A CIRCULAÇÃO DOS FEMINISMOS ENTRE BRASIL E FRANÇA: PERCURSOS PARA A EMANCIPAÇÃO GLOBAL
O mundo está se tornando cada vez mais feminista. Tal efeito deve-se à emergência de novos sujeitos políticos e também ao papel de atores que trazem ideias e práticas sociais com potencial para a mudança. A exemplo, podemos destacar o discurso político da juventude – que tem presente as desigualdades causadas por gênero, raça e classe -, ou o papel da mídia, a qual tem dado visibilidade, mesmo que a passos lentos, a temas relacionados à violência de gênero, feminicídio e crimes de LGBTTransfobia. A partir dessas pautas políticas e discursivas, percebemos então uma ampliação exponencial de temas relacionados: a discriminação da mulher no mercado de trabalho, a exclusão das mulheres da política, os assédios morais e sexuais, a vulnerabilidade das mulheres negras e indígenas, a invisibilidade das mulheres lésbicas, a necessidade de estabelecimento de direitos sexuais e reprodutivos, e a fragilidade dos direitos humanos das mulheres em boa parte do mundo. Tais pautas são globalmente transversais, isto é, não importa se estamos no Brasil, em outro país latino-americano, no Oriente Médio ou na Europa: a discussão sobre as opressões sofridas pelas mulheres tem circulado em todos os lugares".
Os feminismos têm como preocupação central a emancipação das/dos cidadãs/ãos. No meio acadêmico, as feministas costumam apontar para a necessidade das “interseccionalidades”. A emancipação, vista de uma perspectiva analítica interseccional, envolve, além de questões de gênero, a superação das opressões enfrentadas para se ter liberdade, e depende de um conjunto de condições sociais, econômicas, geográficas e raciais. É por isso que parte das feministas costuma dizer, em alusão à bell hooks, que o feminismo é para todas as pessoas.[1] Ao denunciar as opressões vividas, a crítica feminista desvela uma série de outras opressões, nem sempre experimentadas exclusivamente pelas mulheres, mas que devem ser superadas para que tenhamos cidadãs e cidadãos emancipadas/os e em pleno usufruto de seus direitos humanos.
Sou cientista política e pesquisadora dos feminismos. Da minha perspectiva, isso também faz de mim uma ativista. Durante meu doutorado em Ciência Política, investiguei as teorias políticas feministas, especialmente as correntes da teoria crítica e do pensamento feminista decolonial. Se durante o mestrado minha dissertação se concentrou nas críticas feministas islâmicas ao Estado francês, em suas práticas xenófobas, e na exclusão das mulheres muçulmanas que usavam burca ou niqab, na tese transitei aos feminismos da América Latina.[2]
No Brasil, assim como em países vizinhos, o movimento feminista ganhou força a partir da década de 1970, quando as mulheres inseridas na luta pela redemocratização no Cone Sul incorporaram reivindicações pelos direitos da mulher em sua militância política. As brasileiras tinham especial proximidade com o feminismo francês durante o período da ditadura militar no Brasil. Tal proximidade refletia-se na produção de conhecimento científico, nas discussões de grupos militantes, e também no apoio de intelectuais e líderes políticas/os francesas/es às organizações em favor da democracia na América Latina.
Realizei parte de minha pesquisa doutoral na Sciences Po Paris em 2016. Imersa num ambiente de discussões plurais sobre gênero e feminismo, pude perceber que, se por um lado o feminismo francês havia exercido um papel importante durante as décadas de 1970 e 1980 na constituição do campo de estudos feministas brasileiro, por outro lado o campo de pesquisa feminista francês tinha passado a incluir como categorias de análise mulheres do Sul global: muçulmanas, imigrantes, negras, indígenas; grupos que até pouco tempo eram invisibilizados pelo próprio feminismo.[3] Como consequência, os trabalhos mais recentes realizados no contexto francês buscavam suporte teórico em abordagens críticas ao eurocentrismo. Constatei que a produção de conhecimento científico estava alinhada ao contexto global de circulação de ideias e pessoas. Logo, optei por agregar à minha tese a análise das ideias feministas que partiam da América Latina e do Brasil em direção à França. Minha proposta foi tratar dos dois fluxos teóricos, das duas direções, e, portanto, da circulação transnacional de pensamento.
Tendo este panorama, surgia a questão: quais foram especificamente as condições que possibilitaram a circulação do pensamento feminista entre Brasil e França? Escolhi realizar um mapeamento dos percursos do pensamento feminista através das publicações científicas, dos debates de ideias e dos esforços acadêmicos para estabelecer redes internacionais de pesquisa colaborativa. Para tal, realizei uma série de entrevistas com pesquisadoras brasileiras e francesas e empreendi uma análise comparativa de periódicos acadêmicos sobre Ciência Política, gênero e feminismo de ambos os países. Dentre as entrevistadas, estavam Miriam Grossi, Helena Hirata, Eleni Varikas, Genevieve Fraisse, Armelle Le Bras Chopard, Françoise Picq, Cornelia Moser, Jules Falquet, Miriam Adelman e Flávia Biroli. A partir dos relatos das pesquisadoras, busquei o acervo das edições da revista Nosotras, publicação organizada por exiladas políticas latino-americanas na França durante os anos 1970. As revistas francesas consultadas foram: Nouvelle Questions Féministes; Cahiers du CEDREF; Cahiers du Genre; e Raisons Politiques. As revistas brasileiras, por sua vez, foram: Revista Estudos Feministas; Cadernos Pagu; Labrys; e Revista Brasileira de Ciência Política. Com base no cruzamento analítico das entrevistas e do conteúdo dos periódicos científicos, identifiquei um processo de ampliação e diversificação do conhecimento feminista.
A continuidade deste processo está associada ao protagonismo do pensamento feminista do Sul global, que enfoca relações entre corpo, política e história para construção de um conhecimento situado. Esta perspectiva crítica problematiza a subalternização do pensamento feminista no campo da teoria política e do pensamento social. A discussão feminista por muito tempo foi marginalizada dentro da academia. Por ser considerado um assunto de interesse exclusivo das mulheres, ou por ser julgado como excessivamente político e militante, o feminismo percorreu um árduo caminho para sua afirmação enquanto conhecimento válido na universidade.
O pensamento feminista é um conjunto de práticas de ação política e reflexão, tendo a colaboração não apenas de intelectuais, mas também de artistas mulheres e ativistas políticas. Assim, tudo aquilo que se discute teoricamente em termos de opressão de minorias e possibilidades emancipatórias impacta nas ações políticas, e vice-versa. Entendo que, através do mapeamento dos percursos do capital simbólico e científico, minha tese indicou a relevância da circulação de conhecimento na consolidação do campo de estudos feministas. Nesse sentido, destaquei que a contribuição da crítica feminista latino-americana não se verificou apenas no continente, mas reverberou na teoria política contemporânea como um todo. A democratização dos estudos feministas e o reconhecimento de novos sujeitos políticos do Sul global refletiram os discursos influenciados por estes feminismos. Embora as lutas emancipatórias ainda sejam muitas e sejam necessárias por toda parte, elas nunca estiveram tão visíveis no imaginário político global.
Leia mais sobre o tema:
[Artigos]
SCHUCK, Elena de Oliveira. (2017). “Feminismos em trânsito internacional: a circulação do conhecimento feminista entre Brasil e França”. Moções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, Mato Grosso do Sul, v.6. n.11, p.89-120. Disponível em: http://ojs.ufgd.edu.br/index.php/moncoes/article/view/6912
SCHUCK, Elena de Oliveira. (2018). “Conhecimento e espaços de poder: trajetórias da pesquisa acadêmica feminista no Brasil”. Inclusão Social, Brasília, DF, v.11 n.2, p.30-43. Disponível em: http://revista.ibict.br/inclusao/article/view/4107
[Tese de doutoramento]
SCHUCK, Elena de Oliveira. (2017). Feminismos em movimento: mapeando a circulação do pensamento feminista entre Brasil e França. (Doutora em Ciência Política). Tese, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 175p. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/168982
[Programa de rádio]
Pesquisadora aborda a circulação do pensamento feminista entre o Brasil e a França. UFRGS Ciência, 2017. Disponível em: http://www.ufrgs.br/secom/ciencia/pesquisadora-aborda-a-circulacao-do-pensamento-feminista-entre-o-brasil-e-a-franca/
NOTAS
[1] hooks, bell. O feminismo é para todo Mundo. Políticas Arrebatadoras. 1ª ed. Rio de janeiro: Rosa dos Ventos, 2018.
[2] Estes dois véus islâmicos cobrem integralmente o corpo da mulher, deixando apenas os olhos à mostra.
[3] Tomo emprestado de Boaventura Sousa Santos a concepção de Sul Global (SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010), cuja ideia central é tratar do Sul metaforicamente enquanto campo de desafios epistêmicos, os quais procuram reparar os danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo. A concepção de Sul em parte sobrepõe-se com o Sul Geográfico, o conjunto de países e regiões do mundo que foram submetidos ao colonialismo europeu e que, salvo exceções, não atingiram níveis de desenvolvimento econômico semelhantes ao do Norte Global (Europa e América do Norte).
Elena de Oliveira Schuck é mestra e doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e graduada em Relações Internacionais pela mesma universidade. Professora de Ciência Política e Sociologia na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Realizou estágio doutoral junto ao CEVIPOF (Sciences Po Paris), com bolsa da CAPES-PDSE. Suas discussões abrangem os seguintes tópicos: teoria política, cidadania, democracia e justiça; teoria crítica; políticas públicas de gênero; direitos humanos; Sul global; gênero e relações internacionais; mulheres árabes, véu e feminismo islâmico; pensamento feminista latino-americano; arte, corpo e política.
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Editora responsável: Marcia Rangel Candido