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  • Marcia Rangel Candido

PIONEIRAS: HELOÍSA ALBERTO TORRES - RETRATO DE UMA DIRETORA DO MUSEU NACIONAL


Quando no dia 2 de setembro me telefonaram para dizer que o Museu Nacional estava pegando fogo, liguei a televisão sem entender muito bem o que acabara de ouvir. Assisti, estática, o incêndio se alastrar pelo edifício do palácio sem encontrar qualquer resistência dos bombeiros, surpreendidos pela falta de água. Meus esforços naquele momento se resumiam em reconstituir mentalmente as imagens do acervo museológico e arquivístico, tão caros para a minha formação enquanto pesquisadora. Lembrava dos fósseis da preguiça gigante, dos artefatos Karajá coletados por William Lipkind, mas também da coleção esquimó trazida por um combatente russo em 1823 e identificada por Heloísa Alberto Torres como o primeiro material etnográfico recebido pelo Museu Nacional (MN). Este breve artigo é uma homenagem à memória dessa antropóloga e a de todos aqueles que contribuíram para fazer do MN uma instituição de excelência científica no Brasil. Afinal, lembrar é resistir, e o museu vive e resiste por meio das pessoas que passaram por ele.

Personagem ubíqua das ciências sociais cariocas, a trajetória profissional de Heloísa Alberto Torres (1895-1977) tem lugar central no Museu Nacional, instituição na qual iniciou sua formação profissional e à qual dedicou mais tempo e esforços. Seu ingresso ocorreu em 1919, primeiro ano do curso de ciências naturais ministrado pelo naturalista e antropólogo Edgar Roquette-Pinto, direcionando seus estudos para a Antropologia a partir de então. Aprovada no concurso para professor substituto da Seção de Antropologia e Etnografia em 1925, na década seguinte já era reconhecida pelos seus pares como uma das especialistas brasileiras em etnografia marajoara, sendo promovida ao cargo de professor chefe da referida seção e vice-diretora do MN em 1935[1]. Sua trajetória ascendente e profícua como representante e gestora do Museu Nacional culminaria na sua nomeação para a direção da instituição em 1938, cargo que ocuparia até 1955, consolidando a última gestão a ultrapassar o período de cinco anos.

Enquanto diretora do museu mais antigo do Brasil se dedicaria a fortalecer a Antropologia entre as demais Ciências Naturais e, sobretudo, a etnografia, reforçando a abordagem culturalista da antropologia boasiana na instituição a partir de então. Crucial para a eficácia desse direcionamento foi a sua atuação concomitante em órgãos e aparelhos do Estado vinculados ao plano indigenista, sobretudo o Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil[2] , o Serviço de Proteção ao Índio e o Conselho Nacional de Proteção ao Índio. Por meio deles logrou ampliar a ingerência científica propriamente acadêmica em questões relativas à temática indígena. Tendo sempre como ponto de convergência para as suas ações o MN, Heloísa A. T. garantiu a participação de agentes vinculados à instituição em expedições científicas pelo território nacional e a incorporação dos espécimes e artefatos coletados para a mesma. Tais ações contribuíram para promover a profissionalização da antropologia por meio da aplicação prática e para além do escopo acadêmico dos museus, viabilizando com isso seu reconhecimento enquanto ciência.

Desenrolada em um período de consolidação das primeiras universidades implementadas no Brasil, sua gestão se caracterizaria, ademais, pelo esforço em sintonizar as demandas de desenvolvimento científico dos funcionários do museu com a especialização educacional e museológica da instituição. Aproveitando o interesse de pesquisadores norte-americanos sobre o território nacional, impulsionados pela implantação da Política da Boa Vizinhança neste período, as atividades antropológicas e museológicas de intercâmbio científico vão convergir para os Estados Unidos em detrimento dos centros europeus.

Foto de 1939 - da esquerda para a direita: Édison Carneiro, Raimundo Lopes, Charles Wagley, Heloísa Alberto Torres, Claude Lévi-Strauss, Ruth Landes e Luis de Castro Faria.

Neste contexto, ganha destaque o convênio informal estabelecido entre o Museu Nacional e a Universidade de Columbia a partir de 1937, que propiciou a vinda de alunos dos antropólogos Franz Boas, Ruth Bennedict e Ralph Linton para realizar pesquisas de campo no Brasil. Como assinalou Mariza Corrêa, o lugar central então ocupado pela instituição como catalisador das atividades de campo antropológicas permitia à Heloísa A. T. contrapartidas mais amplas para a instituição[3]. Assim, se a facilitação das pesquisas de campo para estrangeiros mediante sua atuação nos órgãos indigenistas servia como uma forma mais direta de garantir o enriquecimento do acervo etnográfico e arqueológico do MN, principalmente após sua saída do conselho do CFE em 1939, ela também servia para providenciar a participação dos jovens cientistas do museu como fiscais das expedições e aprendizes do modo de fazer etnografia, contribuindo para a sua absorção em um período em que o campo científico todavia carecia de vagas, como observou Castro Faria[4].

No lapso entre a delimitação e a expansão das universidades, os museus ainda detinham um papel fundamental na atualização e consolidação das bases do conhecimento antropológico. Representativo deste lugar é o plano educacional traçado por Heloísa A. T. para a capacitação técnico-científica dos naturalistas do Museu Nacional. Impulsionado pelos cursos Antropologia Social e Práticas de campo entre populações, ministrados em 1941 pelo antropólogo norte-americano de Columbia, Charles Wagley, a proposta de uma formação voltada para a atuação do etnólogo em campo era um dos fatores que diferenciavam o Museu Nacional dos demais institutos científicos. Dão sequência a estes cursos os de Introdução geral e estudos de linguística, ministrado por Joaquim Mattoso Câmara (1942), Etnografia Indígena, por Curt Nimuendajú (1943) e Etnografia, por Herbert Baldus (1946). Desenvolvido de forma contínua a partir de 1942, a ampliação da oferta de cursos e estágios voltados para as ciências naturais e antropológicas compreendeu também a oferta regular de cursos de capacitação em arquivo, inglês e francês.

No escopo de aprimoramento da instituição, Heloísa A. T. também esteve atenta às necessidades de renovação das instalações museográficas do museu, fomentando a visita técnica de curadores e especialistas em coleções etnográficas e museografia. Neste contexto, a reformulação da Exposição de Antropologia e Arqueologia, inaugurada em abril de 1947, ficou marcada pela expansão das coleções de etnografia brasileira oriundas das diversas expedições realizadas em território nacional.

Por fim, o projeto de Heloísa A. T. para o desenvolvimento da Antropologia no Museu Nacional previa a realização de uma Reunião Brasileira de Antropologia. Planejada a partir de 1941 e apenas concretizada em 1953, no MN, a primeira RBA teria papel preponderante na tentativa de aferir uma identidade ao vasto campo da Antropologia enquanto campo científico dividido em subáreas cada vez mais especializadas, funcionando como motor em prol da regulamentação da profissão.

Antropóloga e intelectual brasileira, Heloísa Alberto Torres teve papel fundamental no desenvolvimento e na consolidação da Antropologia enquanto campo científico no Brasil. Este breve retrato da sua atuação como diretora do MN compõe um fragmento dos 200 anos de história de uma instituição científica cuja importância nacional e internacional extrapolam seus limites materiais. O Museu Nacional vive!

NOTAS

[1] MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia. (2015). Heloísa Alberto Torres e Marina de Vasconcellos: pioneiras na formação das ciências sociais no RJ. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.

[2] GROUPIONI, Luís Donizete Benzi. (1998). Coleções e expedições vigiadas: os etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e científicas no Brasil. São Paulo: Editora Hucitec.

[3] CORRÊA, Mariza. (1998). "Traficantes do excêntrico. Os antropólogos no Brasil dos anos 30 aos 60". Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 6, v. 3, p. 79-98.

[4] FARIA, Luiz de Castro. (1993). Antropologia: espetáculo e excelência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / Editora Tempo Brasileiro, p. 20.

Cecilia de Oliveira Ewbank é museóloga e doutoranda em Artes Visuais pela UFRJ. Seu mestrado em História Cultural, na Universidade Federal de Santa Catarina, resultou na dissertação "A parte que lhe cabe deste patrimônio: o projeto indigenista de Heloísa Alberto Torres para o Museu Nacional (1938-1955)".

Contato: oe.cecilia@gmail.com

 

Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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