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Marcia Rangel Candido

OS CENTENÁRIOS DO RIO


Fotos retiradas do Censo de 1906 - Acervo IBGE

No afã das reformas urbanas do início do século XX, a administração municipal do Rio de Janeiro (então Distrito Federal) não poupou fundos para produzir o Recenseamento de 1906. O levantamento serviria para os “melhoramentos” que o progresso prometia e a ciência examinaria com uma lupa a população diversificada da cidade. Era a modernidade dando as caras. O volume em que foram publicados seus resultados traz inúmeras tabelas, gráficos, ilustrações e fotografias em nada menos que 400 páginas. Eis que, dentre as diversas seções que compõe o volume, há uma intitulada “Os centenários” que registra nominalmente os habitantes com mais de cem anos. São 182 pessoas que saltam do anonimato dos números e ganham um espacinho – às vezes um parágrafo, outras apenas uma linha – nas páginas da história da cidade. De “Rita dos Santos”, por exemplo, sabemos apenas que, aos 100 anos, era “viúva, africana, analfabeta, recenseada no morro do Valongo, n. 15”. Essas eram as informações básicas que deveriam constar de qualquer interrogatório. De pronto, algumas coisas saltam aos olhos pelo, digamos, ar de ficção dos dados coletados.

O próprio texto de apresentação da seção admite que é muito difícil auferir a quantidade exata de centenários, pela falta de documentos comprobatórios e pela tendência dos mais velhos a aumentar a própria idade. A obrigatoriedade do registro civil havia sido estabelecida apenas 17 anos antes, na esteira da maior separação entre Estado e Igreja instituída pela República. A favor da alcunha de “berço dos velhos” contaria o fato de a cidade do Rio acumular quase cinco vezes o número de centenários da capital Argentina, propagandeada pelos demógrafos portenhos como a mais salubre do mundo.

Rivalidades à parte, em matéria de invenção não seriam apenas os números totais que botariam desconfiança. Em uma cidade onde um quarto da população não era brasileira nata, os próprios nomes parecem um tanto genéricos demais para muitos moradores. De um italiano de 115 anos, casado, analfabeto, negociante, morador da Rua Visconde do Rio Branco, anota-se apenas “Guilherme” como nome. Outras ainda seriam identificadas apenas como “Silvana” ou “Luiza”. E “Rita dos Santos”, qual teria sido seu nome antes de ser trazida escravizada de África? Pululam, entre os africanos homens, nomes como João Mina Africano, José Mina, expondo mais esse sintoma da violência da instituição escravagista que ordenara o influxo de populações no país.

A economia das informações fornecidas aos recenseadores pode revelar também a desconfiança dos moradores em relação aos agentes públicos. Vale lembrar que apenas dois anos antes a cidade tinha entrado em convulsão na resistência ao projeto de implementação da lei de vacinação obrigatória, que previa a invasão de domicílios pelos agentes de saúde. A oposição bradava nos jornais e comícios denunciando a brutalidade dos agentes, algo que não chega a ser difícil de imaginar pelos cariocas que conhecem as práticas cotidianas das forças policiais nas regiões mais pobres da cidade.

Alguns sujeitos ganham mais algumas linhas, quando podem narrar seus deslocamentos, indicar a sorte de seus descendentes, ou quando conheceram alguém importante e trabalharam para fulano de tal. Anota-se também sua presença ou memória de alguns acontecimentos históricos marcantes. Uns sortudos (ou não) foram visitados pelo recenseador justo no dia em que o fotógrafo da prefeitura acompanhava-o, e ganham pequenos retratos ao lado de seus nomes. Frágeis contornos de algumas micro-histórias de vida se insinuam nas breves entradas, que são organizadas de acordo com os distritos de moradia dos centenários na capital.

“Feliciana do Amaral”, natural do Congo, teria chegado ao Brasil com sete anos de idade e assistido à coroação de D. Pedro II e ao batismo de D. Afonso. Há quem se lembre da chegada da Imperatriz e dos tempos de D. João VI. Nos registros da zona portuária, a quantidade de nascidos naquele continente parece justificar a ideia de uma “Pequena África” que persistia não só nos números que as estatísticas captavam.

De “Albino Velho”, recenseado no Asilo de São Francisco de Assis, sabe-se que é natural de Angola e que chegou ao Brasil no tempo de Dom Pedro I. “João Mina”, seu colega de asilo, teria tomado parte da Guerra do Paraguai. Um outro “Felipe”, vizinho na Senador Pompeu, conta que na mesma guerra esteve ele com dois filhos seus, entrando em combates sob o comando de Duque de Caxias e do Conde D’Eu. Outros vivenciaram outras guerras e conflitos do XIX: Sabinada, Gafanhotos, Papagaios. Até da Inconfidência Mineira e do esquartejamento de Tiradentes há vivas testemunhas oculares.

Mas o que comove sobremaneira e ecoa especialmente em nossos dias são as breves descrições que, para ressaltar a vitalidade dos entrevistados, descrevem os trabalhos que eles, com idade tão avançada, realizam cotidianamente. Afinal, o que faziam os negros e as negras que haviam sobrevivido ao cativeiro e alcançado a ordem republicana?

Isabel Maria da Annunciação, com 120 anos de edade, brazileira, viúva, analphabeta, recenseada no Morro de Santo Antonio (casa s/n). Nasceu na Bahia. Casou-se duas vezes. Teve 5 filhos do primeiro marido, dos quaes 4 morreram ainda pequenos, vivendo apenas o mais velho na Bahia. Casou-se pela primeira vez aos 25 annos, vindo 15 annos depois, já viúva, para o Rio de Janeiro (...). Vive num barracão forrado de zinco e envolvido de cima a baixo por um tecido cipoal de favas e maracujás que a abriga da chuva e do frio. Mantém uma plantação de cana e vários legumes, cultivados por suas próprias mãos. É forte, vê e ouve bem.

Delphina Maria da Conceição, com 100 anos de edade, solteira, africana, analphabeta, recenseada à rua General Câmara, n.311. Veiu de sua terra para a Bahia com cerca de 15 annos. Dois annos depois veiu para o Rio de Janeiro, exercendo desde então a profissão de cozinheira. De três annos pra cá dedica-se a vender plantas, cestas, roseiras, etc.; e faz ponto sempre em uma das portas do armazém 96 da rua Marechal Floriano Peixoto da firma Braga Dias & C.; estes senhores a estimam muito. É ainda forte, anda, vê e ouve perfeitamente.

As frases que fecham esses parágrafos, em tom afirmativo, remetem aos anúncios de compra e venda de escravizados que, não muitas décadas antes, ocupavam as páginas dos jornais. A ênfase na vitalidade física não estava desligada das formas tradicionais de classificação do corpo negro, cuja vinculação ao trabalho braçal se associava ao imaginário da escravidão recém extinta. Enquanto elogio de uma resistência excepcional de indivíduos que sobreviveram por mais de cem anos em uma sociedade onde a expectativa de vida era, na virada do século, de 33,7 anos, o texto expõe involuntariamente a violência da ordem econômica e social a que estavam submetidos os mais pobres.

Atualmente, quando os governantes e as classes dominantes estão unidos no firme propósito de dinamitar de vez as ínfimas conquistas dos trabalhadores, prometendo uma vida inteira de trabalho precário e inseguro (o que de certa forma sempre foi o destino reservado para a maioria do povo), devemos reler essas histórias como sinais de uma sociedade que parece condenada à perpetuação de suas injustiças.

Que conheçamos, então, a história de Silvéria Maria da Conceição. Que sua resistência nos dê forças para enfrentar essa centenária coalizão de poderes organizados para fazer passar indiferente a crueldade contra os de baixo, silenciada pelas cifras e números ordenados numa tabela.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recenseamento do Rio de Janeiro (Distrito Federal) realizado em 20 de setembro de 1906.

Disponível em:

Pedro Cazes é professor do Departamento de Sociologia do Colégio Pedro II e doutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ).

Contato: pedrocazes@yahoo.com.br

 

Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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