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Marcia Rangel Candido

BREVES COMENTÁRIOS A “SOBRE O AUTORITARISMO BRASILEIRO”, DE LILIA MORITZ SCHWARCZ


Talvez um dos nossos grandes desafios hoje nas ciências sociais seja compreender o Brasil que simultaneamente tornou possível e emergiu da eleição presidencial de 2018. Isto, se a tomamos como um marco temporal para visualizar a paulatina consolidação de perspectivas e projetos nacionais que parecem caminhar na contramão dos anos recentes da nossa história política. Não é de hoje nem são poucos os esforços nesse sentido, que se voltam para diversos temas e questões pertinentes à elucidação do Brasil atual – as manifestações de rua desde 2013 [1], os novos grupos e coletivos da direita política [2], o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff [3], entre tantos outros.

Acredito ser pertinente localizar o novo livro da antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, “Sobre o autoritarismo brasileiro” (Companhia das Letras, 2019), como parte desse esforço coletivo e difuso de indagação acerca de um Brasil assolado pelo fantasma do conservadorismo e do seu passado autoritário. Este “ensaio em forma de livro”, para usar expressão da autora, tem como objetivo expresso “reconhecer algumas das raízes do autoritarismo no Brasil, que têm aflorado no tempo presente mas que, não obstante, encontram-se emaranhadas nesta nossa história de pouco mais de cinco séculos”. Trata-se de uma contribuição que se singulariza, nesse debate, não só pela abrangência dos temas abordados, como por um enfoque analítico que busca persistentemente deslindar os fios que repõem e transformam, no presente, problemáticas seculares da sociedade brasileira.

A história é, assim, um elemento central na análise de Schwarcz (o que não surpreende quem já está familiarizado/a com sua vasta e influente obra). Ou, sendo mais específico, os usos a que a história pode estar sujeita em determinadas conjunturas políticas. O livro inicia e finaliza remetendo justamente a essa dimensão. A autora alerta, já desde as primeiras páginas, sobre como é característico de governos autoritários a construção de narrativas e mitologias nacionais que tendem ou a escamotear problemas e desigualdades presentes, ou a justifica-los – “Naturalizar a desigualdade, evadir-se do passado, é característico de governos autoritários que, não raro, lançam mão de narrativas edulcoradas como forma de promoção do Estado e de manutenção do poder”, afirma. Em outras palavras:

Todo governo procura usar a história a seu favor. No entanto, e não por coincidência, governos de tendência autoritária costumam criar a sua própria história – voltar ao passado buscando uma narrativa mítica, laudatória e sem preocupação com o cotejo de fatos e dados – como forma de elevação. Para tanto, reconstroem o passado nacional como se ele fosse uma idade de ouro (que ele não foi), ou os “tempos de antes”, na bela expressão do escritor francês Frédéric Mistral, como espaços paradisíacos... (p. 225).

A autora argumenta que essas “batalhas pelo monopólio da verdade” são frequentes em períodos de mudança de governo ou regime político. Em tais circunstâncias, “a história se transforma numa sorte de justificativa, enredo e canto de torcida organizada”, desempenhando um papel estratégico nas políticas de Estado, ao engrandecer certos eventos, suavizar alguns problemas (ou potencializar outros), de acordo com os projetos e valores políticos que alcançam hegemonia na conjuntura em questão.

A forma como a autora opta em se contrapor a esse uso da história é justamente recorrendo a ela para contextualizar e problematizar certas visões e discursos acerca de problemáticas persistentemente arraigadas na formação da sociedade brasileira. E, nesse sentido, busca discutir uma ampla variedade de temas, todos pertinentes à compreensão dos dilemas atuais do Brasil.

O livro apresenta, assim, uma análise [4]: da constituição da linguagem da escravidão no Brasil e a forma como o racismo é permanentemente reconfigurado, reforçando dinâmicas discriminatórias e índices de exclusão (capítulo “Escravidão e racismo”); da concentração de poderes políticos e econômicos que acompanha a formação da sociedade brasileira, do período colonial ao momento presente (capítulo “Mandonismo”); da conformação e perseverança de práticas patrimonialistas no interior do nosso sistema político (“Patrimonialismo”); das várias formas que a prática da corrupção assumiu ao longo do tempo, em particular no campo da política institucional, e suas consequências no que diz respeito à desagregação do espaço público, desvio de recursos e fragilização dos direitos dos cidadãos (“Corrupção”); das várias facetas da persistente desigualdade social brasileira, em particular no âmbito da educação (“Desigualdade social”); sobre a escalada da violência, urbana e rural, no país (“Violência”); de como os marcadores de diferença “raça” e “gênero” se interseccionam na delimitação de desigualdades (“Raça e gênero”); da conformação de uma cultura do estupro no Brasil e da difícil luta dos direitos da população LGBTTQ (“Raça e gênero”); e, por fim, sobre o aumento da intolerância e dos conflitos num cenário político extremamente polarizado como o atual (“Intolerância”).

A forma de abordagem desses temas tão diversos é relativamente constante, no livro, marcada, de um lado, pela investigação de “raízes históricas” do problema em questão e, de outro lado, pelo delineamento das suas transformações ao longo do tempo, desaguando no momento presente da sociedade brasileira. Em que pese a importância das instituições e padrões de sociabilidade forjados ainda no nosso passado escravocrata para entendermos problemas como racismo, sexismo, mandonismo, patrimonialismo, corrupção etc., talvez um dos aspectos mais cruciais da análise esteja na busca pela compreensão dos processos que dotam esses problemas de um caráter sempre atual, de padrões e instituições sociais que persistentemente se renovam no Brasil.

Não se trata, portanto, de apenas explicar o presente pelo passado, mas, sim, de perseguir os mecanismos da constante (re)atualização desse passado. Ou, como diz a autora, de “criar pontes, não totalmente articuladas e muito menos evolutivas, entre o passado e o presente”. É nessa linha de argumentação que, para além da fundamentação histórica de cada uma das problemáticas abordadas, Schwarcz recorre a uma variedade de dados de pesquisa para construir um painel de uma sociedade brasileira marcada, contemporaneamente, por desigualdades no acesso à educação e à serviços de saúde, por uma violência urbana que atinge sobretudo a população negra, por altas taxas de feminicídio e de violência contra a população LGBT – entre outros dados igualmente alarmantes.

Todas as problemáticas abordadas são, também, lentes que possibilitam a contextualização e crítica de discursos e propostas políticas que marcaram os debates recentes no Brasil e, em particular, as eleições de 2018. Ao longo do livro, Schwarcz apresenta dados e argumentos que possibilitam o questionamento de um governo (ou de um projeto político, para falarmos mais amplamente) que: se recusa a reconhecer a importância do combate ao racismo (“Escravidão e racismo”); fundamenta-se na imagem quase messiânica de um presidente-pai, autoritário e severo (“Mandonismo”); apropria-se da máquina do Estado para fins particulares (“Patrimonialismo”); moraliza o combate à corrupção, que é sempre um problema do “outro”, mas nunca do grupo no poder (“Corrupção”); endossa iniciativas de controle sobre a prática pedagógica que transformam a escola num campo privilegiado de litígio (“Desigualdade social”); constrói propostas imediatistas de combate à violência que, ao fim e ao cabo, podem só incentivá-la (“Violência”); não se furta à tentativas de controle dos corpos e sexualidades (“Raça e gênero”); e dissemina ódios segregativos, incentivando a expressão aberta de uma polaridade contenciosa (“Intolerância”).

Evidentemente que se trata, essa, de uma leitura particular das discussões presentes no livro – pois reduzi-lo e sintetiza-lo à crítica a um governo seria não só incorreto como castrador da sua potência criativa. Acerca de cada uma das práticas que acabo de mencionar, a autora dedica-se a mostrar como elas perseguem (e são reforçadas por) diversos governos (imperiais, republicanos e ditatoriais), ao longo da história política brasileira. Discute, por exemplo, a construção da cidade de Brasília, suspeita de desvio de dinheiro público; os “clãs” ou “dinastias” familiares que praticam o “mandonismo político, cultural e social há longa data em suas regiões de origem”; o caso do mensalão que marcou os governos Lula; entre tantos outros episódios, mais ou menos conhecidos da história remota e recente brasileira.

É claro que uma obra com essa abrangência temática não se proporia uma abordagem exaustiva de cada questão analisada, apresentando antes “uma visão geral” de “temas que explicam a vigência de práticas autoritárias em nosso país”, conforme anunciado logo no início. Desse modo, “Sobre o autoritarismo brasileiro” é uma profícua porta de entrada para os temas que aborda – marcada por um necessário tratamento histórico, a apresentação de dados atualizados e a sua contextualização nos dilemas contemporâneos do país, como vimos.

Essa ampla abrangência e variabilidade de temas produz, ainda, uma consequência do ponto de vista conceitual que, se em nada retira a força dos argumentos e das ideias desenvolvidas na obra, não pode deixar de ser destacada. Diz respeito à própria noção de “autoritarismo”. Ao elegê-la como guarda-chuva para a discussão de todas as problemáticas mencionadas (racismo, patrimonialismo, mandonismo, corrupção etc.), o conceito se expande ao ponto de perder sua especificidade. E, nesse sentido, as “práticas autoritárias” confundem-se com as (ou com a junção das?) práticas de patrimonialismo, de mandonismo, de corrupção etc. – sem distinções muito fáceis de serem traçadas.

Embora o debate conceitual seja importante, o foco do livro está, como vimos, na discussão dos problemas persistentes da sociedade brasileira e, adicionalmente, nos discursos que buscam negá-los. E aqui reside, a meu ver, uma interessante contribuição para o desvelamento do Brasil atual.

Schwarcz narra e analisa várias das “mitologias” que o Brasil construiu acerca de si mesmo, isto é, seus discursos de identidade nacional marcados, em geral, pela referência a um passado (que se desdobra no presente) pretensamente harmonioso, bem integrado, sem conflitos – “O suposto é que esta seria uma nação avessa a conflitos, pacífica na sua índole, democrática no que se refere à convivência de gêneros, raças e etnias, em suma: uma espécie de ‘paraíso da tolerância’ em meio a um mundo inclemente”, afirma.

Boa parte da obra dedica-se justamente a mostrar a ausência de fundamentação em discursos como esse, dado que o Brasil é marcado por violências, desigualdades, discriminações e preconceitos de várias sortes. Ainda assim, como bem mostra a tão aguerrida noção de “democracia racial”, a imagem do Brasil harmonioso persistiu sempre nas representações oficiais e de senso comum. Ou, pelo menos, até muito recentemente. Referindo-se ao Brasil de hoje, a autora afirma:

Em lugar do “ritual da tolerância”, passamos a praticar o oposto; o confronto e a expressão aberta da polaridade que, como vimos mostrando, sempre existiu na nossa história mas andava silenciada. Talvez por isso, hoje em dia muitos brasileiros não se preocupam mais em se definir como pacíficos; preferem desfilar sua intolerância (p. 211).

Em outras palavras, vivemos um momento peculiar da nossa história, em que as narrativas nacionais brasileiras, tradicionalmente marcadas pela ênfase na harmonia (a qual, repita-se, escamoteia os conflitos, violências e desigualdades), convivem com afirmações abertas de polaridade e conflito, com uma ampla difusão e aceitação de ódios mútuos. Na busca pela compreensão das origens dessa mudança, Schwarcz afirma que esse comportamento tende a acentuar-se em momentos de aberta polarização política, como a que vivemos desde 2013 e, acentuadamente, a partir do impeachment de Dilma Rousseff, com o qual “destampou-se o caldeirão dos ressentimentos, que desaguou numa política deliberada de ódios e polarizações”.

Para além disso, segundo a autora, a crise que vivenciamos nos últimos anos, “com direito à recessão, diminuição dos níveis de renda e aumento do desemprego”, ajudou a despertar politicamente um sentimento de “aversão” – aversão à corrupção, à insegurança urbana, ao crime organizado, a um Estado refém de interesses privados, aos intelectuais e à imprensa, aversão aos novos atores políticos –, que produz o distanciamento entre todos aqueles que não partilham das mesmas ideias e projetos (“enfim, aversão a tudo que não ‘nos’ diz respeito ou não ‘nos’ representa”). Assim:

Se é possível dizer que intolerância não é um sentimento ou uma postura existencial que nasce do dia para a noite, e que, como tentamos mostrar, encontra raízes no nosso passado – de longo, médio e curto prazo –, apesar de nossa contínua denegação do conflito, é também forçoso reconhecer que deixamos de esconder tal sentimento, para muitas vezes exaltá-lo publicamente. E essa talvez seja a maior novidade: o que eram antes manifestações recônditas e apenas furtivas, agora viraram ocasiões para o orgulho e a autocelebração (p. 215).

Trata-se de uma transformação de não pouca monta, nos nossos discursos e perspectivas de nação, cujas consequências ainda precisamos dimensionar. Quais os impactos dessa polarização acentuada no combate às desigualdades sociais brasileiras? E no questionamento das dinâmicas de violência e discriminação? Ou – mudando um pouco a chave de leitura – talvez a prática aberta do estímulo ao conflito nos permita agora apontar com mais facilidade (para quem não desejava ver, é claro, pois nunca foram poucos/as os/a que estiveram atentos/as a isso) o caráter falacioso e estratégico dos discursos que reforçam a imagem de um Brasil harmonioso? E que, mesmo quando tais discursos buscam situa-lo no passado – num passado mítico –, só o que ele pode produzir é o escamoteamento das violências e desigualdades e, desse modo, contribuir para o não enfrentamento dos problemas prementes da sociedade brasileira?

Há limites evidentes para o tipo de conciliação que se pode fazer, num curto ou médio prazos, entre as ideias e projetos de nação que ora se debatem em torno das questões abordadas no livro. Afinal, a postura de combate às desigualdades sociais, ao racismo, ao feminicídio, à corrupção estrutural, dentre outros, não coaduna com atos e discursos que buscam minimizar tais problemas, negá-los ou remetê-los a um “outro” distante. Ou que se assentam em pressupostos voltados para a obstaculização e/ou diminuição do acesso a direitos para parcelas da população brasileira historicamente desprivilegiadas. Se, como afirma Schwarcz, toda crise, ao mesmo tempo que produz um déficit econômico, social, político e cultural, é “capaz de abrir uma fresta, pequena que seja, de esperança”, talvez uma das nossas resida justamente em - diante do atual cenário de “recessão democrática” e “cisão social em torno de questões comportamentais” (uso expressões da autora) - melhor identificarmos os atores e projetos políticos mais afeitos a um Brasil diverso, inclusivo e igualitário.

NOTAS

[1] ALONSO, Angela. A política das ruas: protestos em São Paulo de Dilma e Temer. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, Especial, junho 2017, p. 49-58.

[2] GALLEGO, Esther Solano (Org.). O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.

[3] SOUZA, Jessé. A radiografia do golpe. Rio de Janeiro: LeYa, 2016; SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

[4] Parte da reflexão desenvolvida em “Sobre o autoritarismo brasileiro” está baseada em obra anterior da autora, “Brasil: uma biografia” (2014), escrito em coautoria com Heloísa Starling, e nas colunas que ela publicou no jornal Nexo desde 2014.

Aristeu Portela Júnior é Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFPE. Integra o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da UFRPE e o Instituto de Estudos da África (IEAf) da UFPE.

 

Editor responsável: Leonardo Nóbrega

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