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Marcia Rangel Candido

CALIBÃ E A BRUXA - INTRODUÇÃO


Imagem da capa do livro - Editora Elefante

Publicado em 2004 e traduzido para o português apenas em 2016, fruto do primoroso trabalho de tradução do Coletivo Sycorax e de publicação da Editora Elefante, Calibã e a bruxa é um livro fundamental para compreender a formação histórica do capitalismo a partir de uma perspectiva feminista.

Ao relacionar as origens do capitalismo à caça às bruxas, a historiadora feminista Silvia Federici desloca as narrativas históricas tradicionais, centradas em um sujeito universal masculino, e reconta os processos de desenvolvimento do capitalismo não apenas inserindo as mulheres na história, mas refazendo-a a partir de uma perspectiva que articula mulheres, corpo e acumulação primitiva.

Sua proposta, ao olhar para a história do ponto de vista das mulheres, é compreender como as fronteiras do capitalismo se expandiram aliadas à intensificação da exploração das mulheres, ressaltando, desta forma, a centralidade do controle dos corpos femininos para a acumulação capitalista.

A tradução, circulação e difusão de conhecimento são práticas essenciais para a luta feminista. Para iniciar o contato com a obra de Federici, nada melhor que começar pela introdução de Calibã e a bruxa, onde a autora apresenta as ideias que nortearam a realização do livro e sua produção intelectual.

Esperamos que gostem!

INTRODUÇÃO

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Desde Marx, estudar a gênese do capitalismo é um passo obrigatório para ativistas e acadêmicos convencidos de que a primeira tarefa da agenda da humanidade é a construção de uma alternativa à sociedade capitalista. Não surpreende que cada novo movimento revolucionário tenha retornado à “transição para o capitalismo”, trazendo ao tema as perspectivas de novos sujeitos sociais e descobrindo novos terrenos de exploração e resistência. [1] Embora este livro tenha sido concebido dentro dessa tradição, há duas considerações em particular que também o motivaram.

Em primeiro lugar, havia um desejo de repensar o desenvolvimento do capitalismo a partir de um ponto de vista feminista, ao mesmo tempo evitando as limitações de uma “história das mulheres” separada do setor masculino da classe trabalhadora. O título, Calibã e a bruxa, inspirado na peça A tempestade, de Shakespeare, reflete esse esforço. Na minha interpretação, no entanto, Calibã não apenas representa o rebelde anticolonial cuja luta ressoa na literatura caribenha contemporânea, mas também é um símbolo para o proletariado mundial e, mais especificamente, para o corpo proletário como terreno e instrumento de resistência à lógica do capitalismo. Mais importante ainda, a figura da bruxa, que em A tempestade fica relegada a segundo plano, neste livro situa-se no centro da cena, enquanto encarnação de um mundo de sujeitos femininos que o capitalismo precisou destruir: a herege, a curandeira, a esposa desobediente, a mulher que ousa viver só, a mulher obeah que envenenava a comida do senhor e incitava os escravos à rebelião.

A segunda motivação deste livro foi, com a nova expansão das relações capitalistas, o retorno em escala mundial de um conjunto de fenômenos que normalmente vinham associados à gênese do capitalismo. Entre eles se encontra uma nova série de cercamentos que expropriou milhões de produtores agrários de suas terras, além da pauperização massiva e da criminalização dos trabalhadores por meio de políticas de encarceramento que nos remetem ao “Grande Confinamento” descrito por Michel Foucault em seu estudo sobre a história da loucura. Também fomos testemunhas do desenvolvimento mundial de novos movimentos de diáspora acompanhados pela perseguição dos trabalhadores migrantes. Algo que nos remete, uma vez mais, às Leis Sangrentas introduzidas na Europa dos séculos xvi e xvii com o objetivo de colocar os “vagabundos” à disposição da exploração local. Ainda mais importante para este livro foi a intensificação da violência contra as mulheres, inclusive o retorno da caça às bruxas em alguns países (como, por exemplo, África do Sul e Brasil).

Bruxas conjurando um aguaceiro, xilogravura em Ulrich Molitor, De Lamiies et Pythonicis Mulieribus (1489)

[Sobre mulheres feiticeiras e adivinhas]

Por que depois de quinhentos anos de domínio do capital, no início do terceiro milênio, os trabalhadores ainda são massivamente definidos como pobres, bruxas e bandoleiros? De que maneira se relacionam a expropriação e a pauperização com o permanente ataque contra as mulheres? O que podemos aprender sobre o desdobramento capitalista, passado e presente, quando examinado em perspectiva feminista?

Com essas perguntas em mente, volto a analisar a “transição” do feudalismo para o capitalismo a partir do ponto de vista das mulheres, do corpo e da acumulação primitiva. Cada um desses conceitos se conecta a um marco conceitual que serve como ponto de referência para este trabalho: o feminista, o foucaultiano e o marxista. Por isso, vou começar esta introdução com algumas observações sobre a relação entre minha própria perspectiva de análise e cada um desses marcos de referência. A acumulação primitiva é o termo usado por Marx no tomo I de O capital com a finalidade de caracterizar o processo político no qual se sustenta o desenvolvimento das relações capitalistas. Trata-se de um termo útil na medida em que proporciona um denominador comum que permite conceituar as mudanças produzidas pelo advento do capitalismo nas relações econômicas e sociais. Sua importância está, especialmente, no fato de Marx tratar a acumulação primitiva como um processo fundacional, o que revela as condições estruturais que tornaram possível a sociedade capitalista. Isso nos permite ler o passado como algo que sobrevive no presente, uma consideração essencial para o uso do termo neste trabalho.

Porém, minha análise se afasta da de Marx por duas vias distintas. Enquanto Marx examina a acumulação primitiva do ponto de vista do proletariado assalariado de sexo masculino e do desenvolvimento da produção de mercadorias, eu a examino do ponto de vista das mudanças que introduziu na posição social das mulheres e na produção da força de trabalho.[2] Daí que a minha descrição da acumulação primitiva inclui uma série de fenômenos que estão ausentes em Marx e que, no entanto, são extremamente importantes para a acumulação capitalista. Entre esses fenômenos estão: i) o desenvolvimento de uma nova divisão sexual do trabalho; ii) a construção de uma nova ordem patriarcal, baseada na exclusão das mulheres do trabalho assalariado e em sua subordinação aos homens; iii) a mecanização do corpo proletário e sua transformação, no caso das mulheres, em uma máquina de produção de novos trabalhadores. E, o que é mais importante, coloquei no centro da análise da acumulação primitiva a caça às bruxas dos séculos xvi e xvii: sustento aqui que a perseguição às bruxas, tanto na Europa quanto no Novo Mundo, foi tão importante para o desenvolvimento do capitalismo quanto a colonização e a expropriação do campesinato europeu de suas terras.

Essa análise se diferencia também da marxiana em sua avaliação do legado e da função da acumulação primitiva. Embora Marx fosse profundamente consciente do caráter criminoso do desenvolvimento capitalista — sua história, declarou, “está escrita nos anais da humanidade com letras de sangue e fogo” —, não cabe dúvida de que considerava isso como um passo necessário no processo de libertação humana. Marx acreditava que o desenvolvimento capitalista acabava com a propriedade em pequena escala e incrementava (até um grau não alcançado por nenhum outro sistema econômico) a capacidade produtiva do trabalho, criando as condições materiais para liberar a humanidade da escassez e da necessidade. Também supunha que a violência que havia dominado as primeiras fases da expansão capitalista retrocederia com a maturação das relações capitalistas; a partir desse momento, a exploração e o disciplinamento do trabalho seriam alcançados fundamentalmente por meio do funcionamento das leis econômicas (Marx, [1867] 1909, t. i). Nisso, estava profundamente equivocado. Cada fase da globalização capitalista, incluindo a atual, vem acompanhada de um retorno aos aspectos mais violentos da acumulação primitiva, o que mostra que a contínua expulsão dos camponeses da terra, a guerra e o saque em escala global e a degradação das mulheres são condições necessárias para a existência do capitalismo em qualquer época.

Devo acrescentar que Marx nunca poderia ter suposto que o capitalismo preparava o caminho para a libertação humana se tivesse olhado sua história do ponto de vista das mulheres. Essa história ensina que, mesmo quando os homens alcançaram certo grau de liberdade formal, as mulheres sempre foram tratadas como seres socialmente inferiores, exploradas de modo similar às formas de escravidão. “Mulheres”, então, no contexto deste livro, significa não somente uma história oculta que necessita se fazer visível, mas também uma forma particular de exploração e, portanto, uma perspectiva especial a partir da qual se deve reconsiderar a história das relações capitalistas.

Esse projeto não é novo. Desde o começo do movimento feminista as mulheres se voltaram vez ou outra para a transição ao capitalismo, ainda que nem sempre o tenham reconhecido. Durante certo tempo, o marco principal que configurava a história das mulheres foi de caráter cronológico. A designação mais comum que as historiadoras feministas utilizaram para descrever o período de transição foi Early Modern Times [princípio da Idade Moderna] — que, dependendo da autora, podia designar o século xiii ou xvii.

Nos anos 1980, no entanto, apareceu uma série de trabalhos que assumiram uma perspectiva mais crítica. Entre eles, estavam os ensaios de Joan Kelly sobre o Renascimento e as querelles des femmes; The Death of Nature (1981) [A morte da natureza], de Carolyn Merchant; L’Arcano della Riproduzione (1981) [O arcano da reprodução], de Leopoldina Fortunati; Working Women in Renaissance Germany (1986) [Mulheres trabalhadoras no Renascimento alemão] e Patriarchy and Accumulation on a World Scale (1986) [Patriarcado e acumulação em escala global], de Maria Mies. A esses trabalhos, devemos acrescentar uma grande quantidade de monografias que, ao longo das últimas duas décadas, reconstruíram a presença das mulheres nas economias rural e urbana da Europa medieval, assim como a vasta literatura e o trabalho de documentação que se realizou sobre a caça às bruxas e as vidas das mulheres na América pré-colonial e nas ilhas do Caribe. Entre estas últimas, quero recordar especialmente The Moon, the Sun and the Witches (1987) [A lua, o sol e as bruxas], de Irene Silverblatt, o primeiro relato sobre a caça às bruxas no Peru colonial, e Natural Rebels: A Social History of Barbados (1995) [Rebeldes naturais: uma história social de Barbados], de Hilary Beckles, que, junto com Slave Women in Caribbean Society: 1650–1838 (1990) [Mulheres escravas na sociedade caribenha: 1650–1838], de Barbara Bush, se encontra entre os textos mais importantes sobre a história das mulheres escravizadas nas plantações do Caribe.

Essa produção acadêmica confirmou que a reconstrução da história das mulheres, ou o olhar sobre a história por um ponto de vista feminino, implica uma redefinição fundamental das categorias históricas aceitas e uma visibilização das estruturas ocultas de dominação e exploração. Desse modo, o ensaio de Joan Kelly, Did Women Have a Renaissance? (1984) [As mulheres tiveram um Renascimento?], solapou a periodização histórica clássica que celebra o Renascimento como um exemplo excepcional de façanha cultural. The Death of Nature, de Carolyn Merchant, questionou a crença no caráter socialmente progressista da revolução científica, ao defender que o advento do racionalismo científico produziu um deslocamento cultural de um paradigma orgânico para um mecânico que legitimou a exploração das mulheres e da natureza.

De especial importância foi Patriarchy and Accumulation on a World Scale (1986), de Maria Mies, um trabalho já clássico que reexamina a acumulação capitalista de um ponto de vista não eurocêntrico, conectando o destino das mulheres na Europa ao dos sujeitos coloniais europeus, e proporcionando uma nova compreensão do lugar das mulheres no capitalismo e no processo de globalização.

Calibã e a bruxa se baseia nesses trabalhos e nos estudos contemporâneos contidos em Il Grande Calibano (analisado no Prefácio). Porém, seu alcance histórico é mais amplo, tendo em vista que o livro conecta o desenvolvimento do capitalismo com a crise de reprodução e as lutas sociais do período feudal tardio, por um lado, e com o que Marx define como a “formação do proletariado”, por outro. Nesse processo, o livro aborda uma série de questões históricas e metodológicas que estiveram no centro do debate sobre a história das mulheres e da teoria feminista.

A questão histórica mais importante que este livro aborda é como explicar a execução de centenas de milhares de “bruxas” no começo da Era Moderna e por que o surgimento do capitalismo coincide com essa guerra contra as mulheres. As acadêmicas feministas desenvolveram um esquema que lança bastante luz sobre a questão. Existe um acordo generalizado sobre o fato de que a caça às bruxas buscou destruir o controle que as mulheres haviam exercido sobre sua função reprodutiva e serviu para preparar o terreno para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor. Defende-se também que a caça às bruxas tinha raízes nas transformações sociais que acompanharam o surgimento do capitalismo. No entanto, as circunstâncias históricas específicas em que a perseguição de bruxas se desenvolveu e as razões pelas quais o surgimento do capitalismo exigiu um ataque genocida contra as mulheres ainda não foram investigadas. Essa é a tarefa que empreendo em Calibã e a bruxa, começando pela análise da caça às bruxas no contexto da crise demográfica e econômica dos séculos xvi e xvii e das políticas de terra e trabalho da era mercantilista. Meu trabalho aqui é apenas um esboço da pesquisa que seria necessária para esclarecer as conexões mencionadas e, especialmente, a relação entre a caça às bruxas e o desenvolvimento contemporâneo de uma nova divisão sexual do trabalho que confina as mulheres ao trabalho reprodutivo. No entanto, convém demonstrar que a perseguição às bruxas (assim como o tráfico de escravos e os cercamentos) constituiu um aspecto central da acumulação e da formação do proletariado moderno, tanto na Europa como no Novo Mundo.

Há outros caminhos através dos quais Calibã e a bruxa dialoga com a história das mulheres e a teoria feminista. Em primeiro lugar, confirma que a transição para o capitalismo é uma questão primordial para a teoria feminista, já que a redefinição das tarefas produtivas e reprodutivas e as relações homem-mulher nesse período, ambas realizadas com máxima violência e intervenção estatal, não deixam dúvidas quanto ao caráter construído dos papéis sexuais na sociedade capitalista. A análise que aqui se propõe também nos permite transcender a dicotomia entre gênero e classe. Se é verdade que na sociedade capitalista a identidade sexual se transformou no suporte específico das funções do trabalho, o gênero não deveria ser tratado como uma realidade puramente cultural, mas como uma especificação das relações de classe. Desse ponto de vista, os debates que tiveram lugar entre as feministas pós-modernas acerca da necessidade de desfazer-se do termo “mulher” como categoria de análise e definir o feminismo em termos puramente oposicionais foram mal orientados. Para reformular o argumento que apresentei: se na sociedade capitalista a “feminilidade” foi construída como uma função-trabalho que oculta a produção da força de trabalho sob o disfarce de um destino biológico, a história das mulheres é a história das classes, e a pergunta que devemos nos fazer é se foi transcendida a divisão sexual do trabalho que produziu esse conceito em particular. Se a resposta for negativa (tal como ocorre quando consideramos a organização atual do trabalho reprodutivo), então “mulher” é uma categoria de análise legítima, e as atividades associadas à reprodução seguem sendo um terreno de luta fundamental para as mulheres — como eram para o movimento feminista dos anos 1970 — e um nexo de união com a história das bruxas.

Outra pergunta que Calibã e a bruxa analisa é aquela proposta pelas perspectivas opostas que oferecem as análises feministas e foucaultianas sobre o corpo, tal como são aplicadas na interpretação da história do desenvolvimento capitalista. Desde o início do movimento de mulheres, as ativistas e teóricas feministas viram o conceito de “corpo” como uma chave para compreender as raízes do domínio masculino e da construção da identidade social feminina. Para além das diferenças ideológicas, chegaram à conclusão de que a categorização hierárquica das faculdades humanas e a identificação das mulheres com uma concepção degradada da realidade corporal foi historicamente instrumental para a consolidação do poder patriarcal e para a exploração masculina do trabalho feminino. Desse modo, a análise da sexualidade, da procriação e da maternidade foi colocada no centro da teoria feminista e da história das mulheres. Em particular, as feministas colocaram em evidência e denunciaram as estratégias e a violência por meio das quais os sistemas de exploração, centrados nos homens, tentaram disciplinar e apropriar-se do corpo feminino, destacando que os corpos das mulheres constituíram os principais objetivos — lugares privilegiados — para a implementação das técnicas de poder e das relações de poder. De fato, a enorme quantidade de estudos feministas que foi produzida desde os princípios dos anos 1970 a respeito do controle exercido sobre a função reprodutiva das mulheres, dos efeitos dos estupros e dos maus-tratos e da imposição da beleza como uma condição de aceitação social constitui uma imensa contribuição ao discurso sobre o corpo em nossos tempos e assinala a errônea percepção, tão frequente entre os acadêmicos, que atribui seu descobrimento a Michel Foucault.

Partindo de uma análise da “política do corpo”, as feministas não somente revolucionaram o discurso filosófico e político, mas também passaram a revalorizar o corpo. Esse foi um passo necessário tanto para confrontar a negatividade que acarreta a identificação de feminilidade com corporalidade, como para criar uma visão mais holística do que significa ser um ser humano. [3] Essa valorização ganhou várias formas, desde a busca de saberes não dualistas até a tentativa (com feministas que veem a “diferença” sexual como um valor positivo) de desenvolver um novo tipo de linguagem e de “[repensar] as raízes corporais da inteligência humana”. [4] Tal como destacou Rosi Braidotti, o corpo retomado não há de entender-se nunca como algo biologicamente dado. No entanto, slogans como “recuperar a posse do corpo” ou “fazer o corpo falar” 5 foram criticados por teóricos pós-estruturalistas e foucaultianos que rejeitam como ilusório qualquer chamamento à liberação dos instintos. De sua parte, as feministas acusaram o discurso de Foucault sobre a sexualidade de omitir a diferenciação sexual, ao mesmo tempo que se apropriava de muitos saberes desenvolvidos pelo movimento feminista. Essa crítica é bastante acertada. Além disso, Foucault fica tão intrigado pelo caráter “produtivo” das técnicas de poder de que o corpo foi investido, que sua análise praticamente descarta qualquer crítica das relações de poder. O caráter quase defensivo da teoria de Foucault sobre o corpo se vê acentuado pelo fato de que considera o corpo como algo constituído puramente por práticas discursivas, e de que está mais interessado em descrever como se desdobra o poder do que em identificar sua fonte. Assim, o Poder que produz o corpo aparece como uma entidade autossuficiente, metafísica, ubíqua, desconectada das relações sociais e econômicas, e tão misteriosa em suas variações quanto uma força motriz divina.

Uma análise da acumulação primitiva e da transição para o capitalismo é capaz de nos ajudar a ir além dessas alternativas? Acredito que sim. No que diz respeito ao enfoque feminista, nosso primeiro passo deve ser documentar as condições sociais e históricas nas quais o corpo se tornou elemento central e esfera de atividade definitiva para a constituição da feminilidade. Nessa linha, Calibã e a bruxa mostra que, na sociedade capitalista, o corpo é para as mulheres o que a fábrica é para os homens trabalhadores assalariados: o principal terreno de sua exploração e resistência, na mesma medida em que o corpo feminino foi apropriado pelo Estado e pelos homens, forçado a funcionar como um meio para a reprodução e a acumulação de trabalho. Neste sentido, é bem merecida a importância que adquiriu o corpo, em todos os seus aspectos — maternidade, parto, sexualidade —, tanto dentro da teoria feminista quanto na história das mulheres. Calibã e a bruxa também corrobora o saber feminista que se nega a identificar o corpo com a esfera do privado e, nessa linha, fala de uma “política do corpo”. Além disso, explica como para as mulheres o corpo pode ser tanto uma fonte de identidade quanto uma prisão, e por que ele tem tanta importância para as feministas, ao mesmo tempo que é tão problemática a sua valoração.

Quanto à teoria de Foucault, a história da acumulação primitiva oferece muitos contraexemplos, demonstrando que a teoria foucaultiana só pode ser defendida à custa de omissões históricas extraordinárias. A mais óbvia é a omissão da caça às bruxas e do discurso sobre a demonologia na sua análise sobre o disciplinamento do corpo. Sem dúvida, se essas questões tivessem sido incluídas, teriam inspirado outras conclusões, já que ambas demonstram o caráter repressivo do poder aplicado contra as mulheres e o inverossímil da cumplicidade e da inversão de papéis que Foucault, em sua descrição da dinâmica dos micropoderes, imagina que existem entre as vítimas e seus perseguidores.

O estudo da caça às bruxas também desafia a teoria de Foucault relativa ao desenvolvimento do “biopoder”, despojando-a do mistério com que cobre a emergência desse regime. Foucault registra a virada — alegadamente na Europa do século xviii — de um tipo de poder constituído sobre o direito de matar para um poder diferente, que se exerce por meio da administração e da promoção das forças vitais, como o crescimento da população. Porém, ele não oferece pistas sobre suas motivações. No entanto, se situamos essa mutação no contexto do surgimento do capitalismo, o enigma desaparece: a promoção das forças da vida se revela como nada mais que o resultado de uma nova preocupação pela acumulação e pela reprodução da força de trabalho. Também podemos observar que a promoção do crescimento populacional por parte do Estado pode andar de mãos dadas com uma destruição massiva de vidas; pois em muitas circunstâncias históricas — como, por exemplo, a história do tráfico de escravos — uma é condição para a outra. Efetivamente, num sistema em que a vida está subordinada à produção de lucro, a acumulação de força de trabalho só pode ser alcançada com o máximo de violência para que, nas palavras de Maria Mies, a própria violência se transforme na força mais produtiva.

Para concluir, o que Foucault teria aprendido, caso tivesse estudado em sua História da sexualidade (1978) a caça às bruxas, em vez de ter se concentrado na confissão pastoral, é que essa história não pode ser escrita do ponto de vista de um sujeito universal, abstrato, assexuado. Além disso, teria reconhecido que a tortura e a morte podem se colocar a serviço da “vida”, ou melhor, a serviço da produção da força de trabalho, dado que o objetivo da sociedade capitalista é transformar a vida em capacidade para trabalhar e em “trabalho morto”.[6]

Desse ponto de vista, a acumulação primitiva foi um processo universal em cada fase do desenvolvimento capitalista. Não é por acaso que seu exemplo histórico originário tenha sedimentado estratégias que, diante de cada grande crise capitalista, foram relançadas, de diferentes maneiras, com a finalidade de baratear o custo do trabalho e esconder a exploração das mulheres e dos sujeitos coloniais.

Isso é o que ocorreu no século XIX, quando as respostas ao surgimento do socialismo, à Comuna de Paris e à crise de acumulação de 1873 foram a “Partilha da África” e a invenção da família nuclear na Europa, centrada na dependência econômica das mulheres aos homens — seguida da expulsão das mulheres dos postos de trabalho remunerados. Isso é também o que ocorre na atualidade, quando uma nova expansão do mercado de trabalho busca colocar-nos em retrocesso no que tange à luta anticolonial e às lutas de outros sujeitos rebeldes — estudantes, feministas, trabalhadores industriais — que nos anos 1960 e 1970 debilitaram a divisão sexual e internacional do trabalho.

Não é de surpreender, portanto, que a violência em grande escala e a escravidão tenham estado na ordem do dia, do mesmo modo que estavam no período de “transição”, com a diferença de que hoje os conquistadores são os oficiais do Banco Mundial e do fmi, que ainda pregam o valor de um centavo às mesmas populações que as potências mundiais dominantes têm roubado e pauperizado durante séculos. Uma vez mais, muito da violência empregada é dirigida contra as mulheres, porque, na era do computador, a conquista do corpo feminino continua sendo uma precondição para a acumulação de trabalho e riqueza, tal como demonstra o investimento institucional no desenvolvimento de novas tecnologias reprodutivas que, mais do que nunca, reduzem as mulheres a meros ventres.

Ademais, a “feminização da pobreza” que acompanhou a difusão da globalização adquire um novo significado quando recordamos que foi o primeiro efeito do desenvolvimento do capitalismo sobre as vidas das mulheres.

Com efeito, a lição política que podemos extrair de Calibã e a bruxa é que o capitalismo, enquanto sistema econômico- -social, está necessariamente ligado ao racismo e ao sexismo. O capitalismo precisa justificar e mistificar as contradições incrustadas em suas relações sociais — a promessa de liberdade frente à realidade da coação generalizada, e a promessa de prosperidade frente à realidade de penúria generalizada — difamando a “natureza” daqueles a quem explora: mulheres, sujeitos coloniais, descendentes de escravos africanos, imigrantes deslocados pela globalização.

No cerne do capitalismo, encontramos não apenas uma relação simbiótica entre o trabalho assalariado contratual e a escravidão, mas também, e junto com ela, a dialética que existe entre acumulação e destruição da força de trabalho, tensão pelas quais as mulheres pagaram o preço mais alto, com seus corpos, seu trabalho e suas vidas.

É, portanto, impossível associar o capitalismo com qualquer forma de libertação ou atribuir a longevidade do sistema à sua capacidade de satisfazer necessidades humanas. Se o capitalismo foi capaz de reproduzir-se, isso se deve somente à rede de desigualdades que foi construída no corpo do proletariado mundial e à sua capacidade de globalizar a exploração. Esse processo segue desenvolvendo-se diante de nossos olhos, tal como se deu ao longo dos últimos quinhentos anos.

A diferença é que, hoje, a resistência ao capitalismo também atingiu uma dimensão global.

NOTAS

[1] O estudo da transição para o capitalismo tem uma longa história que, não por acaso, coincide com a dos principais movimentos políticos do século xx. Historiadores marxistas como Maurice Dobb, Rodney Hilton e Christopher Hill (1953) revisitaram a “transição” nos anos 1940 e 1950, depois dos debates gerados pela consolidação da União Soviética, pela emergência dos Estados socialistas na Europa e na Ásia e pelo que nesse momento aparecia como uma iminente crise capitalista. A “transição” foi, mais uma vez, revisitada em 1960 pelos teóricos terceiro-mundistas, como Samir Amin e André Gunder Frank, no contexto dos debates do momento sobre neocolonialismo, “subdesenvolvimento” e “intercâmbio desigual” entre o “primeiro” e o “terceiro” mundo.

[2] Essas duas realidades estão estreitamente conectadas nesta análise, pois no capitalismo a reprodução geracional dos trabalhadores e a regeneração cotidiana de sua capacidade de trabalho se converteram em um “trabalho de mulheres”, embora mistificado, pela sua condição de não assalariado, como serviço pessoal e até mesmo como recurso natural.

[3] Não surpreende que a valorização do corpo tenha estado presente em quase toda a literatura da “segunda onda” do feminismo do século xx, tal como foi caracterizada a literatura produzida pela revolta anticolonial e pelos descendentes de escravos africa - nos. Nesse terreno, cruzando grandes fronteiras geográficas e culturais, A Room of One’s Own (1929) [Um teto todo seu], de Virgina Woolf, antecipou Cahier d’un retour au pays natal (1938) [Diário de um retorno ao país natal], de Aimé Césaire, quando repreende seu público feminino e, por detrás disso, o mundo feminino, por não ter conseguido produzir outra coisa além de filhos:

“Jovens, diria que […] vocês nunca realizaram um descobrimento de certa importância. Nunca fizeram tremer um império ou conduziram um exército à batalha. As obras de Shakespeare não são suas […] Que desculpa vocês têm? Vocês podem muito bem dizer, apontando para as ruas e praças e para as selvas do mundo infestadas de habitantes negros e brancos e de cor de café […] que estivemos fazendo outro trabalho. Sem ele, esses mares não seriam navegados e essas terras férteis seriam um deserto. Temos erguido e criado e ensinado, talvez até a idade de seis ou sete, aos mil seiscentos e vinte e três milhões de seres humanos que, de acordo com as estatísticas, existem, algo que, mesmo quando algumas tenham tido ajuda, requer tempo.” (Woolf, 1929, p. 112)

Essa capacidade de subverter a imagem degradada da feminilidade, que foi cons - truída por meio da identificação das mulheres com a natureza, a matéria, o corporal, é a potência do “discurso feminista sobre o corpo” que trata de desenterrar o que o controle masculino de nossa realidade corporal sufocou. No entanto, é uma ilusão conceber a libertação feminina como um “retorno ao corpo”. Se o corpo feminino — como discuto neste trabalho — é um significante para o campo de atividades reprodutivas que foi apropriado pelos homens e pelo Estado e convertido em um instrumento de produção de força de trabalho (com tudo aquilo que isso pressupõe em termos de regras e regulações sexuais, cânones estéticos e castigos), então o corpo é o lugar de uma alienação fundamental que só pode ser superada com o fim da disciplina-trabalho que o define.

Essa tese se verifica também para os homens. A descrição de um trabalhador que se sente à vontade apenas em suas funções corporais, feita por Marx, já intuía tal fato. Marx, porém, nunca expôs a magnitude do ataque a que o corpo masculino estava submetido com o advento do capitalismo. Ironicamente, assim como Foucault, Marx enfatizou também a produtividade do trabalho a que os trabalhadores estão subordinados — uma produtividade que, para ele, é a condição para o futuro domínio da sociedade pelos trabalhadores. Marx não observou que o desenvolvimento das potências industriais dos trabalhadores se deu à custa do subdesenvolvimento de seus poderes enquanto indivíduos sociais, ainda que reconhecesse que os trabalhadores na sociedade capitalista estão tão alienados de seu trabalho, de suas relações com os outros e dos produtos de seu trabalho como se estivessem dominados por estes, parecendo tratar-se de uma força alheia.

[4] Para uma discussão do pensamento feminista sobre o corpo, ver EcoFeminism as Politics (1997) [O ecofeminismo como política], de Ariel Salleh, especialmente os capítulos 3, 4 e 5; e Patterns of Dissonance (1991) [Padrões de dissonância], de Rosi Braidotti, especialmente a seção intitulada “Repossessing the Body: A Timely Project” [Repossuindo o corpo: um projeto oportuno] (pp. 219-24).

[5] Estou me referindo ao projeto de écriture féminine [escrita feminina], uma teoria e movimento literários que se desenvolveram na França, na década de 1970, entre as feministas estudiosas da psicanálise lacaniana que buscavam criar uma linguagem que expressasse a especificidade do corpo feminino e da subjetividade feminina (Braidotti, op. cit.).

[6] O “trabalho morto” é o trabalho já realizado, que fica objetivado nos meios de produção. Segundo Marx, o “trabalho morto” depende da capacidade humana presente (“trabalho vivo”), mas o capital é “trabalho morto” que subordina e explora essa capacidade (Marx, 2006, t. i). [n.t.e.]

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SOBRE A AUTORA

Silvia Federici é ativista feminista, historiadora, pesquisadora e professora radicada em Nova York. É professora emérita da Universidade Hofstra (NY) e co-fundadora do Feminist International Collective que, nos anos 1970, criou o movimento de salários para o trabalho doméstico. Na década de 1980, trabalhou na Nigéria, onde fundou o Commitee of Academic Freedom in Africa. Silvia faz parte do Midnight Notes Collective e escreveu diversos livros, entre os mais conhecidos estão “Revolution at Point Zero. Housework, Reproduction, and Feminist Struggle” (PM Press/Autonomedia, 2012) e “Caliban and the Witch. Women, the Body and Primitive Accumulation” (Autonomedia, 2004).

Para baixar o livro completo, acesse:

Para saber mais sobre a autora, confira a conversa com Silvia Federici realizada pela Revista DR:


 

Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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