POR UMA ANÁLISE DECOLONIAL DO SUDÃO
O golpe militar que recentemente derrubou o ditador sudanês Omar Hassan al-Bashir reacendeu argumentos de que a “Primavera Árabe” estaria chegando ao país. A linha de raciocínio afirmaria que, assim como em países vizinhos, grupos civis sudaneses, insatisfeitos com décadas de crises econômicas e falta de liberdade, pressionaram o governo autoritário até sua queda. As premissas, notadamente Orientalistas [1] , criam ligações diretas com as dinâmicas no Egito e da Líbia, por exemplo, indicando que uma “onda revolucionária”, homogênea e essencialista, estaria atingindo os países da região.
Uma análise criteriosa, contudo, demonstra que valorizar as dinâmicas internas do caso do Sudão sofistica os argumentos e desmonta certos mitos. Isso não significa não reconhecer vínculos entre os processos das revoltas nos países da região -- mas reduz o peso e a influência de tais características automatistas. Entende, portanto, o Sudão como um espaço de lutas que, por mais que seja influenciado por vizinhos e dinâmicas paralelas, traça seu próprio destino político. Mais do que dar voz aos sujeitos sudaneses - é ainda mais salutar fugir das formatações de mundo Ocidentais como a única saída para crises que acometem países no Sul Global. Dentro dessa narrativa, parafraseando o historiador indiano Ranajit Guha, é essencial não só dar voz aos atores subalternos -- no caso do Sudão, principalmente as mulheres -- mas reforçar a possibilidade de epistemologias para além de tentativas universalistas. A dinâmica decolonial, assim, reforça que sujeitos coloniais, que estão nas fronteiras - físicas e imaginárias - da modernidade não são seres passivos. Podem, tanto se integrar ao desenho global das histórias locais que estão sendo forjadas como podem rejeitá-las. É nessas fronteiras, marcadas pela diferença colonial, que atua a colonialidade do poder, bem como é dessas fronteiras que pode emergir o pensamento fronteiriço como projeto
Assim, um histórico mínimo das revoltas aponta para protestos maciços que começaram em dezembro de 2018, inicialmente organizados pela Sociedade de Profissionais do Sudão [2]. Inicialmente, as reclamações versavam sobre o preço de alimentos e a inflação crescente, e a maior parte das lideranças era formada por jovens e mulheres. A falta de liberdade e a violência estatal logo entraram também em pauta. O governo sudanês, de maioria muçulmana, é marcado pela quase ausência feminina em seus postos, além de políticas conservadoras relacionadas às mulheres. Por exemplo, o adultério feminino é crime, e punido com pena de morte, sendo sua comprovação baseada exclusivamente em testemunhos de homens, sem a necessidade de maiores provas.
Foto: Lara Haroum // Twitter
Além disso, forças governamentais são acusadas há décadas de promoverem estupros em massa como forma de punição. O arcabouço jurídico do país tenta controlar desde o tipo de vestimenta, ao comportamento, passando direito à associação e educação das mulheres. Meninas com apenas dez anos de idade estão legalmente autorizadas a casar e frequentemente são obrigadas a se unir com homens muito mais velhos, além do estupro conjugal ser legalizado. Um exemplo da perversidade essas dinâmicas ocorreu em 2018, com o caso de Noura Hussein. Noura foi condenada à morte por matar seu marido enquanto ele tentava estuprá-la. No entanto, o acontecimento gerou comoção internacional e, depois de intensos protestos, sua sentença foi reduzida para cinco anos de prisão.
Assim é que nos protestos atuais o papel de liderança assumido pelas mulheres representa uma virada simbólica em todo o país, principalmente pela busca de identificação e resignifcação, através de vestimentas e discursos, das lideranças femininas da década de 1950 durante o processo de independência sudanês. As atuais lideranças têm sido chamadas de “Kandaka”, título de nobreza para Rainhas do antigo Império do Sudão, retratado como o momento de libertação anterior às ocupações modernas. É relevante, nesse sentido, afirmar que foram justamente as mulheres que iniciaram as críticas mais vocais a Junta Militar que derrubou al-Bashir, acusando as Forças Armadas de terem “roubado a revolução” e também de terem substituído uma ditadura por outra.
Bashir, o açougueiro
Bashir, também um ex-oficial do Exército fez parte de um golpe militar de 1989 que instalou a Frente Nacional Islâmica, um ramo da Irmandade Muçulmana, no poder. Entre os anos de 1992 a 1996 o Sudão hospedou Osama Bin Laden, o suficiente para que o país fosse classificado pelos EUA como patrocinador do terrorismo. Apesar d os debates recorrentes sobre até que ponto o Estado sudanês apoiou, de fato, Bin Laden, as sanções impostas por Washington tiveram um impacto econômico expressivo sobre a população - o que, em certa medida, contribuiu para a atual crise. O país tem uma dívida externa na ordem dos bilhões e está impossibilitado de pedir novos empréstimos em razão de sanções econômicas , além de uma inflação galopante e índices de desenvolvimento baixíssimos.
Além disso, contribui para a crise a ocorrência de repetidas guerras civis, que assolaram o país desde sua independência, em 1956. al-Bashir foi o único chefe de Estado a ser indiciado por crimes de guerra, acusados de ter violado normas internacionais na província de Darfur, que abriga várias tribos não-árabes que se rebelaram contra o governo em 2003. Grupos locais acusaram o governo de aliar-se às tribos árabes em uma luta de décadas por recursos escassos entre as comunidades da província. A ONU calcula que entre 200 mil e 400 mil pessoas morreram no conflito, com mais 2,7 milhões de migrantes forçados. al-Bashir foi acusado de crimes de guerra e crimes contra a humanidade em conexão com os ataques contínuos contra grupos étnicos não-árabes de Darfur.
Ainda assim, logo em seguida, e m 2010, al-Bashir foi reeleito com cerca de 68% dos votos, em que pese a alegação de fraude eleitoral , corrobora da por uma equipe de observadores eleitorais. A guerra mais importante do ponto político, contudo,começou em 1989. A mesma configurou-se como o conflito civil mais longevo da história do país, 22 anos, envolvendo o governo central de Cartum, ao norte e predominantemente muçulmano, com rebeldes do sul, majoritariamente cristão e com religiões tradicionais. O fato da região concentrar os maiores centros de petróleo do país também auxiliam na explicação do interesse na manutenção d o estado de violência permanente .
Em 2011, os cidadãos do sul do Sudão apoiaram esmagadoramente a divisão do norte em um referendo, que levou à criação do país mais jovem do mundo. A secessão de 2011 do Sudão do Sul privou o Sudão da maioria de suas receitas de petróleo e alimentou a inflação e e escassez generalizada. Como resultado, grupos de oposição e cidadãos comuns começaram a expressar sua raiva com a incapacidade do governo de al-Bashir de tratar suas queixas, melhorar as condições econômicas e introduzir as necessárias reformas políticas.
Sobre o significado de revolução e vitória
A questão que se apresenta agora é dupla. Em um primeiro momento, as Forças Armadas que prenderam al-Bashir não deram sinais de que estão dispostas a negociar com os manifestantes sobre uma possível transição democrática. Segundo o porta-voz do exército, o país passará por uma “transição segura” de três anos. Os manifestantes não parecem aceitar o veredicto: nas últimas semana s , desrespeitaram uma proibição de circularem pelas ruas na parte da noite, realizando novamente protestos na capital. Nesse sentido, as interlocuções entre militares e protestantes será essencial para o futuro do país.
O segundo elemento diz respeito a própria reflexão sobre o que significa “vitória” no caso sudanês. É fato que ocupar espaços estatais e garantir a mudança de leis é essencial, principalmente levando-se em conta os casos citados envolvendo os direitos das mulheres. Porém, as próprias lideranças femininas já argumentam que a substituição de um aparelho de controle de Estado por outro não as interessa. Reflexões sobre a moralização dos corpos femininos no Sudão é antiga, com discussões sobre mutilação genital ocorrendo desde o período de ocupação pela Inglaterra no século XIX. Estudantes universitárias retomaram, nos protestos contemporâneos, frases como “nem um patrão inglês, nem um marido sudanês”. A alegoria reforça a oposição sobre os gestos de “salvamento civilizacional” do Norte Global ao mesmo tempo que afasta que a liberdade também viria através de canais patriarcais.
Assim, a mudança mais profunda da sociedade passaria pela rearticulação da posição de seus membros e como os dispositivos de ocupação se manifestam frente às mudanças . Não é coincidência que as forças curdas em Rojava, na Síria já tenham enviado manifestações de apoio, dado que vem passando por um experimento similar à narrativa do Sudão. As narrativas entre Curdas e Sudanesas se encontram principalmente pela tentativa de afastar dinâmicas homogeneizantes entre figuras femininas do Sul Global, além de reforçar o caráter de que são agentes políticos com capacidade real de mudança. A superação, pelo menos em algumas instâncias, de modelos ontológicos do Norte Global pode trazer a redução de conflitos, ao invés da obsessão de que Estados trarão paz.
NOTAS:
[1] “Orientalismo” é empregado aqui segundo as reflexões apresentadas por Edward Said a partir da década de 1970. Pode ser entendido como a reflexão sobre o caráter essencialmente eurocêntrico das narrativas sobre o “Oriente” a partir de obras literárias e de arte a partir do XVIII. Nesse sentido, o “Oriente” é apresentado como um espaço homogêneo e em estado permanente de “binarismo negativo” com a Europa. Nesse sentido, o espaço Ocidental seria “civilizado” e “democrático”, por exemplo, enquanto que “Orientais” seriam caracterizados de maneira opositora.
[2] A Sociedade de Profissionais do Sudão é um conglomerado de sindicatos sudaneses, reunindo organizações de professores, médicos e advogados, entrei outros. Foi formada em 2016 e articula experiências de organizações similares existentes desde a década de 1980.
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Fernando Brancoli é Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Contato: fbrancoli@gmail.com
Editora responsável: Simone da Silva Ribeiro Gomes