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  • Marcia Rangel Candido

BOLSONARISMO E O RISCO AUTOCRÁTICO: ENSAIO SOBRE UMA POSSÍVEL RESISTÊNCIA


Antonio Berni. Manifestación, 1934.

Resumo: Este ensaio diagnostica os traços autoritários do que chamo de “bolsonarismo”, elenca as prováveis estratégias que serão utilizadas para subverter a democracia brasileira e apresenta alguns métodos de resistência. Nesta primeira parte, o fio condutor é a análise de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt sobre o deslize autocrático nas democracias contemporâneas. Em seguida, por meio de visualização gráfica, análise de componentes principais e conglomerados hierárquicos, explora-se a formação de coalizões na Câmara dos Deputados em 2019, com o intuito de discernir a provável base de apoio do futuro governo Bolsonaro e o tamanho possível de uma ampla oposição. A principal tese é que, apesar da grande convergência programático-ideológica entre o "bolsonarismo" e a futura Câmara, o cenário inicial mais verossímil é de um presidente enfraquecido por causa de um legislativo altamente fragmentado, sem recursos suficientes para cooptar o número necessário de cadeiras para aprovar muitas de suas medidas. Tal situação pode ser vantajosa para a oposição na medida em que ela consiga deixar de lado as divergências internas e formar uma ampla aliança, tanto à esquerda quanto à direita, entre progressistas e conservadores moderados.

O "bolsonarismo" e seus quatro estigmas autoritários

Juan Linz, eminente cientista político, falecido em 2013, dedicou boa parte de sua carreira ao estudo de como democracias acabam por se tornar regimes autoritários. O autor tinha bastante experiência na identificação de potenciais autocratas. Não só acadêmica, como de vida. Nascido na República de Weimar em 1926, cresceu na Espanha durante os anos da Guerra Civil. Formou-se pela Universidad Complutense de Madrid, fez doutorado na Columbia University e foi lecionar em Yale. Em The breakdown of democratic regimes (1996), Linz chegou a esboçar um teste de como reconhecer perfis autocráticos, o qual acabou não concluindo antes de sua morte. Felizmente outros dois politólogos, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, ambos da Havard University e autores de Como as democracias morrem (2018), um dos best-sellers do momento, retomaram o trabalho do colega de Yale. A dupla elaborou uma lista de quatro critérios, que servem como uma espécie de sinal de alerta. São eles: 1) rejeição das regras do jogo democrático, 2) negação da legitimidade dos oponentes políticos, 3) tolerância ou encorajamento à violência e 4) propensão a restringir a liberdade civil de oponentes, inclusive da mídia.

Livitsky e Ziblatt ressaltam que um político proeminente que se enquadre em apenas um destes quesitos já é motivo de preocupação. O ex-deputado federal Jair Messias Bolsonaro, eleito em 28 de outubro de 2018 presidente do Brasil com 57.796.972 votos - cerca de 55% do total de válidos - preenche com excelência todos os quatro. Não só ele como os membros de seu entourage: o vice Hamilton Mourão, general da reserva; os filhos Flávio, Eduardo e Carlos Bolsonaro, respectivamente senador, deputado federal e vereador na cidade do Rio de Janeiro; Gustavo Bebbiano, atual presidente do Partido Social Liberal (PSL), pelo qual Jair foi eleito, e até mesmo Paulo Guedes, economista de veia ortodoxa formado em Chicago, atual guru de Bolsonaro-pai e sua referência para qualquer questão econômica - tanto que foi apelidado de “posto Ipiranga”, em alusão à propaganda da rede de combustíveis. Uma vez que a marca autocrática se dissemina por seus asseclas, não se restringindo ao líder carismático, aqui faremos referência não a Jair Bolsonaro em específico, mas ao movimento que emerge dele, espalha-se ao seu redor e encontra ampla reciprocidade de sentido na sociedade. Algo que está em vias de se tornar um novo tipo de populismo de extrema-direita, ao qual chamaremos de bolsonarismo.

Senão vejamos. Eduardo Bolsonaro, em palestra dada em um curso para candidatos à policial federal, disse que um cabo e um soldado bastariam para fechar o Supremo Tribunal Federal (STF). Mourão, vice de Jair, já defendeu um `autogolpe`, uma nova constituição elaborada apenas por notáveis, sem uma Assembleia Constituinte escolhida pelo povo, além de ter defendido uma intervenção militar, em setembro de 2017, para solucionar o problema da corrupção no país. O próprio Jair Bolsonaro contestou inúmeras vezes a legitimidade das urnas no pleito de 2018, mesmo liderando a corrida após a retirada da candidatura do ex-presidente Lula. Chegou, inclusive, a dizer que não aceitaria outro resultado que não a vitória. Nos 27 anos em que foi deputado federal, diga-se de passagem, o ex-capitão do exército nunca contestou a voz das urnas. Até mesmo Paulo Guedes, de perfil mais técnico, propôs certa restrição ao princípio de liberdade no exercício do mandato parlamentar quando sugeriu o “voto programático de bancada”, em que todos os votos de um partido seriam a favor ou contra determinado projeto se mais da metade de seus membros votassem da mesma maneira. Todos esses episódios, apenas para citar alguns, são evidências de que o bolsonarismo rejeita a constituição, expressa disposição em violá-la e tenta minar a legitimidade das eleições, pilar de todo e qualquer democracia. Cumpre, portanto, o critério um: rejeição das regras do jogo democrático.

Passemos ao critério dois: negação da legitimidade dos oponentes políticos. O discurso de Bolsonaro e seus seguidores frequentemente desqualifica a esquerda e as minorias no debate político. Para começar a lista de evidências, vemos que na página 32 de seu plano de governo o bolsonarismo pretende criminalizar como terrorismo a ocupação de propriedades rurais improdutivas ou de imóveis urbanos abandonados, tais como as praticadas por movimentos sociais como Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Em seguida, podemos citar declaração feita logo após o resultado do primeiro turno, em que Jair afirmou que poria um “…ponto final em todos os ativismos do Brasil”. Já Gustavo Bebbiano, presidente do PSL, mencionou em entrevista ao jornal Estado de São Paulo que não haveria qualquer diálogo com partidos de esquerda, tais como o PT, PC do B e PSOL, porque eles representariam o “mal” no Brasil. Por fim, mas não por último, porque poderíamos citar ainda muitos outros casos, temos as fake news disseminadas nas redes socais durante a campanha. Fossem elas espalhadas pela própria chapa do candidato ou por seus simpatizantes, elas incitavam o medo de que o rival Fernando Haddad distribuiria “kit- gays nas escolas”, com o objetivo de implantar o que os bolsonaristas chamam de a “nefasta ideologia de gênero”, e assim subverter a incauta juventude brasileira.

Adversários são descritos como subversivos e opostos à ordem; indignos moralmente de participarem na vida pública; ameaça à segurança nacional e aos valores da família. Assim o bolsonarismo gabarita a segunda questão do teste autocrático.

Quanto ao terceiro e quarto critérios, eles estão intimamente ligados ao segundo, no que toca à negação do outro. Que o bolsonarismo encoraja ou tolera a violência, critério três, não é novidade para ninguém. Basta entrar no Youtube para ter acesso a coletâneas de suas falas, nas quais apoia abertamente a tortura e o extermínio. Ainda nos idos de 1999, disse em entrevista a um programa de TV que nada se resolveria com democracia e que apenas o assassinato de 30.000 pessoas - cuja a Ditadura de 1964-1985 não matara - a começar pelo então presidente, Fernando Henrique Cardoso - é que daria fim aos problemas do país. Na campanha de 2018, conclamou seguidores em comício no estado do Acre a “metralhar a petralhada”. Seu herói, como bem se sabe, é o coronel Carlos Brilhante Ustra. Diga-se de passagem, não só seu, mas também de seu vice, o general Hamilton Mourão. Um dos mais cruéis torturadores da Ditadura, Ustra chefiou o Destacamento de Operações de Informação no Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) de São Paulo. Relatos de suas vítimas contam casos de tortura com eletrochoques, pau-de-arara e espancamento. Quando eram mulheres, as estupravam, introduzindo inclusive ratos e o outros animais vivos em suas vaginas. Quando elas eram mães, expunham-nas ensanguentadas, urinadas, vomitadas e espancadas aos seus filhos, num reforço da tortura física com a tortura psicológica.

Para não ficarmos apenas no pai e no vice, falemos também dos filhos. Carlos, por exemplo, é outro que manifestou simpatia pelo uso da violência contra o adversário. Eis uma postagem sua no Twitter, de 9 de outubro de 2018: “Com a vitória no primeiro turno, vamos acabar com o PT e com a esquerda. É a última vez que eles terão candidato à presidência. Vai ter coturno no pescoço desses merdas”. Eduardo Bolsonaro, por sua vez, o filho mais novo dos que atuam na política, foi denunciado pela procuradora geral da República, Raguel Dodge, prestou denúncia contra ele em virtude de ameaças que teria feito à jornalista Patrícia Lelis, depois de esta ter desmentido que os dois estariam namorando. Segundo os prints de conversas anexados aos autos, Eduardo disse, que a jornalista “-…tinha que ter apanhado mais para aprender a ficar calada” e ainda: “Vai para o inferno. Puta. Você vai se arrepender de ter nascido. O aviso está dado. Mais uma palavra e eu vou pessoalmente atrás de você. Não pode me envergonhar…”.

Declarações do pai, declarações do vice, declarações dos filhos. Mas a violência do bolsonarismo não se restringe aos seus líderes e tampouco fica só nas palavras. Os inúmeros casos de agressão e até morte registrados no país por motivos políticos mostram que os simpatizantes do bolsonarismo estão mais do que dispostos a usar a força contra quem pensa diferente. Em carreatas a favor do candidato houve, inclusive, cartazes e panfletos com os dizeres de que “petista bom era petista morto”. Inicialmente Jair demonstrou buscou se eximir da responsabilidade por tais atos. Apenas depois de ser cobrado pela mídia é que os rejeitou de forma mais veemente. Contudo, o posicionamento, como é comum em seu discurso, foi posteriormente contradito por outra declaração, qual seja: “-…a faxina será muito mais ampla. Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão pra fora, ou vão para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão varridos da nossa pátria”. Pronunciamento realizado após o resultado do primeiro turno, que faz referência ao Partido dos Trabalhadores e à esquerda como um todo.

Da rejeição das regras para a rejeição do outro e ao encorajamento da violência, chegamos ao último critério: propensão em restringir liberdade dos oponentes. Aqui podemos elencar novamente a já citada proposta de criminalizar movimentos sociais como o MST e o MTST, afora a declaração de que poria um “ponto final em todos os ativismos no Brasil”. Apesar de terem sido usadas como evidência para o segundo critério - a negação de legitimidade do adversário em participar do jogo político -, tais medidas sinalizam, concomitantemente, a intenção clara em restringir as liberdades civis destes mesmos oponente.

Outro traço que também pertence a outro critério, mas que não deixa de se aplicar a este último, é o elogio de medidas e governos repressivos, tanto no passado do Brasil quanto em outros lugares do mundo. Esta característica, marcante do bolsonarismo, não deixa de pertencer ao critério três, ainda que Levitsy e Ziblatt listem como um dos sintomas do quarto. Das práticas que Bolsonaro e seus asseclas lançaram mão ao longo da campanha presidencial, talvez a mais diacrítica deste quarto e último traço do perfil autoritário seja a persecução e o assédio a quem pensa diferente. Ao longo da corrida presidencial, a campanha de Jair Bolsonaro entrou com três ações no Tribunal Superior Eleitoral contra o jornal Folha de São Paulo, responsável pelo furo sobre o disparo em massa de fake news, que tinham também como conjuntura o uso de base de dados comprados de terceiros, prática que é vetada pela Lei Eleitoral. A mesma Folha, logo após o segundo turno, elaborou um levantamento de ataques à imprensa feitos por Bolsonaro. No total foram 129 ocorrências, contabilizados desde janeiro de 2018, concentradas em sua maior parte na última semana da campanha, quando chegaram a dez por semana. Houve ainda o caso estapafúrdio em que o candidato do PSL e sua equipe entraram com uma ação no TSE pedindo a investigação do cantor e compositor Roger Waters, ex-Pink Floyd, por suposto abuso de poder econômico, difamação e propaganda em favor do adversário Fernando Haddad (PT) durante os shows de sua turnê no Brasil, realizada em outubro de 2018.

Em suma, o bolsonarismo gabarita sem dificuldades o teste de potenciais autoritários de Levitsky e Ziblatt. Por cerca de quase 30 anos, aquele que hoje é o seu líder foi apenas um deputado do baixo clero na Câmara. Uma figura histriônica, prolífica em declarações polêmicas, mas que nunca despertou mais do que curiosidade, deboche ou um pouco de assombro. Esta caricatura, infelizmente, foi eleita presidente do Brasil. E somados a todos os poderes que vêm com o cargo, goza de amplo apoio no congresso, sem contar a massa de seguidores nas ruas e redes sociais. E isto num contexto global de recessão democrática e ascensão do populismo de extrema-direita, inclusive com projetos de articulação em rede capitaneados por Steve Bannon, ideólogo da alt-right norte-americana e ex-estrategista de Donald Trump.

O bolsonarismo no poder: estratégias autoritárias

O grande problema do comportamento autocrata - corolário direto de seus traços de personalidade - é que falta na sua ação duas características centrais para o funcionamento de qualquer democracia. A primeira delas é a tolerância mútua, que significa simplesmente o reconhecimento do adversário. Por mais que não concordemos e nem gostemos dele, ele tem o mesmo direito que nós em existir e competir pelo poder. O outro não é uma ameaça existencial, um inimigo do modo de vida e tampouco o anticristo encarnado. Apenas pensa diferente.

A segunda é o que se chama de reserva institucional. Significa autocontrole, comedimento, ou o autolimite em usar de todas as prerrogativas legais na consecução de um projeto de poder. Ela, ou melhor, a sua ausência, pode ser considerada o diacrítico das autocracias atuais. As lideranças autoritárias do mundo de hoje, como Recep Erdogan, na Turquia, Viktor Orban, na Hungria, Rodrigo Duterte, nas Filipinas, ou Vladmir Putin, na Rússia, não chegaram ao poder por golpes de estado, mas pelo voto. O autocrata golpista é algo em extinção. A espécie dominante no mundo contemporâneo é o autocrata eleito.

A principal diferença entre esta nova estirpe e a do passado é que os autocratas atuais não subvertem a democracia de imediato. Não fecham o congresso nem a suprema corte e tampouco cerceiam direitos e liberdades civis tão logo assumem. A passagem para o autoritarismo é gradual. Mais veloz nuns casos, mais devagar noutros. Intencional e premeditada em alguns, enquanto em terceiros é uma consequência inesperada de uma cadeia de ação e retaliação entre governo e oposição. Lento ou rápido, voluntário ou não, autocratas abandonam a reserva institucional para usar de todas as ferramentas ao seu alcance para se consolidarem no poder, mesmo que tenham de esgarçar os limites da legalidade. Neste mister eles usam de três estratégias gerais: 1) captura de árbitros, 2) retirada de jogadores-chave e 3) mudança das regras do jogo em benefício próprio.

Todo o jogo, não importa o tipo, possui alguma espécie de árbitro, incumbido de fiscalizar os jogadores. Nos estados-nações contemporâneos eles se encarnam nas agências de segurança pública, sistema judiciário, serviços de inteligência, agências reguladoras, tributárias, ministério público, dentre outros. O que diferencia tais instituições, nas democracias modernas, é que elas possuem relativa autonomia e neutralidade em relação ao governo. Caso contrário, não poderiam fiscalizá-lo com imparcialidade. Capturar os árbitros, então, é trazê-los para o seu lado, tornando-os parciais.

Para botar isso em prática, o autocrata lança mão de diferentes estratagemas: substituição de servidores públicos isentos por sectários, chantagem, mudanças na composição de cortes de justiça e até mesmo a sua destruição completa e criação de novas. Como já visto na seção anterior, o bolsonarismo mostra-se disposto a utilizar algumas delas. Lembremos, por exemplo, da citada palestra de Eduardo Bolsonaro, segundo o qual bastariam um soldado e um cabo para fechar o STF. Seu pai, apesar de recentemente ter recuado, disse seguidas vezes que pretende aumentar o número de ministros na mesma corte, de 11 para 21. Se implantada, tal medida daria a indicação não de 10, mas de 12 novos ministros, uma vez que Celso de Mello e Marco Aurélio de Mello se aposentam compulsoriamente nos próximos anos. Com mais ministros aliados ao bolsonarismo, ou ao menos ideologicamente afins, a corte se tornaria mais favorável a decisões pró-governo. Em declaração mais recente, Bolsonaro disse também que não irá respeitar a lista tríplice para indicação da procuradoria geral da república nem de outros órgãos, numa clara sugestão de que pretende colocar aliados seus no comando dessas instituições.

Com a captura de árbitros, o líder autocrata tira dois benefícios. Primeiro, pode restringir direitos, violar a lei e até a constituição sem ter com o que se preocupar. Afinal, os vigilantes e quem os vigiam são, agora, seus parceiros. Em segundo, lucra porque consegue aplicar a lei seletivamente, perseguindo o adversário-transformado-em-inimigo e favorecendo aqueles que o apoiam.

Cooptados os aplicadores das normas, o autocrata eleito passa para a remoção de jogadores-chave. Pelo termo se designa qualquer ator cuja ação possua grandes efeitos potencias em prejudicar o governo. Na categoria podemos incluir políticos proeminentes da oposição, líderes empresariais dissidentes, jornais independentes, artistas, professores universitários ou qualquer outra figura pública que, seja dum ponto de vista do capital político, econômico, simbólico ou social, consigam galvanizar uma resistência ao projeto autoritário. Retirá-los do jogo, então, é a garantia de um governo sem entraves. Para serem postos de fora da partida, tais jogadores podem ser comprados, chantageados, intimidados, assediados ou marginalizados legalmente através do uso seletivo do aparato jurídico, uma vez que os árbitros foram capturados. De tais táticas, o Bolsonaro e seu entourage preferem, ao menos por enquanto, a persecução legal - veja-se os citados processos contra jornais e artistas.

Mas como o bolsonarismo não se restringe aos seus líderes, cabe analisar também os seus seguidores. Estes se valem principalmente do assédio e intimidação. Logo após o segundo turno, a deputada estadual de Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo (PSL), solicitou em suas redes sociais que alunos gravassem e lhe enviassem tentativas de “doutrinação” por parte de professores frustrados com a vitória de Bolsonaro. Circula também pela web uma lista de personas non-gratas, celebridades em sua maior parte, às quais seguidores de Bolsonaro pedem que sejam boicotadas por terem se manifestado publicamente contra o candidato. Na Universidade de Brasília professores chegaram a cancelar as aulas após ameaças de bolsonaristas.

Depois de cooptar árbitros e retirar jogadores-chave, o autocrata eleito parte para mudar as regras do jogo ao seu favor. É nesta fase que ele e seu séquito tentam se entrincheirar no poder, garantindo a longevidade para além do tempo de mandato constitucionalmente estabelecido. Contudo, não através necessariamente de um autogolpe, onde uma maior centralização é obtida por meio do uso da força. No deslize autoritário, a consolidação autocrática busca manter um verniz de democracia. A oposição não é de todo obliterada, mas enfraquecida ao ponto de se tornar inócua.

Dentre as muitas medidas que um líder como Bolsonaro pode lançar mão para alcançar este objetivo, a principal é a reforma à Constituição, do sistema eleitoral, das demais instituições estatais e em como elas desenham o sistema de pesos e contrapesos que impedem o abuso de poder. A fala de seu vice, general Hamilton Mourão, sobre a constituição escrita por notáveis, se encaixa neste plano. O mesmo pode ser dito sobre a aludida intenção em aumentar a composição do STF, de 11 para 21 ministros. Aqui, diferente de outros países, o número de ministros na mais alta corte jurídica está inscrito na Constituição Federal, de modo que, para modificá-la, seria necessária a aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) - maioria qualificada, em dois turnos, tanto na Câmara quanto no Senado. E ainda que tenha tocado pouco no assunto, o futuro presidente já demonstrou que gostaria de reduzir pela metade o número de cadeira na Câmara dos Deputados. Em Como as democracias morrem (2018), Levistky e Zibblat dão exemplos do subterfúgio de gerrymandering, prática que consiste em redesenhar o limite de distritos eleitorais, de modo a favorecer determinados grupos em detrimento de outros. Mas o Brasil, diferente dos EUA, adota o voto proporcional por lista aberta na representação da câmara baixa. Efeito similar aqui poderia ser obtido se as cadeiras fossem retiradas de estados onde partidos da oposição possuem maioria robusta. Por exemplo, todos os pertencentes à região Nordeste, onde Fernando Haddad (PT) ganhou de Bolsonaro com expressiva vantagem, tanto no primeiro como no segundo turno.

Bolsonaro e o bolsonarismo, portanto, possuem todos os sintomas de uma regime autoritário e muitas de suas ações se encaixam nas estratégias clássicas que os autocratas eleitos dos tempos atuais usam para subverter as democracias. Mas pode ser que, ao contrário de todos os temores, Jair Messias Bolsonaro venha a se mostrar um devoto fiel dos princípios democráticos, como vem propagandeando em suas mais recentes entrevistas, inclusive no discurso após a vitória no segundo turno. Deveras, não é possível prever o futuro - não ao menos com cem por cento de certeza. Mas como a história costuma se repetir - para alguns como tragédia, para outros como farsa e para terceiros como rima - os estigmas autoritários do bolsonarismo não devem ser ignorados. O deslize autocrático no Brasil não irá ou poderá acontecer depois de 3 de janeiro, quando o futuro presidente vestir a faixa. Ao que tudo indica, ele já está em curso. Mesmo que as últimas declarações tentem amenizar as anteriores, mais autoritárias, não se deve descartar a prudência. Na história não é possível voltar atrás e repetir o experimento. O partido nazista alemão não levou a maioria das cadeiras na eleição de 1932, nem Hitler foi convocado para assumir o posto de Chanceler em 1933 com a promessa de incendiar o Reichstag, dissolver o parlamento e chacinar milhões de judeus e membros de outras minorias. Para evitar que a profecia se cumpra, cabe pensar e organizar a resistência imediatamente. O grande problema é como o fazer.

Bolsonarismo: estratégias de resistência

Carl Von Clausewitz (178–1831) descreve em seu tratado “Da Guerra” o processo que chama de escalada para os extremos. Num conflito hipotético, aquele que usa da força com maior eficácia e ferocidade, com o intuito de submeter o oponente à sua vontade, acaba levando vantagem se este não reagir da mesma maneira. Então, numa espiral de ação e retaliação, a disputa se radicaliza rumo à transgressão de todo o limite de qualquer ordem no uso da violência, até chegar à eliminação física e completa do “inimigo”.

A ideia, é verdade, foi pensada com base em conflitos bélicos entre estado-nações europeus ao longo do século XIX, mas nada impede que seja usada como metáfora na política. Aqui nos apropriamos dela justamente para nos referirmos ao que não deve ser feito enquanto estratégia de oposição: usar das mesmas armas para se opor ao adversário. É verdade que se contrapor de uma maneira democrática a alguém que não tem tolerância pela alteridade e tampouco reserva em usar de todos os meios na consecução de seus objetivos é uma tarefa difícil. No entanto, segundo Levitsky e Zibblat (2018), agir de outra maneira que não seja pelas regras do jogo, temperadas com respeito e contenção legal, é dar munição para o inimigo, pois táticas extremistas acabam por fortalecer o autocrata eleito, na medida em que afastam os setores moderados que poderiam ser recrutados para a oposição. Concomitantemente, fortalecem a base governista. Ainda que ela esteja rachada, não há gerador de solidariedade melhor que um inimigo comum. Usar os canais legais onde quer que existam e evitar a belicosidade extrema, então, é o caminho a ser seguido para defender a democracia, defendem os referidos autores - seja nas ruas, no Congresso ou onde quer que o valha. Agir pelas regras do jogo contra um adversário que deseja quebrá-las é reforçá-las na prática, uma vez que elas precisam ser postas em ação para permanecerem vivas.

Ou seja: nos quatro anos vindouros, nossas jovens instituições terão de ser constantemente ativadas, atualizadas e usadas no espaço público. Não para alterar as regras, mas para fortalecê-las. E nada melhor para fazer isso que uma ampla coalização: tanto à esquerda quanto à direta, entre empresários e sindicatos, religiosos e seculares, costurando estado, sociedade civil e mercado. Coalizações convergentes, que partilham das mesmas ideias, projetos e valores, são fáceis de formar. Já as divergentes requererem concessões, paciência, muita conversa e tolerância. O que não significa, como ressaltam Levitsky e Zimblat, abandonar causas. Mas sim ignorar desacordos temporários para que se encontre uma base moral comum - requisito de toda e qualquer tolerância mútua, onde o outro, mesmo que adversário, é um igual.

Em que pese os obstáculos que lhe são inerentes, portanto, uma coalização divergente ganha vantagem por ser ampla e irrestrita a um bastião. Ao trespassar transversalmente os mais diversos setores da sociedade, pode vir a isolar o bolsonarismo numa base estreita. Caso contrário, ele tende a se expandir e ganhar respaldo. Se não abertamente, no silêncio da maioria. Uma oposição formada apenas pelo PT, por exemplo, alimentaria somente o antipetismo e restringiria sua base aos estados do nordeste e a alguns locais da região norte. Uma coalizão com outros setores da esquerda seria mais forte, mas ainda estaria restrita a uma única orientação geral sobre a política econômica. Agora, uma aliança entre partidos de esquerda e centro-direita, junto aos movimentos sociais, setores progressistas da Igreja e outras confissões, somados a elementos do capital rentista e industrial, talvez possa vir a fazer a diferença. Deveras, no contexto brasileiro, tal tarefa é hercúlea. O pluralismo do legislativo brasileiro, um dos mais fragmentados do mundo, temperado com uma sociedade extremamente desigual, multiplicam os obstáculos. São muitos muros a serem derrubados, muitas pontes a serem construídas. Mas não encarar a empreitada é aceitar a derrota antecipadamente, na vã esperança de que a inércia será mais efetiva que a ação.

Sendo assim, o restante deste trabalho procura explorar um lócus e um tipo de resistência específico: a câmara dos deputados federais na 56ª legislatura, a ser iniciada em 2019. A análise é simples e propõe projetar o tamanho de possíveis coalizações governistas e oposicionistas a partir do alinhamento ideológico dos partidos em dois eixos: econômico e social. Como ainda não houveram votações na nova composição da câmara, os dados foram estimados a partir das votações anteriores e aglutinados por partidos. Os dados utilizados foram levantados previamente por André Shalders e publicados numa reportagem da BBC Brasil, em setembro de 2017. O peso de cada partido, por sua vez, seguiu a proporção de cadeiras que conquistaram no parlamento na eleição de 2018. Aqueles que ainda não possuíam representação na câmara tiveram seus valores aproximados daqueles com os quais mais se assemelhavam. Para o Partido Novo, por exemplo, utilizamos valores próximos ao do PSDB, mas com escores ainda mais altos no campo do liberalismo econômico. Para outros sobre os quais pouco se sabia - como o Partido da Mobilização Nacional (PMN) - imaginamos como sua bancada votaria em cada uma das pautas, dado o programa do partido. Ao todo foram cinco os estreantes na nova legislatura. Somam-se ao NOVO e ao PMN a REDE de Marina Silva, o PPL de João Goulart Filho e a Democracia Cristã de José Maria Emayel, todos os três candidatos à presidência no pleito de 2018.

Na figura 1, exposta a seguir, vemos a distribuição dos 30 partidos que comporão a nova Câmara dos deputados. O eixo vertical separa o gráfico em esquerda econômica x direita econômica, enquanto o horizontal entre progressistas x conservadores quanto a questões de cunho social. Na classificação cruzada, portanto, surgem quatro posições: esquerda progressista, esquerda conservadora, direita progressista e direita conservadora. Cada uma delas se distribui no gráfico, respectivamente, no quadrante inferior esquerdo, quadrante superior esquerdo, superior direito e inferior direito. Quanto à localização de cada partido em um ou outro, varia conforme a proporção de votos de sua bancada, sendo ela contra ou a favor de determinadas pautas. Para definir a posição no eixo econômico, Shalders utilizou as seguintes votações: a mudança nas regras de exploração do pré-sal, a reforma trabalhista, a liberação de cursos pagos em universidades públicas, a extensão da terceirização para a atividades-fim e a PEC do teto de gastos. Para o eixo social, foram utilizadas a votação da Lei Antiterrorismo, o pacote anticorrupção - depois de desfigurado por parlamentares que buscavam se proteger das investigações - além da redução da maioridade penal e das reservas ambientais, fora a lei que elevava a vaquejada à patrimônio cultural brasileiro, legislação esta que sofreu forte crítica de setores ligados a entidades de defesa dos animais. Todas as votações da pauta econômica se ligam ao projeto liberal, enquanto as sociais, ao conservadorismo. Em ambos os casos, portanto, foram contabilizados a proporção da bancada que votou a favor de cada uma delas. Em seguida, retirou-se a média em cada um desses eixos. Logo, quanto mais altos os valores da média, mais de direita e conservador é o partido - o que permitiria classificá-lo como de extrema-direita. Quanto mais baixo os valores, mais de esquerda e progressista é o partido - o que permitiria classificá-lo como de esquerda libertária. As tabelas 1 e 2 no final do artigo mostram como votaram cada um deles.

As possíveis coalizões

A 56ª legislatura da Câmara Federal brasileira terá, ao todo, 30 partidos. Mas como boa parte deles são pequenos, com uma bancada que não passa de dois ou três deputados, muitos não terão grande poder de influência nas votações da câmara, cujo total de cadeiras, cabe lembrar, é de 513. Para saber, então, em quantos partidos de fato o legislativo de um país se divide, os politólogos Marku Laakso e Ren Taagepera (1979) elaboraram o índice conhecido como Número Efetivo de Partidos, o NEP, calculado pelo inverso do somatório do quadrado das proporções de votos ou assentos obtidos por cada partido. De acordo com dados de Jairo Nicolau (2017), o NEP da Câmara em 1994, início do primeiro governo FHC, era de oito. Sobe para nove em 2003, 11 em 2011, 13 em 2015 e, atualmente, chega a 16. Cabe ressaltar, contudo, que o número tende a cair. Por causa da cláusula de barreira, os partidos que não a atingiram estão permitidos a se fundirem ou seus deputados estão liberados para trocarem de sigla. Ao todo, são cerca de 32 deputados de 14 partidos que se encontram nesta situação.

Num sistema como o brasileiro, definido por Sérgio Abranches (2018) como “presidencialismo de coalização”, o presidente concentra em si a representação do país como um todo. É, como diz o autor, o único representante da maioria. Contudo, tem que conviver e lidar com outros tipos de representantes, avatares de uma vontade mais difusa, eleitos não por votação majoritária, mas proporcionalmente por cada estado. Somado à dispersão multipartidária, tal contrapeso à concentração do poder executivo faz com que ele necessite construir ampla aliança interpartidária para governar. Quanto mais fragmentado o legislativo e menor o partido do presidente, então, mais partidos ele precisa cooptar para sua base. Portanto, mais frágil ele é em relação ao parlamento. Chasty, Cheeseman e Power (2014) elaboraram o Índice de Necessidade de Coalizão para medir esta fraqueza. Basicamente, ele consiste em multiplicar o NEP pela proporção de cadeiras não ocupadas pelo partido do presidente. Segundo Bertolini e Pereira (2017), esse índice se mantém em torno de 62 durante os anos FHC. Durante o período Lula, começa em 67 e sobe para 85 em 2010, na metade do primeiro governo Dilma. Nos seguintes ele dispara e chega à 132 em 2016. Medidos para Câmara a partir de 2019, ele salta para 167.

Quer queira quer não, o bolsonarismo necessitará da coalizão. Uma vez que muitas de suas polêmicas propostas necessitam da aprovação de emendas à constituição, isto significa obter uma maioria qualificada de 308 deputados. Somente no quadrante ideológico em que seu partido, o PSL, se encontra, o bolsonarismo alcança esse número com folga. Na figura 1, a direita conservadora tem 20 partidos e um total de 391 deputados. A oposição, então, dispersa entre os outros três, como bem se observa, teria apenas 122 votos, distribuídos entre dez partidos: PC do B, PDT, PMN, PPL, PPS, PSOL, PT, PTC, PV, REDE. Para ser eficaz, então, ela terá de não só costurar uma aliança entre os três outros quadrantes - esquerda progressista, esquerda conservadora e direita progressista - como também terá que cooptar partidos mais próximos ao centro da direita conservadora. Se limitarmos o espaço da centro-direita aos que estão acima de 0.5 nos âmbito social e na economia, mas abaixo de 0.75, a oposição ganha mais 6 partidos, com uma bancada de 65, o que dá um total de 187 deputados e 16 partidos. Apesar da melhor, o número é ainda insuficiente. A extrema-direita contaria ainda com um total de 326 votos - 18 a mais que o mínimo de 308 necessários para se aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição.

A esperança é que a média entre muitas variáveis talvez não seja a melhor maneira de resumi-las. Medidas de tendência central não consideram a variabilidade ou possíveis associações entre as variáveis que compõem cada uma das pautas, tanto internamente quanto externamente. Em análises multivariadas, como é o caso, recomenda-se o uso de técnicas de redução de dimensões. Frequentemente utilizadas em aprendizado de máquina não-supervisionado, elas têm dois objetivos gerais: 1) a descoberta de padrões latentes nos dados e 2) delimitação de grupos homogêneos numa população. A análise de componentes principais (PCA), voltada para o primeiro, tenta diminuir uma dada quantidade de variáveis numéricas através da combinação linear entre elas, mantendo o máximo de variâncias possível. O resultado são novas variáveis - os componentes principais - que são ortogonais uns aos outros. Isto é, não correlacionados. Através da análise de componentes principais, então, é possível descobrir padrões estruturais latentes entre as variáveis. Em seguida, podemos aplicar uma análise de conglomerados sobre os componentes principais para delinear como os 30 partidos da próxima legislatura se repartem em grupos mais ou menos similares internamente e dissimilares externamente.

Em nossos dados, temos ao todo dez variáveis numéricas - cinco para a pauta econômica e cinco para a pauta moral. Uma análise de componentes principais pode identificar até dez novas variáveis ortogonais, mantendo o máximo de variação das originais. Tal resultado, contudo, seria redundante, na medida em que não diminuiria o número original e resultaria em overfitting. Em um PCA, o objetivo é sempre escolher o modelo mais parcimonioso: o que explique o máximo de variação com menos componentes possíveis, dando alguma margem para o acaso. Um método para escolher o melhor número de componentes é através da análise do scree plot, que plota a variância explicada pelo número de componentes. Também conhecido como gráfico de cotovelo, ele recebe este nome porque indica a melhor quantidade de componentes na “dobra” da curva. Ou seja, quando a variância explicada cai e tende a se estabilizar. A visualização da Figura 2 nos permite optar por um modelo de dois ou de três componentes, os quais explicam, respectivamente, 68.8% e 78.8% da variância total. Aqui optaremos pelo de três, uma vez que ele explica quase 80% da variância e reduz o número de variáveis em dois terços. Na tabela 3, ao final do artigo, vemos que o componente 1 (PC1) tem como variáveis de maior peso justamente as leis da pauta econômica (terceirização, PEC do teto de gastos, flexibilização das regras do pré-sal, cursos pagos em universidades públicas e a reforma trabalhista). No componente 2 predominam quatro itens da pauta social (pacote anticorrupção desfigurado, vaquejada, redução de reservas ambientais e lei antiterrorismo), com a inclusão de um item da pauta econômica, a reforma trabalhista. No terceiro, predominada ainda a pauta social, mas a econômica se insere um pouco mais, com a terceirização e reforma trabalhista também com carga considerável.

Na Figura 3 encontra-se o dendograma de uma aglomeração hierárquica por ligação completa, usando como medida de distância entre as observações à distância euclidiana. O coeficiente de aglomeração é de 0.9, o que indica uma estrutura subjacente aos partidos altamente hierarquizada quanto aos três primeiros componentes principais. Se o cortarmos na altura de seis, obtemos três aglomerados. Neste caso, o resultado é ainda pior, pois o PSL, partido do presidente, cai no conglomerado 1, com uma bancada total de 403 deputados. Mas se olharmos o gráfico de cotovelo na Figura 4, podemos cortar a árvore também em seis, oito ou até mesmo 14 conglomerados - se deixarmos um pouco a parcimônia de lado. Com 6, o PSL ainda cai num conglomerado grande, com tamanho de 366 - mais que o suficiente para garantir maioria qualificada. Apenas quando passamos para oito ou 14 é que começa a haver um pouco mais de espaço para uma coalizão oposicionista. No corte oito o partido do presidente obtém uma bancada de 259 deputados. Não o suficiente para aprovar emendas à constituição, mas ainda o bastante para fazer passar projetos de lei ordinária e/ou complementar - metade dos deputados presentes na seção mais um no primeiro caso e 257 no segundo. Com 14 grupos, valor próximo ao Número Efetivo de Partidos da Câmara em 2019, que será de 16, o PSL acaba isolado num conglomerado próprio. Neste cenário, ganharia quem conseguisse açambarcar todo ou ao menos a maior parte do conglomerado dois. Com uma bancada de 207 deputados, ele é formado por PP, MDB, PSD, PR, PRB, DEM e PTB, partidos tradicionais do que veio a ser conhecido como “centrão”. As tabelas 4 a 7, no final do texto, mostram onde cada partido cai em cada um destes cortes e o total da bancada de cada conglomerado assim identificado.

Conclusão

Embora muitos dos cenários traçados não sejam tão alentadores, dado à elevada afinidade entre o PSL e a atual configuração da câmara, ainda não é motivo para temer. Grande parte desta proximidade não se deve necessariamente a uma afinidade ideológica ou programática, mas ao fato de que o MDB e o governo Temer exerceram uma gestão de coalizão que, apesar de cara, deu resultados. Por meio de indicações para ministérios, cargos de livre nomeação e liberação em massa de emendas parlamentares, sua frágil gestão - que foi abalada por sucessivos escândalos de corrupção e gozou do mais baixo índice de aprovação da história - conseguiu angariar os votos necessários para que o legislativo aprovasse pautas que o executivo considerava importante, tais como a Reforma Trabalhista e a PEC do teto de gastos. Os recentes anúncios de que o futuro governo irá reduzir a quantidade de pastas de 29 para 15 e extinguir cerca de 20.000 cargos comissionados, como promete o futuro chefe da casa civil, Onix Lorenzoni, diminuirá em muito os recursos que o futuro governo poderá dispor para angariar apoio no congresso - e olha que aqui estamos falando apenas da Câmara, excluindo o Senado. Somados ao apertado espaço de manobra fiscal que a PEC do teto e os futuros déficits orçamentários imporão à Bolsonaro, a negociação no varejo via liberação de emendas parlamentares também não se mostrará um grande trunfo. A aventada negociação direta com as frentes parlamentares tampouco, porque apenas elevaria os custos da barganha ainda mais. Afinal, é improvável que deputados e partidos ligados ao fisiologismo abandonem a tradição patrimonialista e clientelista da política brasileira apenas porque acreditam no projeto do presidente. Dado este prognóstico, o cenário mais provável é que o atual alinhamento verificado na Figura 1 se desfaça em parte e predomine, num primeiro momento, a repartição em torno de 14 conglomerados, muito próxima ao número de partidos efetivos. Neste cenário, ganhará quem levar a maior parte do “centrão”. O protagonista da futura oposição, ao contrário do esperado, encontrará uma situação favorável logo no começo do governo Bolsonaro, no aludido período de “lua de mel”. Caberá a este ou estes empreendedores políticos construir a ampla coalizão divergente que se fará necessária para resistir ao retrocesso democrático que a agenda bolsonarista buscará implementar no país. Somente assim é que a democracia no Brasil poderá atravessar incólume os próximos quatro anos.

Epílogo

Este breve ensaio traçou um diagnóstico do autoritarismo bolsonarista e usou eminentemente de dados secundários e agregados para traçar um cenário zero da Câmara em 2019. O plano é, daqui para frente, continuar o monitoramento legislativo, expandi-lo e refiná-lo: incluir o senado, acompanhar as votações importantes no legislativo, desagregar os partidos ao nível dos deputados e refinar a classificação dos projetos e PECs em pauta econômica ou social. Colaborações na empreitada são sempre bem-vindas, assim como críticas construtivas. Qualquer interessado pode usar livremente este trabalho, desde que seja fiel ao seu conteúdo. Não é necessário atribuir autoria.

Tabelas

Tabela 1: Votação da pauta econômica

Tabela 2: Votação da pauta social

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRANCHES, Sérgio. (2018). Presidencialismo de Coalizão: Raízes e Evolução do Modelo Político Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras.

BERTHOLINI, Frederico. PEREIRA, Carlos. (2017). “Pagando O Preço de Governar: Custos de Gerência de Coalizão No Presidencialismo Brasileiro.” Revista de Administração Pública, n.51, v,4, p. 528–50. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/71171.

CHAISTY, Paul. CHEESEMAN, Nic. POWER, Timothy. (2014). “Rethinking the ‘Presidentialism Debate’: Conceptualizing Coalitional Politics in Cross-Regional Perspective.” Democratization, n.21, v.1, p. 72–94. Doi:10.1080/13510347.2012.710604.

LAAKSO, Markku. TAAGEPERA, Rein. (1979). “‘Effective’ Number of Parties: A Measure with Application to West Europe.” Comparative Political Studies n.12, v.1, p. 3–27. Doi:10.1177/001041407901200101.

LEVITSKY, Steven. ZIBLATT, Daniel. (2018). Como as Democracias Morrem. Rio de Janeiro: Zahar.

LINS, Juan. (1996). The Breakdown of Democratic Regimes: Crisis, Breakdown, & Reequilibration. Baltimore, Md: Johns Hopkins Univ. Press.

NICOLAU, Jairo Marconi. (2017). Representantes de Quem?: Os (Des)caminhos Do Seu Voto Da Urna à Câmara Dos Deputados. Rio de Janeiro: Zahar.

David Maciel de Mello Neto é graduado em Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ), onde também realizou mestrado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) e finalizou sua tese de doutorado. É pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência (NECVU).

 

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