PIONEIRAS: MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ - OS SENTIDOS DA MUDANÇA
No dia 26 de Agosto de 2018, foi comemorado o centenário de uma das maiores referências das Ciências Sociais brasileiras, Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918). Cientes da importância de seu legado, esse texto é uma forma de homenagear a trajetória e a obra da escritora que marcou os estudos sobre as relações de poder na sociedade brasileira.
Pioneira entre as mulheres no ensino e pesquisa nas Ciências Sociais institucionalizadas no Brasil, Maria Isaura Pereira de Queiroz é autora de extensa produção sobre os mais diversos temas, tais como messianismo, mandonismo local, cangaço, cultura brasileira, entre outros. Filha de uma família tradicional, seus pais eram descendentes de fazendeiros de café (os Queiroz Telles e os Pereira de Queiroz) do Vale do Paraíba e do Oeste Paulista. Em 1946, ingressou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, formando-se em 1949.
Em 1951, tornou-se assistente da Cadeira de Sociologia I da FFCL da mesma universidade, mesmo ano em que ingressou na École Pratique de Hautes Études, onde obteve seu doutorado, em 1955, com a tese La ‘Guerre Sainte’ au Brésil: le mouvement messianique du ‘Contestado’, defendida perante um júri formado por Roger Bastide, que a dirigiu, Claude Lévi-Strauss e Gabriel Le Bras. Anos depois, em 1958, transferiu-se para a Cadeira de Sociologia II. Em 1963 tornou-se professora livre docente com a tese O Messianismo no Brasil e no Mundo. Somente em 1973 passou ao cargo de Professora Adjunta da FFCL da USP. Queiroz teve grande circulação internacional, lecionando em universidades da França, Canadá, Senegal, Suíça, Itália e Bélgica. Foi agraciada, entre outros, pelo Prêmio Jabuti em 1966, e desde 1990 é Professora Emérita da Universidade de São Paulo.
O interesse por temas variados pode sugerir ao leitor que a contribuição da obra de Queiroz se confinaria aos seus estudos monográficos e no rigor de especialista que os conduziu, como no caso dos movimentos messiânicos. Porém, uma visão mais integrada e ao mesmo tempo mais matizada da obra de Queiroz, nos permite ir além dessa primeira aparência e discutir como seus estudos empíricos são bases sólidas para uma compreensão das estruturas da sociedade brasileira (Carvalho, 2010; Lopes, 2012). Estruturas que, ao contrário do que se poderia supor, não limita a análise a destacar o imóvel da vida social, mas os constantes movimentos e choques de suas partes.
Isso nos leva a um segundo aspecto, igualmente relevante. Se o seu pressuposto ontológico de uma sociedade em perene movimento não se descuida das estruturas, isso se deve em grande medida porque toma a dominação como constitutiva e não como tangencial às relações entre grupos e indivíduos (Botelho, 2007; Carvalho, 2010). Diante da modernização avassaladora (1950-1970) que rapidamente realizou a transição do rural para o urbano na sociedade brasileira, o interesse de Queiroz – e ademais de toda a geração uspiana daquela época, guardadas as diferenças – foi o de compreender as persistentes formas de dominação pessoal e violenta que se mesclava a uma ordem de classe emergente. Impasses de uma modernização sem a democratização das relações sociais e políticas.
Não por acaso seu pioneirismo em lançar no I Congresso de Sociologia (1954) uma agenda para a área de sociologia política no Brasil, através da qual colocaria em perspectiva estudos empíricos do presente com uma visão histórica de nosso passado a partir do que julgava ser a base essencial da nossa vida política, o mandonismo local (Queiroz, 1976a).
Dissecar analiticamente as estruturas exige, por um lado, levar em conta o leque limitado de opções disponíveis para o exercício da ação num contexto social específico de dominação, e, por outro, tornar a relação entre determinismo e liberdade uma questão empírica, variável de caso a caso, cuja captação depende do treinamento do olhar sociológico.
Daí a exortação fundamental de Maria Isaura que serve até aos mais experientes dos pesquisadores: “observar antes de interpretar” (Queiroz, 1976a:18). Ao contrário do que pode parecer, essa frase não significa que a autora acredite ingenuamente na transparência dos dados, tampouco no fato de que eles possam falar por si. Se a frase afirma a precedência do “observar” sobre o “interpretar”, essa precedência é lógica e não pretende supor que as duas operações estejam dissociadas na prática. Isso porque a socióloga paulista quer advertir quanto ao risco da sobredeterminação dos fatos pelas teorias. “Observar” significa fundamentalmente estar atento ao movimento perene da vida social que poderá tornar o trabalho de “interpretação” por parte do pesquisador mais difícil, mas não menos necessário da própria elaboração teórica.
Maria Isaura não recai por isso num relativismo absoluto, mas reconhece que o nível da realidade social a partir do qual parte a análise conduz a caminhos próprios para a compreensão do movimento mais geral das estruturas da sociedade. O ensaio que melhor sintetiza a perspectiva aqui destacada é O Coronelismo numa Interpretação Sociológica (1975). Nele, Queiroz propõe uma visão renovada sobre o coronelismo, afirmando que não se poderia reduzir o fenômeno a sua dimensão institucional, como fizera Victor Nunes Leal. Ao contrário, o coronelismo seria a nova roupagem do mandonismo local centrado na figura do chefe local e cujas origens remontam à Colônia. A República viria a complexificar e dinamizar a forma pela qual o mando se realiza, já que entre o chefe local e os eleitores se colocariam os cabos eleitorais. Para os apaniguados e parentes que estão localizados sob a influência mais próxima do coronel, o mando é direto, por vezes violento. No entanto, quando a busca pelos votos envolve regiões de sitiantes – pequenos proprietários com relativa autonomia econômica – o poder do coronel não é mais direto e depende do recurso a intermediários, principalmente indivíduos que gozam de prestígio para iniciar a barganha – pequenos coronéis, comerciantes e líderes religiosos, por exemplo. Nesses casos, “o poder se torna flutuante” (Queiroz, 1976b: 166) e a margem de ação desses sitiantes existe e se afirma numa racionalidade política própria, na qual o voto entra como um bem de troca. Com isso, Maria Isaura se afasta da concepção de “voto de cabresto”, já que, neste contexto, “o voto não é inconsciente, muito pelo contrário resulta do raciocínio do eleitor, e de uma lógica inerente à sociedade à qual pertence” (Queiroz, 1976b: 168).
Racionalidade, ação, dominação direta e indireta. Componentes básicos de uma estrutura em movimento. Mas de que estrutura se trata? Segundo a autora, os laços de parentesco, espiritual (compadrio) e de aliança (uniões matrimoniais) entre indivíduos e grupos conformam um tipo social “sui generis” na sociedade brasileira por ela denominada de “parentela”. Sua complexa hierarquia interna, formada por vários níveis, incluindo uma configuração mais igualitária, seria responsável, contraditoriamente, pelas dinâmicas de fragmentação e de conservação. Disputas intra parentela eram frequentes, gerando cisões, assim como os conflitos entre parentelas, que exigiam o fortalecimento interno das facções opostas. É essa incrível capacidade de se adaptar, recriando-se em novas condições a partir daqueles diferentes tipos de laços, que torna a parentela núcleo central no processo de urbanização, intermediando através de uma espécie de “coronelismo urbano” as relações entre as classes nascentes.
A obra de Maria Isaura é marcada por esse constante "vaivém entre a unidade pesquisada e a sociedade global" (Queiroz, 1978: 52). As estruturas, segundo essa perspectiva, também devem ser vistas em sua transformação, já que a permanência de certos traços estruturais não independem da forma pela qual as relações sociais se modificam; afinal, as mudanças são também propriedades emergentes da ação dos indivíduos e dos movimentos das coletividades. A constatação de Maria Isaura sobre o aparecimento de um "coronelismo urbano" é bem a expressão disso. Nesse ponto em particular, a contribuição da socióloga é decisiva quando levamos em conta a dinâmica da sociedade brasileira: invertendo o raciocínio corrente nos estudos sobre mudança social, que muitas vezes se dedicam aos aspectos novos surgidos, Queiroz destaca que a questão igualmente relevante é explicar o porquê da manutenção de certas estruturas e o que se conservou mudando. Questão de suma importância para os dias de hoje.
REFERÊNCIAS
BOTELHO, André. “Sequências de uma sociologia política brasileira”. Dados, v. 50, n. 1, pp. 49-82, 2007.
CARVALHO, Lucas C. Tradição e transição: mundo rústico e mudança social na sociologia de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA/IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 2010.
LOPES, Aline M. Vida rural e mudança social no Brasil: tradição e modernidade na sociologia de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. “Contribuição para o estudo da sociologia política no Brasil”. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, 1976a.
_______________________. “O Coronelismo numa Interpretação Sociológica”. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, 1976b.
_______________________. Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1978.
Lucas Correia Carvalho é professor adjunto no Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde desenvolve pesquisas nas áreas de Pensamento Social no Brasil, Estudos Rurais, Sociologia Política e
Teoria Sociológica.
Contato: lucascorreiacarvalho@gmail.com
Editora responsável: Luna Ribeiro Campos