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  • Marcia Rangel Candido

O PARADOXO DE PELÉ


Semifinal da Copa do Mundo de 1970, Brasil x Uruguai

É um ano de luto para quem ama futebol nessa esquina sul-americana do Ocidente. Em meio ao calor carnavalesco de fevereiro, a Conmebol anunciou que a final da Libertadores da América de 2019 seria disputada em jogo único, em sede pré-definida. O maior jogo do ano será disputado longe das canchas dos finalistas, de seus bairros e suas torcidas – ou seja, deixará de ser o maior jogo do ano. Depois dessa profanação, ainda nos restava a Última Final em 2018, a última de todos os tempos. Quiseram os deuses do futebol, que algumas vezes encarnam maliciosos nos apitos dos juízes, que a última de todos os tempos fosse travada justamente entre Boca Juniors e River Plate, a maior rivalidade do continente. Pela primeira vez, dois times da mesma cidade. A Final de 2018 seria nada menos que a primeira e a última, como a vida.

De cada dez hinchas argentinos, sete torcem para Boca ou River. E os outros três torcem contra Boca e River. Buenos Aires foi tomada pela mais excruciante ansiedade que o futebol pode proporcionar, foi engolfada por toda a carga emocional que a palavra Final pode portar. O presidente da Federação de Cardiologia da Argentina recomendou em seu twitter que os cardíacos tivessem cuidado, não deixassem de tomar sua medicação. O jornal de maior circulação do país publicou “cinco recomendações para corações delicados”. Uma emissora de rádio anunciou uma transmissão do primeiro jogo com narração “zen”, com comentários ao vivo de um cardiologista. O presidente Maurício Macri, que foi presidente do Boca, também foi a público: era uma oportunidade, segundo ele, da Argentina mostrar sua civilidade e espírito esportivo. Ninguém lembrava, àquela altura, que Buenos Aires sediaria uma cúpula do G-20 alguns dias mais tarde, porque aquela era a Semana da Final.

A natureza não deixaria de comparecer ao evento, e uma tormenta bíblica alagou o estádio da Bombonera naquele sábado fatídico. Ardiloso, o Improvável fizera seu primeiro aceno a seus incautos adoradores. O jogo não aconteceu, mas aconteceria. No domingo, Boca e River produziram uma soberba partida de futebol, terminada, como uma longa nota em suspenso, num empate de quatro gols. O dia 23 de novembro foi então gravado a ferro quente na alma daquela gente: dia 23, enfim, a Final.

O jogo de volta também foi cancelado. O raio caiu efetivamente duas vezes no mesmo lugar. Mais especificamente caiu na cidade com o maior número de estádios de futebol do mundo, cada um deles funcionando como um pararraio dos caprichos da Fortuna. Ninguém ainda conseguiu explicar por quê, mas no dia 23 o ônibus do Boca foi designado a entrar no estádio sem escolta através de uma multidão alvirrubra, devidamente alcoolizada e inebriada de paixões violentas. O resultado, já o sabemos, foi lamentável. A partir daquele instante, em todos os cantos do planeta onde um vivente sabe o que significa uma final de Libertadores, entramos todos desabrigados no terreno do Insólito. Os torcedores do River, que abarrotavam as arquibancadas do Monumental de Núnez sob sol impiedoso, ficaram três horas sem saber se jogo haveria. Completamente desorientadas, as transmissões de televisão inventavam assunto e especulavam. Em especial apuro estava uma que, para honrar a magnitude do evento, começou a cobri-lo às 23h do dia anterior. O jogo não aconteceu, mas aconteceria?

Para evacuar aquela gente toda, prometeram que ele aconteceria no domingo. No entanto, sem que soubéssemos, a Final havia sido raptada. E pior: pela própria Conmebol, codinome para a equipe de marketing que organiza o evento. No domingo, os insultados torcedores retornavam resignados a Núñez quando souberam do sequestro. Circulava a notícia de que o estádio havia sido interditado. No nosso ano de luto, sobrava a deliciosa ironia: sabíamos todos com mais de ano de antecedência o local da final de 2019, mas ninguém sabia dizer onde diabos seria a Final do 23 de novembro, que virara 24 e depois esfumara no ar.

Estádio Monumental de Núñez, Buenos Aires- Argentina.

Por todos os lados autoridades e celebridades enfileiravam comiserações, culpando, como sempre, os torcedores por esse problema que é o futebol. Seguindo o roteiro da crise, erguem-se os clamores por um futebol domesticado a entretenimento, policiado, padronizado, televisionado. Esquecem eles que do futebol para o entretenimento há uma diferença fundamental, que pairava como chumbo nos Buenos Aires da capital argentina há duas semanas. Aos seus devotos, o futebol não promete duas horas de entretenimento, mas duas horas da mais atroz agonia. O êxtase é possível. A agonia, garantida.

O tempo parecia parado e a Final seguia em cárcere privado. De ansiosos passamos a perplexos. Estava a multidão congelada na praça à espera que os engravatados soprassem a fumaça branca do dia do jogo. De súbito, uma informação relampeia em meio à confusão: “não será na Argentina”, a Final não será na Argentina. A balbúrdia se instala, Fifa, G-20, Doha, Miami, Madri. E o golpe de misericórdia: Madri pagou o resgate. Como em tantas outras vezes na história, em meio à confusão havíamos sido roubados, e quando conseguimos percebê-lo nosso tesouro fora levado a Madri. Depois de ser patrocinada por um banco espanhol que enfiou por anos seu nome no torneio, a Copa Libertadores da América seria enfim realizada na capital da metrópole. Como suas sociedades, o futebol da América do Sul foi vítima da cumplicidade entreguista de seus dirigentes.

O dia era 17 de junho, o ano, 1970. O lugar? Jalisco. Lá estava o futebol sul-americano na semifinal da Copa do Mundo: Brasil e Uruguai faziam um jogo particularmente acirrado, com arroubos de violência. O Uruguai saiu ganhando logo aos 19 do primeiro tempo, quando uma falha de Brito convidou Cubilla a uma infiltração sorrateira pelo flanco direito. O Brasil impusera a virada com Clodoaldo, Jairzinho e Rivelino. Pelé apanhava como nunca e jogava como sempre. Já havia flertado com o Improvável quando rebateu da intermediária, de primeira, um tiro de meta mal cobrado pelo goleiro uruguaio. Defendendo aquele chute de Pelé, o arqueiro oriental poderia ter se livrado de entrar para a história do futebol como ingrato coadjuvante das bruxarias que o Camisa 10 andava aprontando no México. Mas não teve essa sorte. No final do jogo, Pelé faria sua jogada mais mística, mais bela e mais imponderável. Tostão enfia uma bola diagonal e Pelé entra em velocidade: seu ponto de encontro com a bola é um metro ou dois à frente do goleiro uruguaio. No momento crucial em que atinge a bola em movimento, contra todos os escrúpulos e possibilidades, ele se abstém de encostar nela, deixando que uma entidade invisível aplique o drible sobre o goleiro. Invisível para nós, claro, não para ele. O desalentado goleiro uruguaio, cindido em dois, ergue a mão direita para tentar agarrar o invasor, para parar o consumado. Em câmera lenta, se vê sua mão se desfazendo em um soco no ar, como se a sombra de Pelé lhe escorresse pelos dedos.

É uma jogada irrepetível, um parênteses mágico em meio à mecânica do jogo. Mas o mais perturbador sobre ela talvez seja que a genialidade de Pelé se resume a não tocar na bola, aparentemente a coisa mais trivial que se pode fazer com ela. Qualquer pessoa consegue não tocar na bola, mas só Pelé até hoje conseguiu fazer aquele drible terrível. Em um átimo, ele vê algo que gerações e gerações depois dele parecem não conceber possível; é como se, até o fim dos tempos, ele driblasse cada espectador que vê a jogada pela primeira vez. Em um jogo em que por definição se chuta a bola, ser genial sem encostar nela é o Paradoxo de Pelé.

A Conmebol quer finais em campo neutro para melhorar o futebol sul-americano. Quer torcidas mais aprazíveis, um calendário rígido, um espetáculo organizado, enfim, um produto com mais valor de mercado. Não quer sinalizadores para que não haja fumaça em campo. Quer que o vídeo elimine os erros do árbitro no campo. Quer que as pessoas possam desfrutar duas horas de entretenimento. E para melhorar nosso futebol está disposta até mesmo a raptar a Final. Em sua faina modernizadora, os cartolas parecem incapazes de compreender o Paradoxo de Pelé. O que eu gostaria de dizer-lhes é óbvio: o melhor que vocês podem fazer pelo futebol sul-americano é não tocar nele. Deixar que façam o jogo os jogadores e suas divindades secretas. Que façam a festa as torcidas com seu magma de cores e sons, que revolve o que há de mais profundo pelo que há de mais prosaico. Que nossos lugares sagrados sejam sempre respeitados.

Mas o que peço é pouco, é quase um gesto de clemência. Ao fim e ao cabo, a final de 2019 já está marcada para Santiago do Chile. E outras virão, marcadas com anos de antecedência, com a empáfia austera de quem crava um dedo no mapa. Vocês terão todas as finais dali em diante. Respeitem pelo menos nossas despedidas, nossa liturgia fúnebre. Devolvam a Final raptada em Núñez. Deixem-nos ver essa última. A Última de Todos Tempos.

Pedro dos Santos de Borba é cientista político e membro da ordem mendicante dos devotos de futebol.

Contato: pedro.santos.borba@gmail.com

 

Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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