UM SONHO POSSÍVEL? EDITORA MULHERES E O FEMINISMO EDITORIAL NO BRASIL: UM TRIBUTO À ZAHIDÉ LUPINACCI
O chamado “resgate” da literatura de autoria feminina produzida no Brasil do século XIX foi um marco nos estudos sobre a trajetória das mulheres e questões de gênero. Na década de 1970 já poderia ser percebida uma movimentação para a articulação dos estudos sobre a mulher; mas, na literatura, enquanto campo de investigação organizado e reconhecido institucionalmente, só pode ser identificado com a organização do Seminário Regional sobre a Mulher na Literatura (Universidade Federal de Santa Catarina, 1985), e no ano seguinte, criou-se o Grupo de Trabalho Mulher na Literatura (ANPOLL, 1986).
A leitora poderá estranhar, num primeiro momento, e certamente irá se perguntar: “-Ora, a mulher sempre esteve presente na literatura nacional. Vários nomes de destaque, em grandes obras, como personagens principais de romances canônicos do século XIX. Precisamos falar sobre a mulher na literatura?”
Sim, precisamos falar justamente da mulher como autora de romances, da mulher como escritora e agente de suas próprias histórias e não como meras personagens de obras literárias de autoria masculina. Essa foi a preocupação de várias pesquisadoras que começaram a questionar a formação de nosso cânone nacional composto, sobretudo no século XIX, por homens – e acrescentaria, por homens brancos, de classe social abastada. Afinal, cânone tem sexo? Sim, cânone tem sexo, cor, classe social...
Mas, vamos por partes. Neste texto começaremos a problematizar a frase “cânone tem sexo”. Heloísa Buarque de Holanda e Lúcia Nascimento Araújo em Ensaístas Brasileiras: mulheres que escreveram sobre literatura e artes de 1860 a 1991 (1993) ponderam que apesar da institucionalização dos estudos feministas em literatura no Brasil, não houve um reconhecimento, por parte considerável da comunidade científica, da legitimidade ou da capacidade dos estudos feministas oferecerem um novo corpus teórico e metodológico para a crítica literária.
É aqui que podemos localizar a importância da professora, pesquisadora e editora Zahidé Lupinacci Muzart e da Editora Mulheres. Para as atuais estudiosas da temática, o nome de Zahidé Muzart e a Editora Mulheres soará com a importância e a força crucial para o desenvolvimento das pesquisas sobre autoria feminina, principalmente no século XIX brasileiro. Aqui escrevo como uma pesquisadora iniciante que busca inspiração na trajetória de Muzart, bem como celebro cada uma das páginas editadas por essa grande pesquisadora feminista. Portanto, tomei a singela decisão de conversar com colegas que se dedicam ao mesmo tema e encontram-se imbuídas pelo mesmo ideal de fazer florescer cada vez mais esse belo campo de pesquisas, transformando este texto em um breve memorial e tributo à Zahidé Muzart e seu empenho editorial.
A Editora Mulheres foi fundada em 1995 por iniciativa de três professoras aposentadas do curso de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Zahidé Lupinacci Muzart, Elvira Sponholz e Susana Funck, especialistas em autoria feminina e vinculadas à linha de pesquisa “Mulher e Literatura” da ANPOLL (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística).
Mulheres Ilustres do Brasil (1899) da escritora baiana Maria Ignez Sabino Pinho Maia (1853-1911) foi o primeiro título do catálogo, que presenteou leitoras e leitores com uma edição fac-símile excepcional, em outubro de 1996. A escolha desta obra deixou patente o vínculo da editora com a produção de autoria feminina brasileira do século XIX, pois a mencionada obra de Ignez Sabino aborda a história de mulheres brasileiras que se destacaram na história nacional, desde o Brasil Colônia até o início do governo republicano, sobretudo nas letras. Há ainda, por parte de Sabino, em fins do século XIX, e por parte da Editora Mulheres, o urgente compromisso com o resgate de nomes femininos na literatura nacional e internacional, revelando o papel crucial da literatura como instrumento de promoção da igualdade de gênero.
Com aproximadamente duas décadas de atividades, a casa editorial conseguiu resgatar nomes fundamentais da literatura feminina nacional e impulsionou pesquisas acadêmicas de altíssima relevância abordando a atuação das mulheres em diversos campos das ciências humanas e lançando mais de 90 títulos desde a sua criação. Atualmente, esses livros tornaram-se raros e dificilmente são encontrados em sebos e bibliotecas universitárias. A dificuldade nos mostra a relevância desse projeto editorial e a importância de que ele tenha continuidade para promover o desenvolvimento das pesquisas sobre história das mulheres e relações de gênero.
Segundo Zahidé Muzart, em “Histórias da Editora Mulheres” (Revista Estudos Feministas, 2014), o grupo originalmente composto por três pesquisadoras “se dissolveu por razões várias e pessoais”, por isso, ela continuou sozinha a empreitada editorial, superando obstáculos, tais como: a inexistência de reedições dos livros escritos no século XIX, a falta de verba, as dificuldades em atualizar a língua portuguesa, revisar e distribuir os títulos - considerando que a Editora Mulheres era uma pequena editora com catálogo altamente especializado.
O catálogo da editora reúne títulos sobre literatura de autoria feminina, história das mulheres e estudos de gênero. Esses livros são divididos em seis coleções: Romance; Poesia; Viagem; Cartas; Feministas; Ensaios; além de índices bibliográficos e obras de referência. Com o principal objetivo de resgatar a produção de escritoras brasileiras do século XIX e início do XX, a Editora Mulheres destacou-se reeditando romances de notáveis escritoras como Ignez Sabino (Lutas do Coração); Maria Benedicta Camara Bormann [Délia] (Aurélia, Duas Irmãs e Lésbia), Maria Firmina dos Reis (Úrsula), Emília Freitas (A Rainha do Ignoto), Carmem Dolores (A Luta), Julia Lopes de Almeida, (com dez títulos publicados), entre outras autoras nacionais e internacionais.
Mesmo considerando sua alta importância e pioneirismo, a Editora Mulheres teve seu trabalho interrompido em 2015. A doutora em Letras Valéria Andrade, Professora da Universidade Federal de Campina Grande, que foi orientada por Zahidé Muzart no início dos anos 1990, nos conta, emocionada, “a editora fechou suas portas após o falecimento da Zahidé, de tão saudosa memória, pois os familiares não se motivaram a dar continuidade ao sonho tornado verdade por ela. Uma lástima, para usar uma expressão bem dela quando se sentia triste por alguma situação mal conduzida e mal resultada”.
Para a historiadora Gabriela Trevisan, mestranda em História Cultural na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), que estuda a escritora carioca Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), Zahidé Muzart promoveu a circulação de muitas publicações conhecidas pelo público dos séculos XIX e início do XX, bem como obras póstumas não publicadas à época, que demonstram o trabalho de pesquisa de Zahidé Muzart. Segundo a socióloga Luna Ribeiro Campos, doutoranda em Sociologia na UNICAMP e pesquisadora da trajetória e das obras da pensadora franco-peruana Flora Tristan (1803-1844), sua pesquisa de doutoramento apenas foi possível por conta da tradução do livro Peregrinações de uma pária (2000), que teve sua primeira e única edição pela Editora Mulheres.
No catálogo da Editora Mulheres, publicado em novembro de 2015, encontramos uma carta comovente, junto com um apelo: “Enquanto a dor não nos permite uma reflexão menos esmaecida sobre a Editora Zahidé (ou) a Zahidé Editora, ajudem-nos a perpetuá-la. Sim, a perpetuar a Zahidé Editora e a Editora Zahidé que, juntas, formam a Editora Mulheres”. Atualmente, alguns desses títulos editados por Zahidé Muzart encontram-se disponíveis em sebos espalhados pelo Brasil. O Sebo Cia do Saber, de Florianópolis, Santa Catarina, concentrou por aproximadamente dois anos, entre 2017 e 2018, os poucos livros restantes do acervo da Editora Mulheres. Todavia, o acesso aos parcos títulos ainda existentes é muito dificultoso, já que a maior parte está esgotada.
Anna Faedrich, especialista em literatura brasileira e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), destaca a importância crucial da editora para o questionamento da formação de nosso cânone literário, notadamente masculino e questiona o gradual desaparecimento das obras dessas escritoras que tiveram repercussão e visibilidade em sua época.
Para o desenvolvimento de suas pesquisas, que resultaram na publicação de dois volumes pela Gradiva Editorial, em parceria com a Fundação Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro), Faedrich empreendeu um grande esforço para estabelecer diálogos com familiares das escritoras Narcisa Amália (1856-1924) e Albertina Bertha de Lafayette Stockler (1880-1953), demonstrando a necessidade de subterfúgios para suprir a ausência de edições dos livros escritos por essas autoras, que sofreram o processo de apagamento da história literária nacional. Assim, Anna declara que:
“Em relação às oitocentistas, muito do material que consegui foi graças ao contato com a família. No caso da Albertina Bertha, foi sua bisneta, Beth Stockler, quem me abriu as portas, no sentido de disponibilizar obras raras da autora, como é o caso dos livros Estudos, 1ª série (1920), e Estudos, 2ª série (1948).”
Para os estudos sobre Narcisa Amália, a pesquisadora teve contato com sua bisneta Nilza Ericson, até o momento desconhecida pelos biógrafos da poeta. Após a edição de duas obras organizadas por Anna Faedrich, a publicação do romance de Albertina Bertha, Exaltação em 2015 e o livro de poesias Nebulosas, de Narcisa Amália, em 2017, a Gradiva Editorial não continuou com a série dedicada à escrita de autoria feminina, apesar do trabalho de alta qualidade e importância realizado pela pesquisadora.
Infelizmente, não encontramos no Brasil uma editora que se equipare ao trabalho outrora realizado por Zahidé Muzart. Notadamente, ainda que possam existir alguns títulos sobre autoria feminina, feminismo e gênero, dispersos em catálogos de outras editoras, não há o compromisso expresso com o feminismo editorial praticado pela Editora Mulheres e Zahidé Muzart, promovendo a circulação de pesquisas de suma importância para o avanço e divulgação desses temas no Brasil.
Valéria Andrade, pesquisadora especializada na produção teatral de brasileiras do século XIX, como Josephina Alvares de Azevedo (1851-1913) e Maria Angélica Ribeiro (1829-1880) abordadas nos títulos da Editora Mulheres, Índice de Dramaturgas Brasileiras do Século XIX (1996) e O Florete e a Máscara: Josefina Álvares de Azevedo, dramaturga do século XIX (2001), exemplifica esse ponto ao afirmar a imensa importância da Editora Mulheres para a promoção da circulação de suas pesquisas sobre as mulheres que se dedicaram à escrita teatral no século XIX brasileiro e, acrescenta, “se não resultou em impactos mais significativos, terá sido pelas contingências discriminatórias ainda incontornáveis do nosso mercado editorial.”
Diante disso, quais seriam as alternativas?
Ludmila de Souza Maia, doutora em História Social pela UNICAMP (2016) e estudiosa da obra de Nísia Floresta (1810-18885) lança a hipótese de que a UFSC e sua editora poderiam assumir o projeto da Editora Mulheres, ainda que, atualmente, tal iniciativa seja difícil diante da ausência de recursos e a falta de vontade política. Contudo, declara Ludmila “a UFSC seria a mais indicada devido a solidez da área de estudos de gênero que possuem.”
Anna Faedrich defende uma ação coletiva, ao declarar que poderíamos promover, em conjunto, algo mais democrático, com acesso livre e on-line o que se mostra interessante e promissor, ao alimentar-se de um feminismo editorial democrático. Nossa proposta- e aqui me insiro como uma das mãos prontas para esse trabalho coletivo- seria organizar um projeto conjunto com outras pesquisadoras para digitalizar essas obras que já se encontram em domínio público.
Esse parece ter sido o propósito original de Zahidé Muzart e seu legado precisa, urgentemente, ter continuidade, expressando assim o desejo de todas as pesquisadoras e professoras mencionadas neste texto, que se dedicam ao estudo da escrita de autoria feminina no século XIX e pretendem, com o seu trabalho, lançar luz sobre a agência de mulheres escritoras, pensadoras e precursoras de um legado cultural, político e social que se perpetuou para além do século XIX e não pode ser esquecido.
Laila Correa e Silva é doutoranda em História Social pela UNICAMP e bolsista FAPESP.
Editor responsável: Luna Campos e Leonardo Nóbrega