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  • Marcia Rangel Candido

O DIA EM QUE JOHN LOCKE CONHECEU CAROLINA


John Locke (1632-1704) nunca foi à América, mas ela estava por toda a sua biblioteca. Como muitos de seus contemporâneos, Locke lera os populares relatos do jesuíta espanhol Juan de Acosta e as minuciosas descrições dos ameríndios feitas pelo corsário britânico Sir Walter Raleigh. Conhecia a obra do explorador Richard Hakluyt, cujo tom ufanista alimentou o imaginário de uma grande monarquia imperial a se erguer. Pela mão de seus informantes, Locke foi levado a projetar no Novo Mundo um reino de liberdade natural, originária, primordial, como se congelado no tempo. Em um de seus excertos mais conhecidos, Locke afirma que “no começo, tudo era a América”. Por algum capricho da providência divina, os navegadores cristãos haviam encontrado um Éden esquecido e imaculado do outro lado do oceano.

Se até hoje sabemos quem foi John Locke, é porque ele encaminhou duas ideias decisivas para seu tempo: a primeira era que todo o conhecimento humano adviria da experiência acumulada, do usufruto dos nossos sentidos; e a segunda: a organização da vida humana em sociedade teria origem em um contrato livre entre os indivíduos. Mas suas filosofias do conhecimento e da política não estavam ligadas somente entre si. Subterraneamente elas reportavam ao mundo selvagem dos relatos americanos, e muito mais especificamente à Carolina, com quem Locke se envolveu por mais de duas décadas. Para entender melhor essa história, é preciso explicar melhor algumas coisas.

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A razão de organizar a vida em sociedade é, para Locke, assegurar a propriedade e a vida dos indivíduos, ambas as quais, se deixadas ao sabor das volúpias e paixões naturalmente humanas, estariam sempre em risco. Para transitar do estado de natureza à civilização, seria preciso concordar com uma autoridade responsável por zelar os bens e a integridade de cada um. Para sustentar tal autoridade, Locke reinventou o significado moral da propriedade. Sua nova doutrina entrou na espinha dorsal do que mais tarde viria a ser o liberalismo, e assim contagiou centenas de constituições e códigos civis escritos nos séculos seguintes.

O conteúdo dessa doutrina foi explicitado no Capítulo V (“Da Propriedade”) do Segundo Tratado sobre o Governo, publicado em 1689. Ela pode ser resumida em poucas proposições: primeiro, cada um é proprietário de sua pessoa, e a natureza é um presente de Deus para a humanidade como um todo. Como as pessoas foram dotadas de razão e engenho, com o tempo elas transformam a paisagem natural por seu trabalho. Ao fazê-lo, é como se cada um transferisse algo de si para as coisas, para as ferramentas, plantios e rebanhos que resultam de sua ação.

Sendo proprietário de si, o indivíduo é também proprietário dos frutos de seu trabalho, do valor que ele próprio incute, estende de si à natureza selvagem. Essa apropriação não seria contrária aos desígnios divinos, que tudo a todos concederam, mas cumpriria o célebre comando bíblico: “frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a” (Gen 1: 28), ao qual Locke recorre.

Ao convencionar com seus pares a criação de uma sociedade política o indivíduo não abdica de seu direito natural à propriedade, mas o resguarda. O governo assim instituído é limitado em seu escopo, precisamente porque a propriedade é necessariamente coextensiva à vida das pessoas. As propriedades de alguém podem ser um amontoado de coisas que vem e vão, mas o direito a tê-las se faz parte inalienável de sua condição humana.

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Nesse famoso Capítulo V (“Da Propriedade”), Locke faz diversas referências ao Novo Mundo e aos “selvagens”, mais do que em qualquer outra parte da obra. Sua preocupação é colocar em evidência o papel do trabalho como origem do valor, que não se encontra “nas florestas selvagens, ou nos desertos incultos da América, abandonados à natureza, sem qualquer melhoramento, lavra ou cultura”. Aqui, a palavra melhoramento (improvement) esconde um pequeno segredo. Na linguagem da época, como nos mostra a historiadora Patricia Seed, seu significado ia além de genericamente “melhorar” algo. Melhorar um lugar podia ser literalmente cercá-lo.

Em seu livro “Cerimônias de posse da conquista europeia no Novo Mundo, 1492-1640”, originalmente lançado em 1995, Seed detalha como, para os colonos ingleses em particular, a criação de direito sobre o território americano estava ligado à instalação de “casas, cercas e jardins”, mais do que ritos oficiais e atos solenes. Todas as expedições inglesas à América faziam referência explícita à construção de uma casa. As cercas como ícone arquitetônico da propriedade remetiam ao próprio processo de cercamento dos campos então em curso na Inglaterra. E o cultivo dos jardins era metáfora da civilização, da passagem do que é agreste, selvagem e ermo ao perímetro civilizado. “Plantar uma colônia” no além-mar era uma expressão familiar à época.

A alusão de Locke ao Gênesis (1:28) não era exatamente uma novidade para seu público. Curiosamente, desde a Idade Média, no mundo anglo-saxão a ideia de “frutificai e multiplicai-vos” adquiriu uma acepção peculiar, que colocava mais ênfase na fertilidade agrícola que humana. Era comum os párocos invocarem o versículo enquanto aspergiam água benta na terra para realçar-lhe o vigor na safra vindoura. “Esse significado localmente relevante do Gênesis”, explica Patricia Seeds, “justificava o título inglês às Américas. Foi invocado nas leis de Massachussets e em inúmeros escritos dos primeiros colonos e seus apoiadores para expressar sua comprensão de como o domínio inglês no Novo Mundo havia sido legitimamente constituído” (SEED, 1995: 35). Ao semear a terra, os colonos cumpriam a vontade do Criador, ao mesmo tempo que fabricavam propriedade para si.

Nesse sentido, a teoria da propriedade de Locke foi uma transmutação do imaginário de “casas, cercas e jardins” que animava os colonos a invadir território indígena e nele se instalar definitivamente. As diversas menções aos selvagens americanos no capítulo “Da propriedade” tem um sentido contrafactual: como suas tribos não conhecem cercas, elas não delimitam a propriedade para cultivá-la. Logo, ela é ausente de direito e pode ser considerada parte indistinta da paisagem natural que Deus brindou à humanidade.

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John Locke, é bom lembrar, não era apenas um leitor dos relatos americanos. Na década de 1660, ele se tornou secretário pessoal do Lord Shaftersbury, um dos oito dignatários a quem a Coroa inglesa confiaria em 1663 a província da Carolina na América do Norte. Os primeiros anos, é verdade, foram pouco auspiciosos para os ingleses na Carolina, e o povoamento quase colapsou em 1668. A prosperidade da colônia se tornaria uma preocupação constante de Locke nos anos seguintes, quando se envolveria na elaboração e revisão da primeira constituição da província. [1] Nela, Shaftersbury, Locke e seus parceiros, conhecidos defensores da razão e da liberdade, oficializaram a escravidão afroamericana em seus domínios.

Antes de escrever suas obras mais célebres, John Locke exerceu o cargo de Secretário dos Lordes Dignatários da Carolina, uma espécie de governo geral sediado na metrópole. E foi como empreendedor colonial que Locke delineou uma nova teoria política da propriedade privada que não dependesse do acordo entre as partes, mas de uma ação de apropriação que é unilateral, capaz de fazer do próprio colono a origem do seu direito contra o nativo americano. Essa inflexão teve consequências muito mais profundas que as casas, cercas e jardins da Carolina. Embora aos leitores de hoje isso não soe evidente, quando Locke afirmava que “a extensão de terra que um homem lavra, planta, melhora, cultiva, cujos produtos usa, constitui sua propriedade”, a afirmação tinha então um contexto colonialista imediato.

Selo da Colônia da Carolina (a inscrição latina diz: "Sujeitada pelos cultivadores do mundo", tradução livre)

Esse contexto se dissipou posteriormente em uma doutrina da propriedade privada, individual e ilimitada. Essa doutrina foi a pedra angular do liberalismo como filosofia social. Como disse o historiador David Armitage, “a forma peculiar do argumento de Locke tem, portanto, origens distintamente coloniais, mas aplicações não exclusivamente coloniais” (ARMITAGE, 2004: 619). A ligação doutrinária entre propriedade e vida funcionaria como esteio do indivíduo livre, capaz de estabelecer contratos. Graças a Locke, a acumulação irrestrita de propriedade por uma pessoa se tornou tão inviolável quanto sua vida.

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Empirista que era, Locke talvez dissesse nunca ter conhecido a Carolina. Mas da metrópole onde vivia imaginou-a, governou-a e afeiçou-se ao projeto colonialista que ela representava. A teoria da propriedade privada que o fez notório responde ao melhoramento da Carolina: a passagem do bárbaro ao cultivado como instauração da propriedade legítima. É também a história do roubo que se faz invisível, porque não se reconhece direito a quem é roubado.

No fim das contas Locke nunca abandonou de todo a idealização de um Novo Mundo regenerado, puro e utópico. Em uma correspondência com seu amigo Nicholas Toinard, no começo da década de 1680, ele confabulara seus planos secretos de fugir da Inglaterra para viver no ultramar, na Província da Carolina cujas leis ele próprio ajudara a escrever. O plano nunca foi levada a cabo, e a teoria política remanescente foi cuidadosamente higienizada de suas marcas coloniais.

NOTAS

[1] A primeira Constituição da província da Carolina foi promulgada em 1669, tendo sido objeto de sucessivas revisões em 1671, 1682 e 1698.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARMITAGE, David. "John Locke, Carolina, and the Two Treatises of Government". Political Theory, Vol. 32, n. 5, 2004, pp. 602-627.

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Editora Abril, 1981.

SEED, Patricia. Ceremonies of possession in Europe’s conquest of the New World, 1492-1640. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

Pedro Borba é Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e colaborador da Horizontes ao Sul.

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Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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