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  • Marcia Rangel Candido

PIONEIROS: ANTONIO CANDIDO, CRÍTICO - DE LITERATURA/NA SOCIEDADE


São muitas as faces evocadas quando se relembra a figura de Antonio Candido (1918-2017), que há pouco mais de um ano nos deixou. A do jovem sociólogo e crítico literário que durante os anos de formação universitária conciliaria duas perspectivas distintas de interesse pelo social (Pontes, 1998; Jackson, 2002; Waizbort, 2007); a do professor de literatura, cujo método crítico se re-tecia como artesanato na sala de aula (D’Incao e Scarabôtolo, 1992); a do intelectual posicionado, para quem o direito à literatura era uma das prerrogativas da sociedade democrática e igualitária que defendia tanto nos textos como na vida (Aguiar, 1999); e do reconhecido crítico literário, que explorando com paixão e afinco a literatura foi inovador e preciso na sua área de atuação profissional. Se a pessoa do crítico literário se foi, o seu pensamento e as suas ideias seguem presentes nas várias frentes em que atuou. Viva, sim, a presença do intelectual e de um tipo de crítica que não cedia às modas de ocasião, mas que alinhava a força do pensamento em tramas refinadas. Relembrá-lo neste momento em que completa um ano da sua morte, é prestar uma homenagem ao grande crítico literário que foi.

Se é certo que na trajetória intelectual de Antonio Candido a figura do crítico literário foi a que prevaleceu, ao longo da vida firmou sua atuação para além da literatura, como no estudo sociológico do caipira e do mundo rural, ou no posicionamento político abertamente socialista e democrático (Candido, 2011). Parecendo algo polifônica, a pluralidade de faces expunha uma composição coerente, como revelam os seus inúmeros artigos, ensaios, livros, entrevistas, falas e depoimentos. Neste sentido, um dos traços de maior destaque na sua produção foi o entrelaçamento entre literatura e sociedade, as quais, postas em relação de modo diverso, combinaram-se sem prejuízo na construção de uma “crítica integrada”.

Na obra de Antonio Candido o interesse pelo social ganharia seu primeiro contorno decisivo na pesquisa de doutorado sobre o homem rural do interior paulista, o caipira, cuja tese Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida (Candido, 2010) seria defendida na USP em 1954. Com o propósito inicial de pesquisar um aspecto cultural da sociedade rural - a poesia e dança popular do cururu -, Antonio Candido enveredaria pelo estudo dos elementos da vida do caipira enquanto tema sociológico e problema social. Ou seja, a partir do recorte do universo caipira de Bofete, no interior paulista, a manifestação cultural passava a se enquadrar em uma tentativa de compreensão mais abrangente sobre a vida do homem do campo em seu contorno rural, e, por conseguinte, no entendimento dos problemas do mundo agrário (e dos seus atores) diante de um processo nacional de modernização e urbanização que não apenas contrapunha cidade e campo, como tensionava a diferença como oposição.

Dois conceitos chave no trabalho sociológico de Antonio Candido sobre o parceiro rural são as ideias de “mínimos vitais” e de “sociedade rústica”. Com o primeiro, o autor sintetizava a noção de uma vida baseada na sobrevivência em um contexto pobre, onde a falta dos recursos mais básicos como o próprio alimento condicionava o caipira a uma experiência limitada. Onde a dimensão da pobreza era de uma ordem tal que o mais elementar para a sobrevivência humana faltava, a vida se restringia ao que era suficiente para manter o indivíduo e o grupo. Daí a noção de “mínimos vitais” e “mínimos sociais” com as quais Antonio Candido evidenciará a condição miserável do parceiro rural. O segundo conceito é uma caracterização alargada do significado do primeiro, posto que onde a subsistência consiste na garantia dos “mínimos” (alimentos, saúde, higiene, desenvolvimento), a organização social assume um caráter rústico. Englobando as noções de tosco e de rural, mas não sendo equivalente, a ideia de “rústico” significava um equilíbrio algo precário entre as necessidades do homem e a disponibilidade de recursos do meio físico. O ajuste relativo entre as duas partes, resultando nesse tipo de sociedade que definiria a cultura tradicional do campo, teria sua origem no processo de adaptação do colonizador português ao novo meio, para o qual o contato com as culturas indígenas teria exercido papel crucial.

Revisto em seu contexto de escrita, Os parceiros do Rio Bonito operaria, junto a outros estudos de sociologia rural, um redirecionamento decisivo ao desviar o foco sobre as classes dominantes para as classes dominadas (Candido, 2002). A rotação implicaria uma revisão crítica sobre os aspectos até então priorizados acerca do rural na sociologia brasileira, uma vez que na redefinição dos “personagens principais” necessariamente se redesenhavam os tipos de articulação entre os personagens, o modo de narrar, bem como a composição da cena em questão, no que resultaria a radicalização das visões sobre o campo. Ao final da tese, Antonio Candido assinalava a importância da realização da reforma agrária como mecanismo de transformação social do caipira e do meio rural diante de uma modernização e um crescimento urbano cujo avanço para o interior não se fazia sem tensão. O argumento em favor da democratização da terra explicitava uma proposta política que Antonio Candido desdobraria também em sua atividade crítica e institucionalmente como professor de Literatura na USP: o acesso universal e igualitário a condições dignas, à educação, à cultura. Conforme aparecerá mais tarde condensado no texto “O direito à literatura” (Candido, 2004), junto aos meios mais essenciais, a literatura contribuía para a criação de mundos possíveis, de novos começos.

A escrita clara e acurada, na qual a organização das ideias ganha corpo em um texto limpo, foi outra forma através da qual Antonio Candido levou adiante a crença na democratização. Crítico literário na Folha da Manhã (1943-1945), no Diário de São Paulo (1945-1947) e na revista Clima (1941-1944), além de redator da Folha Socialista (1947-1952), publicou seus ensaios na imprensa cotidiana, em uma época em que a divulgação cultural e a atividade intelectual se faziam em grande parte nos jornais e semanários (cf. Candido, 2002a). A atividade crítica se realizaria ao mesmo tempo que a formação em Sociologia (1939-1954), e não é casual que junto à escrita de Os parceiros do Rio Bonito Antonio Candido tenha se dedicado à redação daquela que seria a sua principal obra no campo da literatura: Formação de literatura brasileira: momentos decisivos (1750-1880) (Candido, 2012).

Escrito entre 1945 e 1957, e finalmente publicado em 1959, o livro, encomendado como um compêndio didático da história literária brasileira, fugiria aos contornos convencionais imaginados pelo editor José de Barros Martins, da Livraria Martins Editora. Mas para além do transpasse editorial, a história da literatura de Antonio Candido melhor se definiria como a “história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura”. Ao repertório literário da tradição nacional se somava um componente sociológico na medida em que a análise crítica do cânone era submetida à historicização do processo formativo da nação - no que então se incorporava à tradição representada por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. (Arantes, 1997). No desejo de possuir uma literatura, Antonio Candido identificava a dialética de localismo e cosmopolitismo própria à constituição de uma nação que nascera como colônia europeia. Admiração e reprodução do modelo, ao mesmo tempo que diferenciação e construção de autonomia. Ao conferir ênfase a dois “momentos decisivos” do processo, Arcadismo e Romantismo, Antonio Candido esmiuçou na passagem entre os movimentos estéticos um projeto cultural e político. Como em Os parceiros, também na Formação da literatura brasileira sociologia e literatura permaneciam entrelaçadas.

Em que pesem tais anotações, é preciso não esquecer que Antonio Candido recusava a identificação como sociólogo, preferindo a de crítico literário. Com a aprovação no concurso de 1958 para o departamento de Literatura da recém criada Faculdade de Assis, vinculada à USP, Antonio Candido efetuaria institucionalmente a transição para a área de Letras. Até então, já reconhecido na cena crítica literária via imprensa, lecionava como professor assistente da cadeira de Sociologia II da USP, a cargo de Fernando de Azevedo. Com a consagração obtida pela aprovação no concurso e a quase simultânea publicação de Formação da Literatura brasileira, Antonio Candido se vincularia à área literária sagrando-se como renomado crítico literário.

Sempre atento ao presente e à contínua movimentação social e estética, escreveria as primeiras críticas literárias sobre escritores que então despontavam na literatura brasileira, como João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Em 1965, reuniria alguns de seus ensaios em um livro intitulado Literatura e sociedade, fazendo notar aos leitores no texto de abertura que as possibilidades de relacionar as duas áreas eram tão diversas quanto seriam os propósitos de pesquisa em questão (uma “crítica de vertentes”), mas fundamental era reconhecer a autonomia do literário para não se perder o significado da criação estética. Assim, assinalava que o elemento social na literatura podia servir para a reconstituição dos traços históricos de determinado período - servindo a propósitos historiográficos -, mas também podia ser percebido como parte constitutiva da obra, integrando a sua forma na conformação de um produto independente.

Conforme exemplificaria muitos anos mais tarde, nesse tipo de relação entre sociedade e literatura interessava como a sociedade era absorvida na obra literária, em um processo que nomearia de “redução estrutural”. Nas palavras claras e simples com que explicava sem reduzir o problema em questão, tratava-se do processo através do qual “o autor mói a realidade, que sai transformada, assim como a carne de boi é posta na máquina de moer e acaba croquete” (Candido, Op. cit.). Por entre tramas tão diversas, Antonio Candido ajudaria a consolidar a tarefa crítica com lucidez. Como quem compreendia que o que há de vivo e de válido deve ser propagado à luz do dia ou na escuridão da noite.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, Flávio. Antonio Candido: pensamento e militância. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo/FFLCH/USP, 1999.

ARANTES, Paulo. “Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo”. In. _______ & ARANTES, Otília B. F. Sentido da formação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

CANDIDO, Antonio. “Antonio Candido 6/6/1996”. In. JACKSON, Luiz Carlos. A tradição esquecida: Os parceiros do Rio Bonito e a sociologia de Antonio Candido. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002

_______. Textos de intervenção (Org. Vinicius Dantas). São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2002a.

_______. “O direito à literatura”. In. _______. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004.

_______. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.

_______. “O socialismo é uma doutrina triunfante” (entrevista). O Brasil de fato, 13 de julho de 2011.

_______. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1750-1880). Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012.

D’INCAO, Maria Ângela; SCARABÔTOLO, Eloísa Faria (Orgs.). Dentro do texto, dentro da vida: ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo: Cia das Letras, 1992.

JACKSON, Luiz Carlos. A tradição esquecida: Os parceiros do Rio Bonito e a sociologia de Antonio Candido. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002

PONTES, Heloísa. Destinos mistos: os críticos do grupo Clima em São Paulo (1940-68). São Paulo: Cia das Letras, 1998.

WAIZBORT, Leopoldo. A passagem do três ao um. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.

Alice de Oliveira Ewbank é doutoranda em Sociologia na UFRJ (PPGSA), onde desenvolve sua pesquisa de tese sobre crítica da cultura em âmbito latino-americano. Mestre em Sociologia pela mesma instituição, com a dissertação "No fio da comparação: estudo do movimento crítico de Antonio Candido", é formada em Ciências Sociais pela UFRJ e em História pela UNIRIO.

Contato: alice.ewbank@gmail.com

 

Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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