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Marcia Rangel Candido

PEDAGOGIA LIBERTÁRIA E EDUCAÇÃO POPULAR


SOBRE A PEDAGOGIA LIBERTÁRIA

O anarquismo é uma corrente política surgida no século XIX que tem como princípios basilares a ação direta[1], a autogestão, a democracia direta, o internacionalismo e a construção de uma sociedade que supere quaisquer formas de hierarquias, inclusive ultrapassando as instituições que compõem o Estado.

Um dos pressupostos que diferenciava o anarquismo das demais correntes socialistas era (e continua sendo) a tática de atuação e os princípios que buscam, acima de tudo, a revolução social, e não apenas uma revolução política, ocupando cargos no Estado para dirigir o processo revolucionário por meio de um partido específico. Para os anarquistas sempre foi necessário construir alternativas em todos os setores e áreas da sociedade, de forma concomitante e sem hierarquizar nenhuma delas.

Nesse sentido, os anarquistas foram os primeiros socialistas a incluírem a educação como elemento fundamental em sua agenda revolucionária. Para o pedagogo Fernand Pelloutier, “o trabalho educativo não precede a ação revolucionária, ele a acompanha e nutre-se dela. A ação e a reflexão estão imbricadas: da experiência nascem os princípios, que por sua vez reforçam as práticas” (CHAMBAT, 2006:40).

Vale lembrar que a própria ideia de sindicato começa com os anarquistas se organizando de forma descentralizada, porém organizada, já na segunda metade do século XIX. Na França, trabalhadores e trabalhadoras (artesãos, sapateiros, tecelões, padeiros etc.) tinham autonomia para avançar nos debates internos de suas categorias profissionais, porém na hora de lutar se uniam por princípios como as ocupações de fábricas, boicote à produção, greves, manifestações nas ruas e ajuda mútua[2] entre os sindicatos, guiados pelo sentimento de apoio e solidariedade entre aqueles que lutavam contra a exploração.

É nesse contexto que trazemos a reflexão do papel que a educação veio a desempenhar na virada do século XIX para o XX na Europa, onde começaram a surgir as primeiras escolas operárias inspiradas em princípios políticos pedagógicos desenvolvidos por P. J. Proudhon e M. Bakunin. Dentre eles, podemos destacar a instrução integral, anti-religiosa, anti-estatista e que incluía meninos e meninas na mesma sala. A educação não sexista foi uma importante contribuição dos anarquistas ao campo da educação, pois a maioria das escolas na época, ligadas a órgãos da religião católica, só permitia que os meninos frequentassem os colégios e fossem educados.

A educação integral era vista como ponto fundamental para a construção de um novo ser humano. Ela teria como objetivo central a questão física e mental, unir corpo e intelecto, e não romper ou se fragmentar em matérias separadas, sem conexão ou relação direta com o cotidiano, como muitas vezes vemos em currículos escolares no Brasil e outros locais do mundo, se baseando em uma educação de cunho político capitalista e liberal.

Esse modelo de educação integral seria aliado a modelos educacionais que buscassem diminuir, ou até destruir a distância entre alunos e professores. É o que Bakunin chama de “nem mestre e nem aluno” (LENOIR, 2014:41). O francês Hugues Lenoir salienta que a pedagogia libertária é "(...) uma busca permanente de práticas pedagógicas inovadoras e uma denúncia da escola tradicional que visa uniformizar os indivíduos e que não prepara senão à mediocridade da qual o sistema autoritário e desigualitário necessita" (LENOIR, 2014:17).

Para esse sistema educacional funcionar, a noção de autogestão[3], não só na teoria, mas principalmente na prática, deve ser central. Por isso, na virada para o século XX, a educação da classe trabalhadora estava diretamente associada aos movimentos sociais e aos os sindicatos. Dessa relação era praticamente indissociável e as principais mobilizações, greves e enfrentamentos de sindicatos com patrões e governos, que conquistaram pautas importantes para a classe trabalhadora até os dias atuais, se deram nesse contexto.

SOBRE A EDUCAÇÃO POPULAR

Alguns desses pressupostos, principalmente a pauta e a prática via uma educação anti-sistêmica e popular, se assemelham muito com o que décadas mais tarde no Brasil será desenvolvido pelo educador Paulo Freire. O desenvolvimento de uma pedagogia do oprimido e de uma pedagogia da autonomia[4], as bases do pensamento do autor, marcou o entendimento da educação popular no Brasil e América Latina. Para Freire, "(...) Educação Popular é sobretudo o processo permanente de refletir militância: refletir, portanto, a sua capacidade de mobilização em direção a objetivos próprios. A prática educativa, reconhecendo-se como prática política, se recusa a deixar-se aprisionar na estreiteza burocrática de procedimentos escolarizantes” (FREIRE, 2014:34).

A atuação política e profissional de Freire, junto e ao lado dos movimentos sociais, se destacou em atuações voltadas para a alfabetização com um método extremamente crítico, que buscava ser mais horizontal e dialogar diretamente com as realidades locais dos educandos. Como exemplo dessas experiências do pedagogo, podemos citar o projeto de alfabetização com sertanejos e trabalhadores do campo em Angicos, no Rio Grande do Norte, além de sua atuação com os camponeses no Brasil (Ligas Camponesas) e no Chile, cujo trabalho pedagógico se pautava na luta pela Reforma Agrária, além de outras localidades na América Latina e países da África que tiveram colonização portuguesa como a Guiné Bissau.

Apesar de ser uma corrente do pensamento crítico desenvolvida na área da pedagogia, a educação popular se expande para outras áreas do conhecimento devido ao seu caráter abrangente, encontrando eco, por exemplo, na construção de movimentos culturais que buscaram inspiração na obra e na prática educacional de Paulo Freire, como o Movimento de Cultura Popular de Recife, o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC - UNE), dentre outros. Essas atuações precisam ser levadas em conta na análise, tendo em vista o contexto histórico e político de instauração de ditaduras no Brasil e na América Latina, e o processo de descolonização dos países africanos nas décadas de 1960 e 1970.

Segundo a visão de José Francisco de Melo Neto, a educação popular se constitui a partir de uma pedagogia pautada na crítica, no compromisso político popular e na ética do diálogo (MELO NETO, 2003). Dentre as principais características da educação popular podemos identificar um paradigma político, técnico e metodológico que, emergindo na América Latina, buscava estabelecer uma educação atrelada aos movimentos sociais, às populações oprimidas historicamente, e contraposta aos métodos educacionais formais que a maioria das escolas possui. Atualmente, o modelo de ensino hegemônico nos colégios é levado a cabo sem diálogo com as comunidades escolares, se valendo de currículos, métodos e materiais didáticos que não levam em conta a realidade de estudantes, docentes e o local onde essa relação de ensino-aprendizagem se estabelece.

O diálogo entre educação popular e pedagogia libertária pode ser travado na atualidade a partir da prática de exemplos de construção de locais que buscam alternativas à educação formal, presente no âmbito do ensino público ou privado. A pedagogia libertária está nas ocupações sem-teto e nos projetos coletivos que buscam construir uma educação sem hierarquias e sem coordenadores, buscando incessantemente se reinventar a partir da autogestão.

A educação popular está nos pré-vestibulares comunitários com um perfil auto gestionário, nas escolas de educação quilombola e indígena, nos assentamentos de sem-terra; está nas escolas de auto-formação de mulheres para combater a opressão patriarcal e na militância LGBTs pelo combate às violências cotidianas; está nos projetos de periferia onde o movimento negro busca combater o racismo estrutural em que vivemos.

A pedagogia libertária não ficou estagnada no século XIX ou no início do século XX. Muito pelo contrário, está mais viva que nunca. Está nas ocupações estudantis, quando centenas de estudantes ocuparam suas escolas e universidades na base da ação direta e organizaram os espaços estudantis na base da autogestão, em boa parte rechaçando movimentos partidários ou tentativas externas de dirigir ou guiar a sua mobilização. Está também ressignificada em professores e professoras que buscam romper com a lógica educacional formal, procurando frestas para subverter esse modelo de educação em escolas ou universidades, ainda que em momentos pontuais.

Termino o texto dizendo que qualquer forma de transformação social, no sentido de barrar projetos capitalistas que se voltam contra a maioria da população, não poderá ser feita sem desenvolver projeto educacional que vise à emancipação, contra qualquer tipo de opressão, não só contra os patrões, e nisso os movimentos sociais aprendem e ensinam ao mesmo tempo. Dessa dialética entre educação popular e pedagogia libertária, junto aos movimentos sociais e populares de base, nos bairros e periferias, nos locais de trabalho, nas escolas públicas e no campo, é que conseguiremos “desorganizar nos organizando e se organizando para desorganizar”, parafraseando o grande Chico Science.

NOTAS

[1] Quando falamos em ação direta, tratamos de uma prática que se traduz principalmente em atividades de propagandas e de educação destinadas a despertar nas massas a consciência das contradições sociais a que estão submetidas, fazendo com que o desejo e a consciência da necessidade da transformação social surja em cada um dos indivíduos e que esses tomem para si, de forma organizada, as rédeas de alguma pauta política, seja ela especifica ou mais generalizada, dependendo da situação (GALLO, 2007).

[2] Sobre o conceito de ajuda mútua, segundo o autor Wallace de Moraes: “Kropotkin, ao fazer a defesa da ajuda mútua, amparado nos estudos antropológicos, fica habilitado para sustentar o comunismo-anarquista, caracterizado pela solidariedade e pelo livre entendimento das pessoas, sem a necessidade de uma instituição que contenha seus sentidos utilitaristas” (MORAES, 2016:117).

[3] O conceito de autogestão pode ser definido como uma forma de auto-organização que possui a capacidade de exercício de poder, onde uma coletividade formula e institui para si suas próprias regras e possui a liberdade para alterá-las sempre que o coletivo julgar necessário, sem atribuir tais construções de leis e regras a estruturas como Deus, o Partido ou o Estado (RODRIGUES, 2012:264).

[4] Pedagogia da Autonomia (2007) e Pedagogia do Oprimido (2013) são duas das principais obras de Paulo Freire.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHAMBAT, Grégory. Instruir para revoltar – Fernand Pelloutier e a educação rumo a uma pedagogia da ação direta. São Paulo: Editora Imaginário, 2006.

FREIRE, Paulo. Política e Educação. São Paulo: Paz e Terra, 2014.

____________. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

____________. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

LENOIR, Hugues. Compêndio de Educação Libertária. São Paulo: Intermezzo Editorial, 2014.

_______________. Autogestão pedagógica e educação popular: a contribuição dos anarquistas. São Paulo: Intermezzo Editorial, 2017.

MELO NETO, J. F. Educação Popular: sistema de teorias intercomunicantes. Catende (PB), 2003.

MORAES, Wallace dos Santos. "Teses da teoria da política anarco-comunista – reflexões a partir do pensamento de Kropotkin". In: MORAES, Wallace dos Santos e JOURDAN, Camila (Orgs.). Teoria política anarquista e libertária. Rio de Janeiro: Via Verita, 2016.

Guilherme Santana é professor de Sociologia na Rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ). É doutorando em História Comparada pela UFRJ, instituição onde também realizou seu mestrado em Educação e a graduação em Ciências Sociais.

Contato: guidesantana@gmail.com

 

Editora responsável: Luna Ribeiro Campos

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