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DESAPROPRIAR A TERRA, NEGAR DIREITOS E MATAR MAPUCHES: OS CASOS SANTIAGO E NAHUEL NO ATUAL ESQUEMA G

Marcia Rangel Candido

Nas últimas décadas, a Patagônia argentina e chilena converteu-se em um lugar altamente cobiçado pelos grandes magnatas. O grupo Bennetton se apropriou de mais de 900 mil hectares do território original do povo Mapuche. Entre eles estão as terras de Pu Lof Cushamen, na província de Chubut.

Há apenas um ano, em 1º de setembro de 2017, a Guarda Nacional[1] adentrou ao território dessa comunidade Mapuche. Nenhum mandado judicial autorizava isso. O que existia, indicava apenas a remoção da interdição da Rota Nacional Nº 40. Cerca de cem guardas faziam parte da operação. Número um pouco desproporcional se levarmos em conta que havia apenas sete ativistas que ocupavam a estrada. Logo seriam conhecidos os vídeos nos quais os oficiais da polícia que, caminhando à repressão, gritaram que tinham que "fazer merda" com aqueles "filhos da puta mapuches". Como resultado, a Guarda Nacional não só causou o despejo da rota, mas também o desaparecimento de Santiago Maldonado; um jovem, artesão, natural da província de Buenos Aires e solidário às lutas do povo mapuche.

O governo nacional se esforçou para negar toda a responsabilidade da Guarda Nacional no caso; ele tentou evitar - por todos os meios - que o caso judicial fosse rotulado como era; isto é, "desaparecimento forçado"; e - inclusive - implantou pistas falsas e procurou semear dúvidas sobre o verdadeiro destino de Santiago Maldonado. Os meios de comunicação hegemônicos também contribuíram para isso; sem mostrar qualquer respeito pela veracidade jornalística. Muito menos por Santiago e sua família. A Justiça. Desculpe, corrijo-me: o Poder Judiciário, que de justo frequentemente tem pouco, não avançou quase nada para esclarecer o caso. Muito pelo contrário: ele concentrou suas energias em realizar "escutas ilegais" nos telefones dos parentes de Santiago e em abrir processos criminais acusando-os de "associação ilícita", denúncia falsa e fraude judicial.

Quase três meses depois, em 20 de outubro, o corpo de Santiago apareceu flutuando no rio Chubut; no mesmo lugar onde tinham sido feitos rastreamentos e buscas.

Em 23 de novembro do mesmo ano, o Lof Lafken Winkul Mapu, localizado a cerca de 35 quilômetros da cidade de Bariloche, província de Río Negro, foi despejado pela Prefeitura Naval. Na mesma área, dois dias depois (precisamente quando o corpo de Santiago estava sendo velado), o ativista mapuche Rafael Nahuel foi morto por membros do Grupo Albatros, uma divisão especial daquela força. Enquanto ele agonizava, seus amigos queriam tirá-lo da colina para que fosse atendido; mas as autoridades estavam encarregadas de prevenir o atendimento. Novamente o Governo Nacional ignorou a responsabilidade da Prefeitura na morte do jovem; e o juiz encarregado, Gustavo Villanueva, ordenou escutas telefônicas para esclarecer o caso; mas ele não queria ouvir as comunicações dos agressores; preferiu, ao contrário, ouvir as conversas dos mapuches.

O caso de Santiago Maldonado foi motivo de grande mobilização entre o povo argentino. Chocadas, as pessoas ocuparam as ruas e encheram a Plaza de Mayo.

A morte de Nahuel também teve grande impacto social. Mas, comparativamente, o impacto foi foi muito menor que o da morte de Maldonado. Por quê? Pelo racismo, questão estrutural que nos leva a ser mais tocado pela morte de um "branco" do que de um "índio". Em grande medida, sim. Isso existe. Mas também há mais. Provavelmente, antes de uma morte, as pessoas se mobilizaram para um (novo) desaparecimento. Talvez - gatillo fácil de por médio[2]- essa sociedade já esteja um pouco acostumada às mortes nas mãos das forças de "segurança". Adormecida pelos seus efeitos, mas muito menos adormecida frente à presença chata e angustiante (eterna) do desaparecimento. Um povo que diariamente vive na carne os efeitos do desaparecimento sistemático, sabe bem que não quer mais dele. Não mais.

De todo modo, estes são dois casos emblemáticos fazem parte de um processo alarmante. Durante anos, o número de indígenas mortos aumentou; tanto nas mãos de forças de segurança (por exemplo, Roberto López - qom, comunidade La Primavera, Formosa, 2010 -; Ariel Farfan, Felix Reyes, Victor Heredia e Juan Ledesma - guaraníes, Engenho Ledesma, Jujuy, 2011), como em nome de atores privados e sicários (por exemplo, Cristian Ferreyra, Santiago del Estero, 2012- e Javier Chocobar -diaguita, comunidade Chuschagasta, Tucuman, 2009). E de acordo com a referência mapuche Moira Millan, há - pelo menos - 145 casos de mapuches desaparecidos nos últimos tempos; e um número igual de mapuches processados ​​atualmente (a mesma Moira Millan está sendo acusada por uma ocupação pacífica, feita com outros irmãos, no escritório do juiz Guido Otranto, precisamente como uma reação às manipulações da "causa Maldonado"). É importante, portanto, observar as teias que estão sendo traçadas por trás disso tudo.

Há algo absolutamente novo nos casos recentes: a maneira pela qual o Governo Nacional apoiou e até promoveu esse tipo de violência contra os povos indígenas.

Em 10 de setembro de 2017, apenas dez dias depois que Santiago desapareceu, o encarregado de Violência Institucional do Ministério da Segurança Nacional se reuniu com os guardas: "estamos juntos nesse barco"[3], disse-lhes. E ele os instruiu sobre a necessidade de que, em quaisquer circunstâncias, negassem a responsabilidade da Guarda Nacional no ocorrido. Em seguida, o mesmo Ministério emitiu um (pseudo)informe que pretendia mostrar (através de artigos de jornal e processos judiciais sem julgamento) a natureza "terrorista" da Resistência Ancestral Mapuche. Mais recentemente, o cada-vez-mais-desprestigiado Presidente da Nação disse: "Estamos dispostos a dialogar todo o necessário, mas não estamos dispostos a aceitar que haja alguém na Argentina que possa apropriar-se de algo que não lhe pertence”[4]. Mas ele não estava se referindo às propriedades ilícitas de algum magnata patagonofílico, mas sim as vontades mapuche de recuperação dos territórios que lhes foram roubados ao longo da história (entre outros, pela mesma família Bullrich, a qual pertence a atual ministra de segurança).

É justamente essa ministra, aliás, que (novamente sem muita fundamentação) argumentou que entre o povo Mapuche há "grupos que não respeitam a lei, que não reconhecem a Argentina, que não aceitam o Estado, a Constituição"[5]. E se esforçou para enfatizar que isso obrigaria "a distinguir com clareza absoluta entre os Povos Originais que encontraram há muitos anos uma maneira de resolver os problemas que existem, das terras, das reivindicações; desses grupos que não têm reivindicações, nem são grupos de protesto, mas são grupos que tomaram a violência como forma de ação política "[6].

Assim, as palavras da Ministra podem nos dar pistas para entender o plano de fundo. Sem fazer muito esforço. A partir de suas imaginárias divisões do real, podemos lançar uma hipótese explicativa: diante do avanço que os povos nativos alcançaram durante as últimas décadas no reconhecimento (formal) de seus direitos; os setores de poder são instados a criar mecanismos que permitam a suspensão desses direitos. É por isso que a Ministra faz essa separação absurda entre "o bom índio" e "o mau índio". Distinção engraçada, se não fosse trágica. O primeiro, o "bom", merece ser reconhecido em suas terras e reivindicações. Ao segundo, o violento, não pode ser dado mais do que o que ele procura: violência.

O difícil (e ao mesmo tempo o útil, no sentido governamental) é que – tal como Bauman (2000) problematizou na maneira atual de governar o problema da pobreza - a classificação moral e a distinção é imaginária e, portanto, bastante manipulável. Faça o mundo acreditar que há maus índios (terroristas) e você pode marcar cada índio como um deles.

Por sorte, até agora, esse discurso absurdo do governo não se aprofundou muito na imaginação geral da sociedade argentina. No entanto, cada passo deixa sua marca. De modo que nada nos garante que esse esquema de governo não consiga deixar registros nas formas de (re)estigmatização do povo mapuche e dos povos indígenas em geral.

Em vista disso, é imperativo o compromisso dos não-indígenas com as lutas dos povos indígenas. Só assim surge a verdadeira possibilidade de impedir não só os desaparecimentos, mas também as mortes e os despojos que dia a dia mancham com sangue nossas áreas de sacrifício.

NOTAS

[1] No Brasil, o equivalente a Força Nacional.

[2] A expressão “gatillo facil” pode ser traduzida como “dedo nervoso” e se refere à crescente letalidade das ações policiais.

[3] https://www.pagina12.com.ar/64632-en-el-barco-estan-ustedes-y-nosotros

[4] https://www.pagina12.com.ar/129725-la-ley-del-mas-fuerte

[5] https://www.lanacion.com.ar/2086149-la-bala-que-mato-a-rafael-nahuel-es-una-9-mm-como-las-que-usa-el-grupo-albatros

[6] https://www.lanacion.com.ar/2086149-la-bala-que-mato-a-rafael-nahuel-es-una-9-mm-como-las-que-usa-el-grupo-albatros

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zigmunt (2000). Trabajo, consumismo y nuevos pobres. Madrid: editorial Gedisa.

Miguel Leone é Doutor em Ciencias Sociais pelo Instituto de Desarrollo Económico y Social da Universidad Nacional de General Sarmiento, Argentina. É Bolsista-Pesquisador do Instituto de Estudios de América Latina y el Caribe da Universidad de Buenos Aires. Membro do Grupo de Estudios en Sociología Histórica de América Latina (GESHAL).

 

 
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