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Marcia Rangel Candido

AFINAL, O QUE É POPULISMO?


Frequentemente utilizada para qualificar adversários políticos, o "populismo" tornou-se uma figura execrável. Há muito o termo foi preenchido por uma sólida carga normativa que, no imaginário popular, geralmente é associada à demagogia e ao autoritarismo. Após alguns anos em baixa, a ideia voltou a ser largamente empregada por jornalistas, políticos e acadêmicos para designar aqueles governos e governantes que, à esquerda e à direita, de alguma forma, fogem da cartilha ditada pelos interessados na reprodução do status quo. Afinal, o que é populismo e de que forma tal expressão pode ser utilizada como uma ferramenta que nos auxilia a produzir análises políticas?

Antes de mais nada, é preciso desvincular a expressão de qualquer essência cristalizada e pré-definida. Para tal, vamos observar alguns dos seus distintos usos durante na história. O primeiro deles diz respeito ao populismo russo. Conhecidos como narodniks, os populistas russos forjaram um movimento político, na segunda metade do século XIX, que opunha-se ao regime czarista e já carregava a marca distintiva da aqui abordada lógica política: a oposição entre o povo e a elite, no caso, a aristocrática. Tentando articular intelectuais urbanos e camponeses, o movimento chegou a ter certa relevância no cenário político daquele país. Após sofrer duríssima repressão, sua fragmentação foi inevitável. Alguns dos seus militantes fundaram A vontade do povo, organização populista que promovia violentas ações diretas contra membros da aristocracia e do Estado russo. Curiosamente, o irmão mais velho de Lenin fez parte de tal organização e foi executado, aos 21 anos, após participar de um atentado frustrado contra o czar Alexandre III.

O segundo uso do termo populismo está relacionado à qualificação de regimes historicamente localizados. Estamos falando especificamente dos governos de Juan Perón, na Argentina; de Lazaro Cárdenas, no México e de Getúlio Vargas, no Brasil. Tais governos apresentavam algumas convergências, como a intensa mobilização do povo, a produção de giros modernizadores, a comunicação direta com as massas, um tipo de liderança baseada no carisma do líder, a instrumentalização de um nacionalismo periférico anti-imperialista e uma relação com frações das elites nacionais assentada sobre algum grau de conflitualidade. O sociólogo argentino Gino Germani (1911-1979) foi uma figura fundamental para a popularização do termo enquanto conceito empregado para analisar regimes que surgiram em sociedades em transição do modelo tradicional ao moderno.

O terceiro uso do termo populismo é aquele do senso comum, frequentemente difundido por jornalistas e outros profissionais da comunicação. Estes associam a expressão à demagogia, ao clientelismo e, na Europa, também ao nacionalismo. Tal prática é extremamente perigosa, seja porque esvazia o termo de qualquer conteúdo explicativo, seja porque o transforma em arma retórica contra aqueles dos quais discordamos. Neste sentido, o populista é sempre o outro. No Brasil, o trabalho de Francisco Weffort[1] foi crucial para difundir, nos meios acadêmicos, a visão de que o populismo é um tipo de governo fundamentado na demagogia e na cooptação das massas.

Por fim, o último uso da expressão está diretamente vinculado à obra de Ernesto Laclau e o esforço por ele empreendido para pensar o populismo para além das rasas definições oferecidas até então. Grosso modo, o filósofo argentino argumenta que aquilo que ele chama de populismo é parte incontornável da política. Entretanto, cabe ressaltar, afirmar o populismo como parte da política não é a mesma coisa que afirmar que todos os políticos são populistas. Do ponto de vista analítico, entendemos como populistas aqueles governantes, partidos e organizações que apresentam as seguintes características:

a) Algum grau de oposição ao sistema estabelecido.

b) O antagonismo entre o povo e a elite.

c) A produção de um discurso que logre articular diferentes demandas como equivalentes.

d) O estabelecimento de novas e mais diretas formas de mediação entre representantes e representados.

Seria o populismo autoritário?

Muitos dos que criticam a utilização do populismo como um recurso analítico o fazem argumentando que sua amplitude o transforma em um conceito com pouca capacidade explicativa. Em parte, é verdade. Se o populismo é uma lógica política, ele pode tanto ser de esquerda quanto de direita, tanto autoritário quanto democrático. Dessa forma, cada caso é um caso. De Lenin a Putin, de Chavez a Trump, o populismo pode assumir as mais diversas colorações políticas. Justamente por esse motivo é impossível afirmar a existência de uma essência democrática ou autoritária. O único grande ponto em comum entre os populistas são as características listadas anteriormente. Não obstante, trata-se de um importante recurso que diferencia aquelas políticas interessadas na manutenção da ordem daquelas interessadas na sua transformação.

Por fim, argumentamos que, ao invés de pensarmos vulgarmente o populismo como necessariamente uma ameaça à democracia, devemos levar a sério a seguinte questão: quem tem medo do povo? Neste ponto, a esquerda acomodada que entregou-se ao eleitoralismo e a triunfante direita neoliberal andam juntas, de mãos dadas nos parlamentos e de narizes tapados nas ruas. Isso pois, no final das contas, boa parte das críticas voltadas contra os populistas sob o véu do pluralismo estão carregadas do mais profundo elitismo. Em suma, o populismo nada mais é do que a constituição do povo como ator dentro de uma disputa aberta pelos sentidos contingentes da história. Sendo assim, nos dias atuais, podemos concluir que nem todo movimento populista é democratizante, mas que, em algum grau, todo movimento democratizante é populista.

NOTAS

[1] WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

Rafael Rezende é sociólogo, coordenador adjunto do Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (NETSAL) e editor colaborador da Horizontes ao Sul.

 

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