceitos começaram a se separar gradativamente: houve uma maior compreensão a nível dos governos regionais de que os desafios à defesa estão ligados a agendas externas, enquanto a segurança seria de agenda principalmente interna. Isso significou, na prática, que os atores ligados à defesa e à segurança pública se tornaram diferentes, ao menos na maior parte das vezes.

Em síntese, até o período contemporâneo, a América do Sul era um continente com altos e graves índices de violência interna – ou seja, no campo da segurança pública -, mas de paz regional e internacional, ainda que essa paz estivesse muitas vezes sob pressão ou que fosse uma “paz negativa”. De 2015 para cá, contudo, é possível observar algumas mudanças no cenário latino-americano. O novo ciclo eleitoral trouxe ao aparato estatal governos à direita do espectro político, como o de Mauricio Macri (2015) na Argentina, Sebastián Piñera (2017) reeleito no Chile, Iván Duque (2017) na Colômbia, Lenin Moreno (2016) no Equador e Jair Bolsonaro (2018) no Brasil. Isso significou transformações concretas para a política da região: desde 2016, se vê o esvaziamento e o desmonte[2] da Unasul e de todo aparato de mediação que a instituição construía dentro de si.

Além disso, é possível vislumbrar uma alteração no padrão de relação entre civis e militares, já que os últimos voltaram a ter um papel importante na burocracia e na disputa política, com especial destaque à composição dos ministérios de Jair Bolsonaro no Brasil. É observável, também, que tensões e pequenos confrontos fronteiriços voltaram a ocorrer com regularidade (Por exemplo: as instabilidades na fronteira entre Chile e Bolívia ou as tensões a respeito da construção de um muros entre Equador e Peru e entre Argentina e Paraguai)[3]. Por fim, cabe destacar a crise na Venezuela, pois certamente se trata do conflito armado mais tenso destes últimos anos no subcontinente. Militarizado interna e regionalmente, o país experimenta anos de violência sem soluções concretas; e tem enfrentado o risco real de engajamento militar tanto por parte dos Estados vizinhos quanto dos Estados Unidos. Se, até pouco tempo atrás, um conflito armado não parecia cabível à América do Sul, hoje temos que repensar as condições de paz no subcontinente.

Os últimos anos também têm mostrado com mais dramaticidade o cenário de segurança pública. É notável, por exemplo, a expansão de algumas facções – sobretudo brasileiras, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) ou o Comando Vermelho (CV) – para outros estados e países em que antes não atuavam. Ademais, cresceu, de uns anos para cá, a utilização da militarização da coisa pública como principal forma de combate ao tráfico de drogas. Mais uma vez, a narrativa de que o narcotráfico é a principal ameaça à segurança e à defesa sul-americanas se torna hegemônica e tem como consequência a secutirização de diversas agendas sociais. A “guerra às drogas” e ao tráfico volta ao centro da agenda sul-americana, e os resultados não têm sido outros que não a intensificação do genocídio da população negra e originária do subcontinente, além do gritante diagnóstico de que a estratégia de combater a violência com mais violência é um completo fracasso.

Se pode, todavia, ir além. Há de se compreender que hoje existem múltiplas direitas governando os países sul-americanos: de um espectro político mais liberal clássico, no qual poderíamos encaixar Macri, a uma direita mais conservadora, onde situamos Bolsonaro e Duque (ZUCATTO, 2019), que herda muito do conteúdo programático do uribismo[4]. A clivagem fundamental entre estes setores, no entanto, reside justamente na forma como irão se relacionar com a violência – afinal, a perspectiva política de Bolsonaro e Duque mobiliza a violência como principal solução para o conflito social. Bolsonaro constrói sua plataforma baseada no combate constante à esquerda e sobretudo ao legado do Partido dos Trabalhadores (PT), executa um projeto de segurança pública baseado quase exclusivamente no uso da força e foi eleito tendo a flexibilização de posse e porte de armas como principal bandeira.

Duque, por outro lado, foi eleito retomando o legado da Política de Seguridad Democrática de Álvaro Uribe e tendo como principal plataforma a revogação e/ou reforma dos acordos de paz com as Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia – Ejército del Pueblo (FARC-EP). Desde que se elegeu, cresceu consideravelmente o assassinato de lideranças de movimentos sociais no país. A construção constante de inimigos internos e externos e a mobilização frequente de recursos para eliminá-los – muitas vezes fisicamente – é a principal característica da forma de governança que tem sido operada nesses países. A construção de agendas de securitização e militarização da vida pública parece estar sendo capaz de construir não apenas conteúdos programáticos internos, mas de juntar agendas domésticas e externas. O uso da violência e da força tem sido o principal conteúdo programático ao redor do qual novos e antigos projetos à direita estão se articulando. E isto ultrapassa a barreira interna/externa dos Estados, já que organiza as políticas doméstica e externa dos países.

A violência na América do Sul está inserida em diversos aspectos da vida social. Não obstante, temos de observá-la com especial atenção a partir do momento em que ela é mobilizada como principal bandeira de um projeto que, hoje, está no mais alto posto dos Estados brasileiro e colombiano. O padrão de uso da força no subcontinente mudou – e velhos discursos que colocam problemas da agenda social como principal inimigo a ser combatido voltaram a ser hegemônicos e a ser os principais condicionantes de agendas domésticas e externas. Parece difícil afirmar que terá solidez um projeto baseado quase exclusivamente no governo pelo caos (LIMA; ALBUQUERQUE, 2019) e na construção constante de opositores a serem eliminados – sobretudo violentamente. O que já parece possível afirmar é que seus resultados, desde agora, são dramáticos.

NOTAS

[1] Mais informações em: http://opsa.com.br/wp-content/uploads/2017/01/Boletim_OPSA_2019_n1-jan-mar.pdf.

[2] Mais informações em: http://opsa.com.br/wp-content/uploads/2017/01/Boletim_OPSA_2019_n1-jan-mar.pdf.

[3] Mais informações em: LONDOÑO, Andrés. Fronteiras sul-americanas: reflexões sobre as tensões e os conflitos recentes. Boletim OPSA, 2017. Disponível em: http://opsa.com.br/wp-content/uploads/2018/01/Boletim_OPSA_2017_n04-outdez.pdf. (Acesso em 02 de junho de 2019).

[4] O termo “uribismo” se refere ao legado político do ex-presidente do colombiano Álvaro Uribe.

REFERÊNCIAS

BATTAGLINO, Jorge M. "The Coexistence of Peace and Conflict in South America: toward a new conceptualization of types of peace". Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v.55., n.2, 2012.

HURRELL, Andrew. "An emerging security community in South America?" In: ADLER, E; BARNETT, Michael. Security Communities. Nova York: Cambridge University, 1998.

IGARAPÉ. Observatório de Homicídios, 2019. Disponível em: https://igarape.org.br/apps/observatorio-de-homicidios/. Acesso em: julho/2019.

LIMA, Maria Regina Soares de. ALBUQUERQUE, Marianna. "O estilo Bolsonaro de governar e a política externa". Boletim OPSA, Rio de Janeiro, n.1, 2019.

MARES, David. Violent Peace. Nova Iorque: Columbia University Press, 2001.

ZUCATTO, Giovana Esther. "Ascensão da Direita na América do Sul". Boletim OPSA, Rio de Janeiro, n.1, 2019.

Marília Bernades Closs é Doutoranda e Mestra em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp-Uerj) e Bacharela em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora do Núcleo de Estudos em Teoria Social e América Latina (NETSAL) e do Observatório Político Sul-Americano (OPSA). .

 

Editora responsável: Marcia Rangel Candido

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